O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

ENSAIO: O cinema brasileiro moderno e a quebra dos esquemas sensórios motores

Por Danilo Santos

Trecho do filme "Os inquilinos" de Sérgio Bianchi

Deleuze partiu do cinema neorrealista italiano para introduzir o conceito de esquema sensório motor¹.  Este, por sua vez, está ligado à estética de filmes como a indústria hollywoodiana, no que diz respeito aos filmes comerciais. 

O esquema sensório motor estaria presente nesses filmes, na maioria das vezes, sob a forma de resolução para personagens e situações inseridas nas obras, à base de clichês, lugares comuns. 

Como podemos ver até hoje, o mesmo método é usado por esses chamados “enlatados americanos”, como forma de venda massificada dos filmes, de uma estética baseada no senso comum e para o senso comum - exigência pré fabricada pela indústria. 

Não há novidades, mudam-se os atores, conta-se histórias similares, podem até refletir sobre a sociedade, mas no final das contas as soluções encontradas são sempre conservadoras e com o intuito de entreter o público.

Em contraposição a isso o cinema brasileiro moderno – me refiro a alguns filmes que nascem junto e após Central do Brasil, de Walter Salles – parece se voltar aos princípios de quebra dos esquemas sensórios motores, característica desse cinema americano  - e também da produção comercial brasileira, para não citar tantos outros exemplos ao redor do mundo -,  para retomar a situação ou imagem ótica e sonora pura². 

Por esse conceito entende-se aquilo que é contrário aos esquemas sensório-motores, ou seja, a situação ótica e sonora pura, já não exige resoluções “fáceis” e pré-determinadas na obra. Os personagens não tem controle sobre suas trajetórias, e em muitas das situações não encontram respostas aos seus dilemas, são espectadores de suas vidas e o espectador, por sua vez, parte do filme.

Filmes como “Linha de Passe” de Walter Salles; “ Se nada mais der certo” de José Eduardo Belmonte; “Casa de Alice” de Chico Teixeira ; “Os inquilinos” de Sérgio Bianchi; dialogam intrinsecamente com esta proposição, concebida no neorrealismo italiano.

Esses filmes surgem com o advento de uma nova classe média no Brasil, e isso fará toda a diferença no que diz respeito à sua forma.

Com o surgimento de um operário ao poder no Brasil, novas possibilidades de consumo nascem. Agora aqueles que eram considerados pobres, são classe média, e tem possibilidades de alcançar novos bens de consumo. Mas o que significam essas novas possibilidades? Pode, ainda sob o sistema capitalista, uma classe esmagada por outra, dizer agora ser livre? Livre para o que? Livre para consumir? E até onde isso é benéfico e ou maléfico? E o que pode-se consumir? Até onde consumir está ligado a conseguir, obter algo?

Esse dilema está sob todos esses filmes. Eles deixam claro as situações de seus personagens, em sua maior parte, inseridos nessa nova classe média. E sobretudo, explicita todas essas questões em sua forma, onde esses personagens vagam pelo mundo, consumindo e ao mesmo tempo não conseguindo nada.

Todas as relações são duvidosas, incertas. Não há triunfo ainda que pareça.

O desfecho dos personagens em Casa de Alice, acontece da seguinte forma: O pai convence o filho de que sua avó materna não tem mais condições de viver em sua própria casa, onde eles vivem de favor, e a internam num asilo.

A mãe da família termina em uma mesa de bar à espera de seu amante que não aparece.

O sexo, tão esperado pelo  filho adolescente, não acontece.

O mais velho dos três filhos homens, que além de servir o exército, é também michê. É como uma barreira intransponível, não consegue definir-se como ser e não abre possibilidade para que o façam. O tempo todo sua relação com a família é, ainda que longinquamente falando, incestuosa, ou se pretende supor isso, já que nada se conclue. Até mesmo essas relações misteriosas acabam por não terem um fim, são vidas em movimento, mas ao mesmo tempo inativas.

O pai, taxista, amante de uma adolescente, busca fora de sua casa e de seu casamento uma liberdade da qual ele mesmo não sabe aproveitar ou dizer o que é. Gira pelo cenário caótico da cidade, sem de fato saber onde vai.

Todas as relações e os destinos dos personagens não estão em suas mãos. São engolidos e controlados pelas relações contemporâneas impostas pelo sistema. E, é nesse ponto, também, que o cinema brasileiro moderno, se aproxima daquilo que o neorrealismo executou, o diálogo com o atual,  sua época, seu momento histórico-econômico.

Esses personagens não tem controle sobre suas vidas e se encontram em situações às quais não tem resposta. Como no exemplo de Bazin, citado por Deleuze: 

“a jovem empregada entrando na cozinha de manhã, fazendo uma série de gestos maquinais e cansado, limpando um pouco, expulsando as formigas com um jato d'água, pegando o moedor de café. Fechando a porta com a ponta do pé esticado. E, quando seus olhos fitam sua barriga grávida, é como se nascesse toda a miséria do mundo.”³

Da mesma forma, a mãe em Casa de Alice, se encontra em uma situação, onde tudo aquilo que viveu se reduz a uma não-solução, onde toda a solidão é o que a permeia na mesa de um bar à espera de alguém que não virá.

A diferença do neorrealismo italiano para o cinema brasileiro moderno, no que diz respeito à situação ótica e sonora pura é que, no neorrealismo, as situações e personagens se encontram sem resposta às causas de momentos de guerra, miséria, impotência psicológica e física para com tais acontecimentos. Já nessas obras do cinema brasileiro moderno o que se vê é a inatividade de uma classe econômica que sustenta uma sociedade que por fim não devolve a ela o que lhe é de direito. 

Os personagens desse cinema brasileiro moderno estão perdidos, alienados. No neorrealismo, engajados mas impotentes. 


Bibliografia
Gilles Deleuze, A Imagem-Tempo,2009. Editora Brasiliense.

Filmografia
Linha de Passe,2008,  de Walter Salles
Se nada mais der certo,2009, de José Eduardo Belmonte
Casa de Alice,2008, de Chico Teixeira 
Os inquilinos, 2010, de Sérgio Bianchi

¹ Gilles Deleuze, Imagem-Tempo
² Gilles Deleuze, Imagem-Tempo
³ Gilles Deleuze, Imagem-Tempo, citação sobre Bazin, pág 10

2 comentários:

  1. Belo artigo. Me parecem filmes brasileiros que conversam muito entre si.

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  2. Sensacional o post!!!

    Acredito até que valeria um outro post sobre a liberdade (uma provocação).

    A relação dos próprios brasileiros entre si, parecem as relações internacionais, isto é, "eu te acho legal e vendo um produtozinho pra vc pq vc me dá mãe de obra e vende o seu produto mais barato ainda" (seja a mão de obra ou o produto que gera os produtos).

    Quanto ao cinema brasileiro, na minha opinião acho que vai levar um tempo para que ele tenha uma cara própria, por isso somos um pouco hollywoodianos, neo-realistas, modernos e novos ao mesmo tempo. Não que isso seja ruim, mas não possui identidade.

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