O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

CINECLUBE CINEMA EM REVISTA #3


O Coletivo Cinefusão, em parceria com a Cia Antropofágica, convida para a terceira sessão do "Cineclube Cinema em Revista", que dá sequência ao Ciclo "Cinema-Greve". Exibiremos, "Elegias de Maio" (de Danilo J. Santos) e "A Saída dos Operários da Fábrica" (de Harun Farocki). Os convidados para o debate serão os parceiros Danilo J. Santos (Cia Antropofágica) e Luiz Carlos Moreira (Engenho Teatral). A sessão é gratuita e ocorre a partir das 18h01, no Espaço Pyndorama (Rua Turiassú, 481), sempre no último domingo do mês. 

A representação do trabalhador no cinema remonta à primeira exibição pública, ocorrida em 1895, na qual foi exibido “A Saída da Fábrica Lumière em Lyon”. De lá para cá, os filmes não só se converteram em entretenimento, como também abriram possibilidade para uma perspectiva crítica. Com isso, o ciclo “Cinema-Greve” que propomos pretende resgatar, em primeiro lugar, o espaço de debate característico das experiências cineclubistas, além do prazer estético e experiência coletiva de assistir a um filme. Num primeiro momento, tratar do tema greve pode parecer simplista ou até mesmo uma obviedade. No entanto, é imprescindível entender inclusive como o capitalismo assimilou e incluiu em seu vocabulário cotidiano o termo greve. Greve de fome, greve de sexo, na tentativa de desarticular um instrumento da classe trabalhadora para combater aqueles que detêm os meios de produção. 



Cineclube, experiência de recuperação do espectador morto. Espaço onde o óbito não é aceito sem diagnóstico. O especialista, neste caso, está desconvidado, o diagnóstico é feito de forma coletiva, sobre a égide do universalismo, em contraponto com a educação tecnocrata das instituições de ensino. O nosso ciclo é direto, Cinema-Greve. O cineclube é permanente, Cineclube Cinema Em Revista. Um participa da ação do outro. E afirmamos: A arte tem que ter uma perspectiva revolucionária, caso contrário, os ursinhos carinhosos dominarão. Será sempre convidado alguém que valha realmente a pena, inclusive, os sujeitos da mídia-piada brasileira. Neste caso, não garantimos que não ocorra um ataque feroz por parte dos presentes, sempre no nível do debate, mas prometemos lançá-lo para o abismo de suas contradições.

A parceria é com Cia Antropofágica, estômago antropofágico do teatro brasileiro. Nas suas encenações, o verbo explodir é uma ação de vitalidade estética, carregam T.N.T de baixo dos braços. Escarram na cartilha dos bons costumes cênicos. Seus animais, são os de bucho ruminante. Não poderíamos estar melhor acompanhados. 

No cardápio pipoca. Comida de índio. Supervalorizada pelo cinema de shopping. Para finalizar, o famoso passar chapéu, este dos mais variados, todos contendo o suor dos que ali exercem seu oficio. 

Estão quase todos convidados: 

“E sobretudo, meu corpo, da mesma forma que a minha alma, evitem ficar de braços cruzados em atitude estéril de espectador, porque a vida não é um espetáculo, porque um mar de dores não é um proscênio, porque um homem que grita não é um urso dançando...”
(Aimé Cesaire)

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

QUANDO EU MORRER (MÁRIO DE ANDRADE)

Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus inimigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.

Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.

No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.

Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia,
Sereia.

O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade...

Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade...

As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.

(Mário de Andrade)

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Um Lugar ao Sol ou Como Não Tremer de Frio


(texto publicado originalmente no site http://brcine.com.br/)

Certa vez, ao ser questionado acerca do porquê de as imagens tremerem, o cineasta cubano Tomás Gutierrez Alea disse que elas tremem porque há mãos que as seguram. Nada mais materialista do que a resposta que leva em consideração as pessoas que trabalham para que um filme seja realizado. E a partir disso, uma imagem pode tremer, porque o ser humano é instável ou porque assim o quer aqueles que estão por trás das câmeras. Sem um contato concreto com o pernambucano Gabriel Mascaro, não há como objetivar suas intenções com o documentário Um Lugar ao Sol, mas sem dúvida é possível investigar o porquê de suas imagens tremerem.

O longa tem início justamente com a explicação de um método – 125 moradores de valorizadas coberturas, foram contatados, a partir de um livro que cataloga pessoas influentes, e apenas nove aceitaram dar entrevista –, o que imediatamente já coloca que estamos diante de um “filme-tese”, preocupado sim em determinar algumas questões. Em seguida, antes mesmo de termos contato com qualquer cobertura, a imagem é a de uma planta em um canteiro de obras, prestes a perder o seu pedaço de terra e também o seu lugar ao sol, por conta das obras. É a metáfora que Gabriel encontra para colocar, a sua maneira, que o trabalhador está diretamente em conflito com aqueles que têm garantido justamente o lugar ao sol que lhes é negado. É por isso que em seguida, a câmera sobe junto com um elevador de obras, acompanhando o movimento do trabalhador, que sobe aos céus para outros morarem.

O filme fala sobre a tendência de verticalização das grandes cidades, no caso Recife, São Paulo e Rio de Janeiro, mas persiste também na evidência quase surreal do contraste, do trabalho humano. É por isso que, enquanto um dos entrevistados fala sobre a indescritível sensação de abrir a sua janela e ter o mar a sua frente, Mascaro não nos mostra o mar, mas o sujeito que, pendurado à janela, limpa os vidros da cobertura. São escolhas de um cineasta que resolve sim se posicionar e interferir esteticamente na realidade objetiva que tem a sua frente. As filmagens de elevadores subindo são constantes e dramatizadas propositalmente para apresentar personagens que se sentem protagonistas de sua própria condição social. Estes mesmos entrevistados agem, o tempo todo, de maneira teatral exagerada, com trejeitos e falas que beiram a mais criativa das ficções.

No entanto, por mais fascinantes que esses personagens possam ser, Gabriel Mascaro não permite qualquer tipo de identificação e revela o seu próprio desconforto de estar ali, escutando de forma passiva determinados argumentos. É por isso que, em quase todas as entrevistas, a fotografia de Pedro Sotero busca criar distanciamento, principalmente através de movimentos de zoom repentinos durante alguns planos, que parecem dizer ao espectador que o incômodo da equipe também existe e que o olhar não pode deixar se contaminar. Assim, a presença da câmera se revela, como mediadora de uma relação que no momento é estética, mas que precisa ser política também para ser plena. E é por isso que as poucas intervenções de Gabriel são calculadas e, mais uma vez, surgem ora para criar distanciamento e revelar o aparato fílmico ora para colocar um posicionamento.

Uma artista plástica explica a sensação de domínio que ela tem por morar nas alturas, mas diz que não pode ser totalmente feliz sem dar a mão ao próximo e, por isso, trabalha como voluntária em um hospital de câncer. Segundo ela, o egoísmo é o mal do mundo. Então, surge pela primeira vez a voz do cineasta, que a interrompe para questionar se o voluntarismo vai acabar com isso, para em seguida revelar a visão maniqueísta da mulher. Em outro momento, o filho, que acompanha a mãe sendo entrevistada, corta a conversa e diz: “mamãe, acho que você está cometendo um erro gravíssimo. A senhora devia responder olhando para a lente e não para eles”. Novamente, Gabriel intervém para colocar que não tem problema com isso. São passagens que, qualquer montador preocupado apenas com a fábula e os formatos convencionais excluiria sem pensar duas vezes, mas aqui vão ressignificando o próprio processo pelo qual essa equipe passou.



Um Lugar ao Sol se enquadra numa categoria de documentários que se veem obrigados a “trair” seus personagens. Porém, estamos efetivamente diante de uma traição que não se pessoaliza e recai sobre os indivíduos. É uma traição de classe, necessária e que se revela, por exemplo, quando uma personagem afirma achar interessante que ele (diretor) faça um documentário de algo positivo, porque as pessoas só fazem documentários de coisas negativas, sobre a miséria. A personagem engrandece a iniciativa e aí a traição se revela inevitável, pois o impasse é político, de visão de mundo, mesmo que diretamente ligado a um processo de alienação, que está o tempo todo evidente no filme. Ironicamente, uma das entrevistadas tem o hobby de registrar seu cotidiano com uma câmera amadora e, enquanto filma o Cristo Redentor, explica que gosta de “sentir através de uma lente”. Nessas passagens, Gabriel Mascaro se apropria das gravações que ela faz e as utiliza no filme, mostrando, por exemplo, a imagem do filho que dorme. “Este é o mundinho dele, um pouquinho mais amplo, porque ele tem essa vista toda”, afirma ela.

É justamente ao humanizar os seus personagens e revelar a profunda contradição em que estão inseridos, que o documentário faz pulsar uma melancolia que beira o insuportável. A pergunta que logo nos vêm à cabeça é existencial, na medida em que questiona a doentia sociedade em que estamos inseridos. No entanto, o cineasta não isenta esta aristocracia pós-contemporânea de culpa, não cai na vala comum da compaixão, pois insiste, o tempo todo, em revelar a contradição discursiva, em negar a salvação através do valor cristão. A mesma mãe que é carinhosa com o filhinho critica e condena o desmatamento, que os moradores da favela fazem no morro e o “bang bang” que é obrigada a assistir. Outra chega ao ponto de narrar, de maneira fascinada, que o morro de Santa Marta é todo colorido, cheio de balas tracejantes. “Eu tenho o privilégio de ver fogos quase que diariamente. Isso é meio trágico, mas lindo”, diz a personagem que, em seguida, explica que tem uma área de serviço, onde mantém seus empregados distantes para preservar sua privacidade.

É a partir da relação com o espaço, que o documentário traça um preciso perfil da classe dominante brasileira, vítima sim de um processo de alienação cruel promovido pelo capitalismo, mas ainda assim responsável pelas ideologias que propaga e pelo conservadorismo disseminado. Falamos aqui de apenas nove pessoas, mas que servem de amostragem do aparato ideológico que comanda as relações sociais brasileiras. Por mais que haja exceções, reconhecemos discursos comuns como o de que “não é porque o cara é pobre que ele tem que ser bandido”. Se, por um lado, o empresário, dono de boates em São Paulo, pensa que todo pobre deveria ter no mínimo um prato de comida na mesa, por outro, é reticente com a ideia de que é assim mesmo, “no avião, você tem a primeira classe, a executiva e você tem a senzala lá no fundo. Eu vim ao mundo para os prazeres da vida”. Durante esta mesma entrevista, Gabriel Mascaro pergunta: “o que é poder pra você?”. A resposta, “poder é um prazer muito bom”, vem junto com um zoom repentino na cara do entrevistado, uma maneira de se distanciar de algo tão absurdo.

Em texto publicado na Revista Cinética, Fábio Andrade critica a estreiteza da estratégia do filme, que se foca principalmente na opção de se morar no alto de um prédio. Porém, não é justamente essa delimitação consciente de um método que se permite chegar a traços tão definidores de um grupo de pessoas determinados enquanto seres sociais? A condução das entrevistas é tão acertada que, para além da tese, conhecemos sim esses personagens e características de suas individualidades, incluindo hobbies, religião, relações familiares, questões filosóficas etc. Pelo contrário, o olhar não parece pré-definido, pela simples constatação de que aquela equipe está construindo sua tese enquanto filma, incomodada sim com o que vê e ouve. A personagem que se constrói da totalidade dos depoimentos é a desigualdade, que está latente à revelia dos discursos contrários destas pessoas.

É necessário despersonalizar os discursos justamente para não se atacar as pessoas, mas o próprio discurso. Não é somente para Gabriel Mascaro que morar em coberturas é uma questão de classes, mas para todo aquele que olha de forma mais atenta para o que está determinado. O discurso de classes não é exterior a obra de arte, pois não é leviandade dizer que a luta de classes existe enquanto verdade dentro e fora da arte, como elemento fundador da realidade. Portanto, toda obra que se proponha a afunilar a relação entre classes é no mínimo coerente com qualquer pretensão emancipadora do ser humano. Se há algo a ser combatido, estrategicamente nada mais sensato de que revelar as divergências e isolá-las ao invés de conciliar. É sintomático que quase todos os depoimentos de Um Lugar ao Sol, busquem a explicação transcendental, metafísica para as condições sociais, deixando de lado, justamente a questão de classe.

Em determinado momento, vêm à tona a simbologia máxima do filme que remonta às civilizações em que os astros e, principalmente o sol, eram venerados como deuses. Mãe e filho falam sobre a proximidade de um fenômeno único, em que Marte se aproxima de tal forma da terra que é possível ver o planeta do tamanho da lua. Então, o filho, personagem que parece retirado da mais bem construída ficção, diz que eles precisam ver marte, nem que aluguem um avião para furar as nuvens e adentrar aquele cenário onde Deus descansa. Enquanto acaricia um gato em seu colo, a mãe reflete que esta é uma vantagem de estar na cobertura. Mascaro questiona se é estar mais perto de Deus e ela responde que sim, que eles podem falar com Deus mais facilmente. A conversa segue por mais alguns instantes, até que desconfortável ela pede que a filmagem pare um pouco. Então, a traição se consuma novamente, não por falta de ética como podem muitos colocar, mas por excesso. Ética de quem se posiciona frente a tempos sombrios. A fábula do espaço é a metáfora essencial daqueles que lutam para que um dia todos tenham o seu lugar ao sol. A câmera de Pedro Sotero, Gabriel Mascaro e toda a equipe de Um Lugar ao Sol treme sim. Treme de medo, treme de insegurança, treme de raiva, treme de perplexidade e treme de frio, pois se o sol não surge, a frieza determina tudo a todo instante.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

CINECLUBE CINEMA EM REVISTA #2


O Coletivo Cinefusão, em parceria com a Cia Antropofágica, convida para a segunda sessão do "Cineclube Cinema em Revista", que dá sequência ao Ciclo "Cinema-Greve". Exibiremos, "A Guerra dos Gibis" (de Thiago Brandimarte Mendonça e Rafael Terpins), "Libertários" (de Lauro Escorel Filho) e British Sounds (de Jean-Luc Godard) O convidado para o debate será o parceiro Thiago Brandimarte Mendonça, do Coletivo Zagaia. A sessão é gratuita e ocorre a partir das 18h01, no Espaço Pyndorama (Rua Turiassú, 481), sempre no último domingo do mês.

A representação do trabalhador no cinema remonta à primeira exibição pública, ocorrida em 1895, na qual foi exibido “A Saída da Fábrica Lumière em Lyon”. De lá para cá, os filmes não só se converteram em entretenimento, como também abriram possibilidade para uma perspectiva crítica. Com isso, o ciclo “Cinema-Greve” que propomos pretende resgatar, em primeiro lugar, o espaço de debate característico das experiências cineclubistas, além do prazer estético e experiência coletiva de assistir a um filme. Num primeiro momento, tratar do tema greve pode parecer simplista ou até mesmo uma obviedade. No entanto, é imprescindível entender inclusive como o capitalismo assimilou e incluiu em seu vocabulário cotidiano o termo greve. Greve de fome, greve de sexo, na tentativa de desarticular um instrumento da classe trabalhadora para combater aqueles que detêm os meios de produção. 



Cineclube, experiência de recuperação do espectador morto. Espaço onde o óbito não é aceito sem diagnóstico. O especialista, neste caso, está desconvidado, o diagnóstico é feito de forma coletiva, sobre a égide do universalismo, em contraponto com a educação tecnocrata das instituições de ensino. O nosso ciclo é direto, Cinema-Greve. O cineclube é permanente, Cineclube Cinema Em Revista. Um participa da ação do outro. E afirmamos: A arte tem que ter uma perspectiva revolucionária, caso contrário, os ursinhos carinhosos dominarão. Será sempre convidado alguém que valha realmente a pena, inclusive, os sujeitos da mídia-piada brasileira. Neste caso, não garantimos que não ocorra um ataque feroz por parte dos presentes, sempre no nível do debate, mas prometemos lançá-lo para o abismo de suas contradições.

A parceria é com Cia Antropofágica, estômago antropofágico do teatro brasileiro. Nas suas encenações, o verbo explodir é uma ação de vitalidade estética, carregam T.N.T de baixo dos braços. Escarram na cartilha dos bons costumes cênicos. Seus animais, são os de bucho ruminante. Não poderíamos estar melhor acompanhados. 

No cardápio pipoca. Comida de índio. Supervalorizada pelo cinema de shopping. Para finalizar, o famoso passar chapéu, este dos mais variados, todos contendo o suor dos que ali exercem seu oficio.  

Estão quase todos convidados: 

“E sobretudo, meu corpo, da mesma forma que a minha alma, evitem ficar de braços cruzados em atitude estéril de espectador, porque a vida não é um espetáculo, porque um mar de dores não é um proscênio, porque um homem que grita não é um urso dançando...”

(Aimé Cesaire)

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

EXISTE UM BLOCO BRANCO?


Do ponto de vista dos trabalhadores, o que vimos ontem em São Paulo? As principais organizações de esquerda desfilaram (ou melhor: tentaram desfilar) pelas ruas da cidade. Qual o verdadeiro conteúdo do desfile? Do início ao fim, a tentativa de "conduzir" o ato assumiu um caráter inteiramente burguês. Era inevitável, já que os "inimigos" - aqueles que representavam o ponto de vista dos trabalhadores no ato - eram os meninos do Blac Block.

Antes da polícia mostrar os dentes, a repressão já havia começado. Mas, como? Por parte de quem? Da própria esquerda. A repressão da polícia, nesse sentido, foi apenas um "complemento natural". De certo modo, inclusive, as constantes tentativas, por parte das organizações, de isolar o bloco negro, foram mais odiosas que a própria repressão policial - afinal de contas, a polícia é um inimigo nítido.

Não é delírio. Literalmente: a esquerda preparou o terreno para o "massacre". E a repressão veio a galope, como sempre, sem distinguir o preto do rosa: a própria esquerda foi "massacrada" pela polícia. Mas tudo bem, desde que, amanhã cedo, todos saibam que "a culpa foi do Black Bloc". Parece delírio, mas é verdade: a repressão não começou com as bombas da polícia, mas lá atrás, no início do ato.

No lugar da polícia, estudantes universitários, organizações de esquerda (PSTU, PSOL, e derivados). É como diz o provérbio: com tais amigos, quem precisa de inimigos?

E a razão é simples: a maioria dos integrantes do Black Bloc são pobres. Não é exagero. Trabalhadores ou filhos de trabalhadores, que, na ausência de perspectivas mínimas, atiram-se na via da ação direta. Os militantes das atuais organizações de esquerda talvez não sejam capazes de compreender essa motivação. Afinal de contas, dentro do capitalismo, a possibilidade de estudar, comer bem, viajar, etc. não deixa de ser uma perspectiva máxima.

Isso explica a disposição e a coragem dos meninos do bloco negro, e também a arrogância da esquerda. O antagonismo de classe apareceu como fator central, ganhando expressão empírica em vários momentos do ato. Divergências táticas, oposição ao anarquismo, defesa dos professores, etc. é tudo mentira. Insistir em supostas divergências táticas - como faz o PSTU e o PSOL, por exemplo - é mentir para os trabalhadores. Uma crítica "tática" ao Black Bloc é objetivamente impossível. Demonstra, além do mais, uma profunda incompreensão da luta de classes.

Não bastam as mentiras da mídia burguesa, da igreja, da família? Certamente, não. É preciso ainda (e sobretudo) a mentira política, historicamente preparada pelos "representantes" da classe trabalhadora. O Black Bloc, atualmente, é o setor mais avançado da juventude brasileira. É uma dura verdade, difícil de reconhecer. A ação do bloco negro é uma projeção insuportável da ausência total de perspectivas na qual afunda a juventude. No fim das contas, expor a falta de perspectiva, por meio da ação direta, converte-se num modo inteligente de recuperar alguma perspectiva.

Eis a questão. Esta é a "dialética intrínseca" que determina a ação do Black Bloc: expor a falta de perspectiva para recuperar alguma perspectiva. Não faz sentido? Mas, na realidade, as questões que a esquerda se coloca são outras: o que é o Black Bloc? Jovens absolutamente desconhecidos, agindo "por fora" das organizações. Há um profundo sentimento de propriedade nesse incômodo. Tudo o que diz respeito aos trabalhadores (métodos de luta, palavras de ordem, etc.) é como se fosse propriedade privada das atuais organizações.

Mas, novamente, a AÇÃO do Black Bloc inverte a pergunta: na verdade, senhores, quem lhes deu o direito de controlar os processos de luta, com unha de ferro, no lugar dos trabalhadores? Mito de narciso às avessas, o método da ação direta acaba sendo uma espécie de espelho da crise de direção: utilizado pelo bloco negro, expõe à luz do dia os métodos da própria esquerda, e seu verdadeiro conteúdo de classe. E a esquerda, totalmente incapaz de auto-crítica, responde, por sua vez, exigindo que o Black Bloc "preste contas" de seus métodos.

Nas ruas trava-se uma verdadeira relação de força. Ou os meninos do Black Bloc aceitam o enquadramento na legalidade burguesa, ou a esquerda realiza uma auto-crítica, e tenta absorver a energia revolucionária do Black Bloc. Evidentemente, as direções não largam o osso. Só um imbecil acreditaria nisso. O Black Bloc, por sua vez, se mantém fiel a seus métodos (até quando?). No limite, a consequência é óbvia - e foi o que vimos ontem em São Paulo: na medida em que não conseguem reprimir a ação do bloco negro, a maioria dos setores da esquerda tende a defender, abertamente - em bloco branco! -, a legalidade burguesa.

O bloco negro não espera muito de si mesmo. Não encara a ação direta como meio de superar o capitalismo. Está claro. É inaceitável que uma organização que se propõe dirigir os trabalhadores contra o capital seja capaz de negar esta evidência. A ação direta é apenas uma tentativa imediata de recuperar o futuro. Se amanhã os trabalhadores tomarem as ruas, não fará o menor sentido a destruição de agências bancárias, ou concessionárias.

Nas Teses de Abril, Lênin propôs: "Fusão imediata de todos os bancos do país num banco nacional único sob controle dos Sovietes de deputados operários".

O conteúdo desta tese não está contido, de algum modo, na ação do Black Bloc? Porém, quanto aos meios para atingir esse objetivo, não faz o menor sentido exigir respostas do Black Bloc. Tal exigência é apenas um meio sórdido utilizado pelas organizações, para desviar o foco de suas próprias responsabilidades.

Se o espírito de junho não morreu, isso é devido à ação direta do Black Bloc. Os mesmos que, no Rio, usaram o próprio corpo para proteger os professores, contra a repressão. Os mesmos que, ontem, saíram às ruas com o objetivo de proteger o ato, e, mesmo assim, foram rechaçados pela esquerda, pelos próprios manifestantes.

No entanto, ao contrário do que muitos pensam, o repúdio da esquerda em relação ao Black Bloc não é pontual. É apenas a manifestação superficial de profundas mudanças nas condições da dominação burguesa no país, que, por diversos motivos, é cada vez mais instável.

A velha "espontaneidade das massas" pode e deve atingir níveis mais altos de radicalização. Consequentemente, os verdadeiros contornos dos atuais partidos da esquerda - todos, sem exceção, considerando o que representam atualmente -, tornar-se-ão cada vez mais nítidos, do ponto de vista de classe, isto é, aos olhos da classe trabalhadora.

Com certeza, a repressão da polícia não foi nada, em relação ao que pode. Mas, do outro lado não é diferente: o Black Bloc ainda é pouco!

Não se trata de acreditar no elemento espontâneo como meio de superação do capitalismo. Trata-se da certeza de que a radicalização espontânea é uma consequência inevitável das próprias contradições desse sistema. E que, portanto, tais contradições evidenciam a falta de horizonte das direções atuais. Isso ficou provado, mais uma vez, ontem.

Todo apoio ao Black Bloc!

Saudações vermelhas ao Bloco Negro!

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Cineclube Cinema em Revista (Vinheta)



Cineclube, experiência de recuperação do espectador morto. Espaço onde o óbito não é aceito sem diagnóstico. O especialista, neste caso, está desconvidado, o diagnóstico é feito de forma coletiva, sobre a égide do universalismo, em contraponto com a educação tecnocrata das instituições de ensino. O nosso ciclo é direto, Cinema-Greve. O cineclube é permanente, Cineclube Cinema Em Revista. Um participa da ação do outro. E afirmamos: A arte tem que ter uma perspectiva revolucionária, caso contrário, os ursinhos carinhosos dominarão. Será sempre convidado alguém que valha realmente a pena, inclusive, os sujeitos da mídia-piada brasileira. Neste caso, não garantimos que não ocorra um ataque feroz por parte dos presentes, sempre no nível do debate, mas prometemos lançá-lo para o abismo de suas contradições.

A parceria é com Cia Antropofágica, estômago antropofágico do teatro brasileiro. Nas suas encenações, o verbo explodir é uma ação de vitalidade estética, carregam T.N.T de baixo dos braços. Escarram na cartilha dos bons costumes cênicos. Seus animais, são os de bucho ruminante. Não poderíamos estar melhor acompanhados. 

No cardápio pipoca. Comida de índio. Supervalorizada pelo cinema de shopping. Para finalizar, o famoso passar chapéu, este dos mais variados, todos contendo o suor dos que ali exercem seu oficio.  

Estão quase todos convidados: 


“E sobretudo, meu corpo, da mesma forma que a minha alma, evitem ficar de braços cruzados em atitude estéril de espectador, porque a vida não é um espetáculo, porque um mar de dores não é um proscênio, porque um homem que grita não é um urso dançando...”

(Aimé Cesaire)

domingo, 29 de setembro de 2013

CINECLUBE CINEMA EM REVISTA


O Coletivo Cinefusão, em parceria com a Cia Antropofágica, convida para a estreia do "Cineclube Cinema em Revista", que terá início com o "Ciclo Cinema-Greve". Na primeira sessão, exibiremos três curtas: "Greve de Março" (de Renato Tapajós), "Rapsódia para um Homem Comum" (de Camilo Cavalcante) e "Dias de Greve" (do parceiro Adirley Queirós). A sessão é gratuita e ocorre a partir das 18h01, no Espaço Pyndorama (Rua Turiassú, 481), sempre no último domingo do mês. 

A representação do trabalhador no cinema remonta à primeira exibição pública, ocorrida em 1895, na qual foi exibido “A Saída da Fábrica Lumière em Lyon”. De lá para cá, os filmes não só se converteram em entretenimento, como também abriram possibilidade para uma perspectiva crítica. Com isso, o ciclo “Cinema-Greve” que propomos pretende resgatar, em primeiro lugar, o espaço de debate característico das experiências cineclubistas, além do prazer estético e experiência coletiva de assistir a um filme. Num primeiro momento, tratar do tema greve pode parecer simplista ou até mesmo uma obviedade. No entanto, é imprescindível entender inclusive como o capitalismo assimilou e incluiu em seu vocabulário cotidiano o termo greve. Greve de fome, greve de sexo, na tentativa de desarticular um instrumento da classe trabalhadora para combater aqueles que detêm os meios de produção. 
 
O evento no facebook está no link https://www.facebook.com/events/148998075307659/?ref=ts&fref=ts

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Violência, língua e literatura


Não há na violência
que a linguagem imita
algo da violência
propriamente dita?

(Cacaso)




Num belo trecho, Lev Davidovich tenta explicar a beleza da língua francesa do seguinte modo:

"A língua francesa, tão bela, tão acabada em suas formas, e cuja polidura herdou, por certo, alguma coisa de um instrumento tão acerado como a guilhotina, será novamente precipitada, por efeito da dialética histórica, num profundo cadinho, para uma refundação a alta temperatura. Sem nada perder de sua lógica perfeita, adquirirá maior maleabilidade. A revolução da linguagem exprimirá uma nova revolução no domínio das ideias. Esta, por sua vez, não se dissocia de uma revolução no domínio das coisas".

Assim, a “dialética intrínseca” (outra expressão de Lev Davidovich) dos processos históricos determina as possibilidades formais de uma língua. A revolução burguesa, na França, com suas guilhotinas, “acerou” o gume da língua francesa. Vale citar, nesse sentido, aquele que talvez seja o maior romancista francês do século XIX:

Terminarei com a pena aquilo que Napoleão iniciou com a espada”. (Balzac)

Claro, a obra literária não possui um décimo do poder político de Napoleão, e seu exército. Não é disso que se trata. É um mergulho, através da criação, nas profundezas sociais que, de algum modo, foram sedimentadas pela ação militar do Imperador. Devemos considerar, também, uma leve ironia nas palavras de Balzac: os grandes artistas recebem a herança da ação dos homens, e é com esta herança que devem contar, encarando-a de frente - muitas vezes, inclusive, de costas para o futuro. Basicamente, Lev Davidovich não diz outra coisa. Assim, a pretensão de Balzac ultrapassa a si mesma. O elogio aparente de Napoleão, por sua vez, é uma isca para tolos – no caso, seus leitores, a própria burguesia francesa. 

É notável a agudeza da observação: num simples comentário, Lev Davidovich remete às conclusões mais avançadas do marxismo aplicado aos estudos linguísticos, fazendo lembrar imediatamente a obra de Mikhail Bakhtin – a qual, certamente, não havia lido, por motivos óbvios (Bakhtin foi caçado pelo stalinismo...). Apesar da brevidade do trecho, o modo de formular o problema não reduz a complexidade do fenômeno. Pelo contrário: utiliza poucas linhas para sugerir a riqueza de relações entre luta de classes e desenvolvimento linguístico.

A guilhotina dos jacobinos “acerou” a língua francesa, acompanhando mudanças ocorridas em todos os domínios da vida social – que tanto interessava a Balzac -, e, principalmente, enquanto durou a rápida ascensão da burguesia, logo interrompida pela insurgência grandiosa do movimento operário (1848). Daí em diante, não só o idioma, mas a própria literatura européia entra em franco declínio, de um modo geral – crise do romance realista, entre outros.

Para além do caso específico da França, há outros, em que a violência intrínseca à vida social, de algum modo, influi decisivamente na literatura. Por mais que acentuemos a face lírica em Guimarães Rosa, por exemplo, é evidente como a ausência de lei na vida sertaneja comparece em sua prosa, na própria reinvenção constante da linguagem. O sertão é o lugar do susto: as leis são feitas e desfeitas a cada passo, conforme o desejo do mais forte. Assim é que, igualmente, na prosa do autor, o leitor é "assaltado", a cada passo um susto. Um lampejo. Uma nova ordem "cósmica" se instala, para desaparecer na sequência - só que, ao invés do risco de tomarmos uma facada, um tiro, ou nada, somos agraciados com o poder da invenção - que renova-se a si mesmo.

Voltando. Na Rússia (Lev Davidovich era russo), o passado também deixou cicatrizes no idioma. Porém, nesse caso, é a boçalidade e a grosseria, que se comunicam profundamente à estrutura mesma da língua. Seria ingenuidade, ou má-fé, imaginar que a luta de classes esteja ausente no processo histórico pelo qual estrutura-se uma língua, em determinado país. Pelo contrário, conforme demonstra Bakhtin, a luta de classes é surpreendentemente um meio eficaz de explicar a engrenagem completa de um idioma. 

Parece que, de algum modo, as regras básicas do idioma – sobretudo as regras vivas da língua oral – guardam em si uma espécie de propensão natural à violência. Praticamente escorregam da língua, por assim dizer, expressões grosseiras e brutais. Mas será que se trata apenas de aparência? Será exagero? De fato, talvez seja apenas um enorme poder de síntese - refiro-me ao enorme poder de síntese da brutalidade verbal - num meio que, afinal de contas, é dominado pela brutalidade social.

No entanto, a primeira revolução proletária da História ocorreu na Rússia, país atrasado. O que isso tem haver? É que, do mesmo modo, a literatura russa atingiu níveis altíssimos de expressão - apesar da brutalidade. Níveis inesperados, talvez, como a própria revolução. Mas, será mesmo "apesar" do atraso? Basta lembrar da grosseria de Fiódor, pai dos irmãos Karamazov. Ou, então, a violência abstrata do conto O Nariz, de Gógol, em que o major Kovaliov, ao se olhar no espelho depara-se com a ausência do próprio nariz, num "lugar perfeitamente raso" (até mesmo a descrição do que seria, mais simplesmente, um "buraco", é totalmente enviesada, obscura, e, portanto, violenta: afinal, o que seria, em lugar do nariz, um "lugar perfeitamente raso"?). 

Como dizíamos, a literatura russa atingiu níveis altíssimos de expressão - "apesar" do atraso. Como isso é possível? Assim perguntavam os críticos da burguesia, do mesmo modo que a social-democracia alemã (e atual) teve de engolir a Revolução de Outubro, sem jamais entendê-la completamente. Entretanto, não será justamente o atraso, aparecendo como obstáculo à criação, que, "superado", converte-se no que há de mais avançado na época? Superando, inclusive, ou adiantando-se, ao “modelo de lá” - “mais avançado.” Dostoievski é o grande exemplo, talvez, na Rússia (e Machado de Assim, entre nós, deveria, talvez, ser mais... exemplar). Ler bem Machado, é deixar que ele nos leia.

Para encerrar, voltemos a nosso autor, Lev Davidovich. Ele diz, noutra ocasião:

"A grosseria de linguagem - em particular, a grosseria russa - é uma herança da servidão, da humilhação e do desprezo pela dignidade humana. Seria necessário perguntar aos linguistas e aos folcloristas se noutros países verifica-se uma grosseria tão desenfreada, tão repugnante, como entre nós".

Certamente, Davidovich não conhecia o Brasil. Mas, claro, é compreensível sua revolta. De passagem, para terminarmos, vale a pena citar mais um bocadinho suas palavras, verdadeiramente reveladoras de alguns traços da nossa miséria atual: "Mas, nas camadas populares, a grosseria exprime o desespero, a irritação e, acima de tudo, uma situação sem esperança e sem saída". 

Como pensar, nesse sentido, o funk? É comum a depreciação. Nota-se uma reação violenta, muitas vezes, em relação a um "gênero" musical que, em todo caso, está largamente difundido entre as camadas miseráveis da população - sobretudo nos grandes centros urbanos. De fato, dificilmente se verá, como no funk, tamanha brutalização da linguagem. No entanto, é preciso notar como a reação dos delicados, quase sempre, é tão ou mais violenta que o próprio funk. Sobretudo porque, disfarçada de bom gosto (que quase sempre nunca é tanto...), o que se insinua é um forte preconceito de classe, o velho racismo de sempre. Impulso proto-fascista de higienização "cultural" (que, no entanto, tem o "corpo negro" alheio como alvo). 

Ora, se Lev Davidovich estiver certo, então, ao contrário do que diz a classe-média, é o desespero e a falta de esperança que explica a brutalização da linguagem, no funk, e não um simples "mau gosto". Quer dizer, se o desespero for real, os "funkeiros" talvez sofram muito mais com a vida que levam, do que a classe-média, obrigada a "tolerá-los". 


segunda-feira, 23 de setembro de 2013

O Soldado de La Ciotat (Bertold Brecht)

Depois da primeira guerra mundial, vimos na pequena cidade portuária de La Ciotat, no sul da França, junto a uma feira realizada para celebrar o lançamento à água de um navio, em uma praça pública, a estátua em bronze de um soldado do exército francês, ao redor da qual se aglomerava a multidão. Nós nos aproximamos e descobrimos se tratar de um homem vivo que estava ali de pé, imóvel, vestindo um capote marrom-terra, o capacete de aço na cabeça, uma baioneta nos braços, sob o sol quente de junho, sobre um pedestal de pedra. O rosto e as mãos dele tinham sido pintados de uma cor bronze. Ele não mexia nenhum músculo, nem mesmo pestanejava. A seus pés, junto ao pedestal, apoiava-se um pedaço de papelão, sobre o qual podia-se ler o seguinte texto: 

O Homem Estátua 
(Homme Statue)

Eu, Charles Louis Franchard, soldado do ...° Regimento, adquiri, como consequência de ter sido enterrado vivo em Verdun, a invulgar capacidade de permanecer totalmente imóvel e de comportar-me, durante o tempo que for desejado, como uma estátua. Essa minha habilidade foi investigada por muitos docentes e descrita como uma doença inexplicável. Por favor, faça uma pequena caridade a um pai de família sem trabalho! 

Nós jogamos uma moeda no prato que estava ao lado desse cartaz e, a balançar a cabeça, continuamos caminhando.

Eis que, pensamos nós, aqui está ele, armado até os dentes, o soldado indestrutível de muitos milênios, ele, com o qual se fez história, ele, que tornou possíveis todos esses grandes feitos de Alexandre, César, Napoleão sobre os quais lemos nos livros didáticos. Isso é ele. Não pestaneja. Esse é o arqueiro de Ciro, o condutor de bigas de Cambises, que a areia do deserto não conseguiu enterrar por definitivo, o legionário de César, o lanceiro de Gengis Khan, o membro da Guarda Suíça de Luís XIV, e o granadeiro de Napoleão I. Possui a capacidade, no fim das contas nem tão rara assim, de passar desapercebido quando todas as ferramentas de destruição imagináveis são testadas nele. Ele permaneceria como uma pedra, impassível (diz ele), quando enviado para a morte. Varado por lanças das mais diferentes épocas, de pedra, de bronze, de ferro, abalroado por veículos de guerra, os de Artaxerxes e os do general Ludendorff, pisoteado pelos elefantes de Aníbal e pelos cavaleiros de Átila, destroçado por pedaços de metal volantes das cada vez mais perfeitas peças de artilharia de séculos a fio, mas também pelas pedras volantes das catapultas, dilacerado por balas, grandes como ovos de pomba e pequenas como abelhas, ele continua de pé, indestrutível, de novo e de novo, a receber ordens em diversas línguas, mas sempre ignorando por quê e para que. As terras por ele conquistadas, não coube a ele possuí-las, da mesma forma como o pedreiro não mora na casa que construiu. Tampouco lhe pertencia a terra que defendeu. Nem mesmo sua arma ou seus equipamentos lhe pertencem. Mas continua de pé, sobre ele a chuva mortal dos aviões e o betume ardente das muralhas da cidade, sob ele minas e armadilhas, ao redor dele peste e gás mostarda, isca de carne e osso para lanças e flechas, ponto de mira, lama de tanques, fogareiro a gás, diante dele o inimigo, atrás dele o general! 

Incontáveis as mãos que lhe costuraram o gibão, lhe martelaram o arnês, lhe talharam as botas! Incontáveis os bolsos que se encheram por meio dele! Incomensurável o brado em todas as línguas do mundo que o encorajou! Nenhum deus que a ele não abençoasse! A ele que está acometido da terrível lepra da paciência, tornado oco pela incurável doença da impassibilidade!

Que tipo de enterro, imaginamos nós, é esse a que ele deve essa doença, essa terrível, monstruosa, tão contagiosa doença? 

Ela não deveria ser curável?

domingo, 22 de setembro de 2013

"Experiência" (Walter Benjamin)


Travamos nossa luta por responsabilidade contra um ser mascarado. A máscara do adulto chama-se "experiência". Ela é inexpressiva, impenetrável, sempre a mesma. Esse adulto já vivenciou tudo: juventude, ideias, esperanças, mulheres. Foi tudo ilusão. Ficamos, com frequência, intimidados ou amargurados. Talvez ele tenha razão. O que podemos objetar-lhe? Nós ainda não experimentamos nada.

Mas vamos tentar agora levantar essa máscara. O que esse adulto experimentou? O que ele nos quer provar? Antes de tudo, um fato: também ele foi jovem um dia, também ele quis outrora o que agora queremos, também ele não acreditou em seus pais: mas a vida também lhe ensinou que eles tinham razão. E então ele sorri com ares de superioridade, pois o mesmo acontecerá conosco - de antemão ele desvaloriza os anos que estamos vivendo, converte-os na época das doces asneiras que se cometem na juventude, ou no êxtase infantil que precede à longa sobriedade da vida séria. Assim são os bem-intencionados, os esclarecidos. Mas conhecemos outros pedagogos cuja amargura não nos proporciona nem sequer os curtos anos da "juventude"; sisudos e cruéis querem nos empurrar desde já para a escravidão da vida. Ambos, contudo, desvalorizam, destroem os nossos anos. E, cada vez mais, somos tomados pelo sentimento de que a nossa juventude não passa de uma curta noite (vive-a plenamente, com êxtase!); depois vem a grande "experiência", anos de compromisso, pobreza de ideias, lassidão. Assim é a vida, dizem os adultos, eles já experimentaram isso.

Sim, isso experimentaram eles, a falta de sentido da vida, sempre isso, jamais experimentaram outra coisa. A brutalidade. Por acaso eles nos encorajaram alguma vez a realizar algo grandioso, algo novo e... futuro? Oh, não, pois isso não se pode mesmo experimentar. Tudo o que tem sentido, o verdadeiro, o bem, o belo está fundamentado em si mesmo - o que a experiência tem haver com isso? E aqui está o segredo: uma vez que o filisteu jamais levanta os olhos para as coisas grandiosas e plenas de sentido, a experiência transformou-se em seu evangelho. Ela converte-se para ele na mensagem da vulgaridade da vida. Ele jamais compreendeu que existe outra coisa além da experiência, que existem valores que não se prestam à experiência - valores a cujo serviço nos colocamos.

Mas por que então a vida é absurda e desconsolada para o filisteu? Porque ele só conhece a experiência, nada além dela; porque ele próprio se encontra privado de consolo e espírito. E também porque ele só é capaz de manter relação íntima com o vulgar, com aquilo que é o "eternamente ontem".

Nós porém conhecemos outra coisa, algo que nenhuma experiência nos pode proporcionar ou tirar: sabemos que existe a verdade, ainda que tudo o que foi pensado até agora seja equivocado. Sabemos que a fidelidade precisa ser sustentada, ainda que até agora ninguém a tenha sustentado. Nenhuma experiência pode nos privar dessa vontade. Mas, será que em um ponto os pais teriam razão com os seus gestos cansados e sua desesperança arrogante? Será necessário que o objeto da nossa experiência seja sempre triste, que não possamos fundar a coragem e o sentido senão naquilo que não pode ser experimentado? Nesse caso então o espírito seria livre. Mas, sempre e sempre, a vida o estaria rebaixando, pois, enquanto soma das experiências, a própria vida seria um desconsolo.

Agora, porém, não entendemos mais o porquê dessas questões. Por acaso guiamos a vida daqueles que não conhecem o espírito? Guiamos a vida daqueles cujo "eu" inerte é arremessado pela vida como por ondas junto a rochedos? Não. Pois cada uma de nossas experiências possui efetivamente conteúdo. Nós mesmos conferimos-lhe conteúdo a partir do nosso espírito. A pessoa irrefletida acomoda-se no erro. "Nunca encontrarás a verdade", grita ela àquele que busca e pesquisa, "eu já vivenciei tudo isso". Para o pesquisador, contudo, o erro é apenas um novo alento para a busca da verdade (Espinosa). A experiência é carente de sentido e espírito apenas para aquele já desprovido de espírito. Talvez a experiência possa ser dolorosa para a pessoa que aspira à verdade, mas dificilmente a levará ao desespero.

Em todo caso, essa pessoa jamais será acometida de resignação apática ou se deixará entorpecer pelo ritmo da vida. Já o filisteu - como já percebeste - rejubila-se apenas com todo fato que demonstra de novo a falta de sentido. Ele tinha portanto razão. Certifica-se assim que na realidade o espírito não existe. Mas ninguém exige submissão mais rígida, "veneração" mais rigorosa diante do "espírito" do que ele. Pois se elaborasse críticas, ele seria obrigado a participar, e disso ele não é capaz. Até mesmo na experiência do espírito, que ele realiza a contragosto, não consegue sentir o espírito.

Diga-lhe
Que pelos sonhos da sua juventude
Ele deve ter consideração, quando for homem

(Schiller)

Nada é mais odioso ao filisteu do que os "sonhos da juventude". (E, quase sempre, o sentimentalismo é a camuflagem desse ódio). Pois o que surge nesses sonhos é a voz do espírito, que também o convocou um dia, como a todos os homens, mas ele não foi. A juventude será a lembrança eternamente incômoda dessa convocação. Por isso ele a combate. O filisteu fala daquela experiência cinzenta e prepotente, e aconselha o jovem a zombar de si mesmo. Sobretudo porque "vivenciar" sem o espírito é confortável, embora funesto.

Mais uma vez: conhecemos uma outra experiência. Ela pode ser hostil ao espírito e aniquilar muitos sonhos florescentes. No entanto, é o que existe de mais belo, de mais intocável e inefável, pois ela jamais estará privada de espírito se nós permanecermos jovens. Sempre se vivencia apenas a si mesmo, diz Zaratustra ao término de sua caminhada. O filisteu realiza a sua "experiência", eternamente a mesma expressão de ausência de sentido. O jovem vivenciará o espírito, e quanto mais difícil lhe for a conquista de coisas grandiosas, tanto mais encontrará o espírito por toda parte em sua caminhada e em todos os homens. O jovem será generoso quando homem adulto. O filisteu é intolerante. 

Walter Benjamin - 1913

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Uma pedagogia comunista (Walter Benjamin)



Psicologia e ética são os polos em torno dos quais se agrupa a pedagogia burguesa. Não se deve supor que ela esteja estagnada. Ainda atuam nela forças ativas e, por vezes, também significativas. Apenas, nada podem fazer contra o fato de que a maneira de pensar da burguesia, aqui como em todos os âmbitos, está cindida de uma forma não dialética e rompida interiormente. Por um lado, a pergunta pela natureza do educando: psicologia da infância, da adolescência; por outro lado, a meta da educação: o homem integral, o cidadão. A pedagogia oficial é o processo de adaptação mútua entre esses dois momentos - a predisposição natural abstrata e o ideal quimérico - e os seus progressos obedecem à orientanção de substituir cada vez mais a violência pela astúcia. A sociedade burguesa hipostasia uma essência absoluta da infância ou da juventude, à qual ela atribui o nirvana dos escoteiros, hipostasia uma essência igualmente absoluta do ser humano ou do cidadão, adornando-a com os atributos da filosofia idealista. Na verdade, ambas as essências são máscaras complementares entre si, do concidadão útil, socialmente confiável e ciente de sua posição. É o caráter inconsciente dessa educação, ao qual corresponde uma estratégia de insinuações e empatias: "As crianças tem mais necessidade de nós do que nós delas", eis a máxima inconfessada dessa classe, que subjaz tanto às especulações mais sutis de sua pedagogia como á sua prática de reprodução. A burguesia encara a sua prole enquanto herdeiros; os deserdados, porém, a encaram enquanto apoio, vingadores ou libertadores. Esta é uma diferença suficientemente drástica. Suas consequências pedagógicas são incalculáveis. 

Em primeiro lugar, a pedagogia proletária não parte de duas datas abstratas, mas de uma concreta. A criança proletária nasce dentro de sua classe. Mais exatamente, dentro da prole de sua classe, e não no seio da família. Ela é, desde o início, um elemento dessa prole, e não é nenhuma meta educacional doutrinária que determina aquilo que essa criança deve tornar-se, mas sim a situação de classe. Esta situação penetra-a desde o primeiro instante, já no ventre materno, como a própria vida, e o contato com ela está inteiramente direcionado no sentido de aguçar desde cedo, na escola da necessidade e do sofrimento, sua consciência. Esta transforma-se então em consciência de classe. Pois a família proletária não é para a criança melhor proteção contra uma compreensão cortante da vida social do que o seu puído casaquinho de verão contra o cortante vento de inverno. Edwin Hoernle dá suficientes exemplos de organizações infantis revolucionárias, greves escolares espontâneas, greves de crianças durante a colheita de batatas, etc. O que diferencia os movimentos de seu pensamento das melhores e mais sinceras reflexões por parte da burguesia é que ele considera seriamente não apenas a criança, a natureza infantil, mas também a situação de classe da própria criança, situação essa que jamais constitui um problema real para o "reformador escolar". A este Hoernle dedicou o penetrante parágrafo final de seu livro, que tem haver ainda com os "reformadores sociais austro-marxistas" e com o "idealismo pedagógico de fachada revolucionária", os quais levantam protestos contra a "politização da criança". Mas - assinala Hoernle - será que escola primária e profissionalizante, militarismo e Igreja, associações de juventude e escoteiros seriam, em sua função oculta e exata, outra coisa senão instrumentos de uma instrução antiproletária dos proletários? A essas instituições contrapõe-se a educação comunista, seguramente não de maneira defensiva, mas sim enquanto uma função da luta de classes. Da luta de classe pelas crianças, as quais lhe pertence e para as quais a classe existe. 

Educação é função da luta de classes, mas não apenas isso. Ela coloca, segundo o credo comunista, a avaliação completa do meio social dado a serviço de metas revolucionárias. Mas, como esse meio social não é apenas lutas, mas também trabalho, a educação apresenta-se ao mesmo tempo como educação revolucionária do trabalho. Este livro dá o melhor de si ao tratar do programa dos bolcheviques em um ponto decisivo. Durante a era de Lênin teve lugar na Rússia a significativa discussão a respeito de formação monotécnica ou politécnica. Especialização ou universalismo do trabalho? A resposta do marxismo proclama: universalismo! Apenas enquanto o homem vivencia as mais diferenciadas transformações do meio social, apenas ao mobilizar sempre de novo, em cada novo meio, as suas energias, colocando-as a serviço da classe, apenas assim ele atinge aquela disposição universal para a ação, a qual o programa comunista contrapõe àquilo que Lênin chamou de "o traço mais repugnante da velha sociedade burguesa": a dissociação entre prática e teoria. A ousada e imprevisível política dos russos em relação à mão de obra é inteiramente o produto desse novo universalismo, não contemplativo e humanista, mas ativo e prático: o universalismo da disposição imediata. A incalculável possibilidade de aproveitamento da pura força de trabalho humana, possibilidade que a todo momento o capital traz á consciência do explorado, retorna, em estágio superior, enquanto formação politécnica do homem, em oposição à especializada. São princípios fundamentais da educação das massas, cuja fecundidade para a educação dos jovens se pode apalpar com as mãos. 

Apesar disso, não é fácil aceitar sem reservas a formulação de Hoernle  de que a educação das crianças não se distingue em nada de essencial da educação das massas adultas. Em face de considerações tão ousadas damo-nos conta de quão desejável ou mesmo quão necessário seria complementar a exposição política que aqui se apresenta com uma exposição filosófica. Mas, sem dúvida alguma, faltam ainda todos os trabalhos preliminares para um estudo materialista da criança proletária. (Do mesmo modo como, desde Marx, o estudo do proletariado adulto não ganhou nada de novo). Esse estudo não seria outra coisa senão um confronto com a psicologia da criança, cuja posição teria então de ser substituída por minuciosos protocolos - elaborados segundo os princípios do materialismo histórico - a respeito daquelas experiências que foram realizadas nos jardins de infância proletários, grupos de jovens, teatros infantis, ligas da juventude. 

É efetivamente um manual, mas ainda mais do que isso. Não há na Alemanha, fora dos escritos políticos e econômicos, nenhuma literatura marxista ortodoxa. É esta a principal causa da surpreendente ignorância dos intelectuais - com inclusão da esquerda - a respeito de abordagens marxistas de assuntos mais amplos. Com penetrante autoridade, o livro de Hoernle  demonstra em relação a um dos temas mais elementares, a pedagogia, o que é o pensamento marxista ortodoxo e para onde ele leva. Deve-se tê-lo sempre em mente.

Walter Benjamin - 1929

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segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Coletivos lançam abaixo-assinado pela permanência de espaço cultural em SP

retirado de http://www.brasildefato.com.br/node/14527

Coletivos culturais lançaram na internet um abaixo-assinado pela continuidade e ampliação da ocupação do Clube da Comunidade (CDC) Vento Leste, espaço público que reúne diversos grupos que exercem atividades diariamente. O CDC, situado na cidade Patriarca, zona leste de São Paulo, está ameaçado pela sub-prefeitura da Penha, que quer construir uma creche no local.

Segundo os coletivos, que ocupam o espaço há dez anos, parte do terreno já foi fracionada para a construção de um posto de saúde e de uma escola municipal.

“Não somos contrários à construção de creches, mas não às custas de um espaço organizado e autogerido de cultura e esportes da cidade. Estamos juntos na luta pela procura de novos espaços que atendam às demandas da comunidade, sem sobrepor, entretanto, uma necessidade a outra. A arte não é menos importante”, ressaltam em nota.

O Clube da Comunidade Vento Leste é o único local cultural-desportivo da região, que desenvolve desde aulas de capoeira e campeonatos de futebol, até oficinas de teatro e reuniões de recuperação para dependentes químicos.


Para assinar a petição pública, clique aqui.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Trilogia : Morte aos artistas. 1º parte : Roberto Benigni e a torre de Paris.


“Estar vivo não significa viver” e como sinfonia as palavras do dramaturgo alemão batiam nas paredes da subjetividade de um sujeito qualquer. Frequentava a lâmina para desfazer o mal entendido, lia o Rei da Vela com uma catarata, herdada do tropicalismo num hedonismo que dava tédio. O cigarro era sempre metade do mesmo cigarro. Não tinha outra forma, assim como não tinha forma. Inocente-pueril comia o branco das páginas e só o branco das páginas, a palavra pouco lhe interessava filisteu meio termo, dotado de um narcisismo do seu próprio peido, segundo ele: Perfumado. O seu único interesse era desenhar o seu eterno espelho. Roberto Benigni e a torre de Paris. 

Num comercial as artes dramáticas lhe ajudavam, efeito de seu curso técnico. No armário o arroz integral impedia dele explodir a linguagem. Nunca abusa do álcool. Dentro do seu crânio: O hermético é a fruição estética do homem solitário. Repetia - Estou só, degenerado do sensível. Recebe um convite: VIAJAR FICOU MAIS FÁCIL. Tem o limite, não pode ir além, cortou os cabelos ouvindo Frederic Chopin numa cena melodramática, e foi atrás dos amigos. De volta ao possível, seu monologo, tem direção de um Norueguês renomado. Narrativas míticas, nome de opereta, assim denominava. O fundo do conteúdo era a história do tarô, assim concebia o seu ilustre monologo. Teve público.  

A noite do piru – faixa do motel popular: Depois da leitura de Macunaíma, o artista fica arfando por uma experiência transcendental. Numa tipografia concebida a pena, ele pensa ser Victor Hugo e anos após sua morte é encontrado o seu fatalismo bilhete: 

No balcão uma fêmea seminua, em volta do seu pescoço uma cobra enrolada. O aspecto do lugar é hostil. Falta um pouco de cor e talvez um quadro abstrato no canto direito do ambiente. As minhas mãos estão soltando água suficiente para um copo. Tenho a enorme vontade de cheirar toda uma prostituta, o amor deve estar nos lugares mais sobrenaturais. Duas mulheres, uma chupada com dentes, me excita ao ponto de imaginar a língua de um cavalo   

A canoa do amor se quebrou. Volta entoando pra casa. Na juventude leu poesia russa moderna. No elevador junto a ele, um rapaz com óculos que no lugar da haste tem fio de fone de ouvido. – Você é da schindler( Elevator company)- Não, não sei nem do que se trata.

  
‘’ O artista novo é comedido, compara passado como algo anacrônico, e presente como uma coisa só. Acende vela para o santo como um desesperado por esperança. Está desajustado com sua realidade material, e tem apenas fé nos projetos de reforma ‘’   

(Carlos Carrara
 colunista da revista:
 Klaxon nova edição)   


Após o artigo todo parece ter um momento de sapiência. Olha no espelho e já não se vê como um europeu – o bacharel, veste suas calças e vai decidido cancelar o seu monologo. Antes tem de ir ao um almoço no edifício paulista, reunião sobre a pensão da filha. Está com pouco dinheiro. O advogado já é conhecido, estudaram juntos. Chega transtornado. Depois de muita conversa fala abertamente – Temos que começar a filosofar sobre o Brasil. 


Não entendeu nada o Roberto Benigni da torre de Paris. 

domingo, 1 de setembro de 2013

Literatura, ética e política em Sartre - (Franklin Leopoldo e Silva), trechos e comentários.



(Abaixo, algumas passagens de um bonito texto de Franklin Leopoldo e Silva, que procura demonstrar o modo pelo qual, no pensamento de Sartre, a definição de ética e política iluminam-se à luz da  literatura - e vice-versa. Tentei escrever alguns comentários às passagens citadas. No final, o link com o texto inteiro).



“A historicidade refluiu sobre nós; em tudo que 
tocávamos, no ar que respirávamos, na página que líamos, naquela que 
escrevíamos, no próprio amor, descobríamos algo como um gosto de história, 
isto é, uma mistura amarga e ambígua de absoluto e de transitório”

(Sartre - Que é a literatura)




Começando por aquilo que poderíamos chamar a descoberta de nossa condição histórica, que, segundo o autor, é dramática em si mesma - para além de seu conteúdo atual, em certo sentido. Deve-se acrescentar que o peso dessa dramaticidade é negativo, sobretudo quando a descoberta é praticamente involuntária - ou seja: a história quem nos descobre, desnudando a condição do sujeito para si mesmo. 

historicidade é uma dimensão da existência, por certo. Mais importante do que a constatação é a dramaticidade da descoberta.

Pois, segundo Sartre, sua geração não chegou à história através da análise da historicidade da existência; pelo contrário, foi a história concreta, enquanto portadora do mal, que desabou sobre as suas cabeças e os fez compreender a historicidade através da experiência imediata do mal absoluto trazido pela transitoriedade da história.

Aqui o "mal", talvez, fundamentalmente, era o holocausto. Talvez porque não apenas. Nosso "habitat natural", no caso, a historicidade, é tudo, menos natural.

Assim, a história não é o ambiente do sujeito-agente histórico, de forma semelhante à que a natureza é o ambiente dos seres naturais. O homem não está na história como os seres naturais estão na terra como habitat. Historicidade não tem sentido paralelo ao de naturalidade. 
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Assim, a consciência de nossa condição histórica precisa ser "arrancada" à História.

"Historicidade significa que a história somente existe na medida em que o homem a faz fazendo-se ser histórico, o que implica tanto as determinações objetivas que nos constituem quanto as possibilidades de negá-las e superá-las pela liberdade".
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Entrando para os domínios da literatura, deve-se constatar, entre outras coisas, que a função social do leitor não se distingue fundamentalmente da função social do escritor:

"É nesse sentido (...) (que se) justifica a definição da narrativa como reciprocidade tensa da liberdade do escritor e da liberdade do leitor e nos faz entender que essa relação se constitui também ao mesmo tempo como experiência de compromisso, nos termos da função social da literatura enquanto prosa narrativa".
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Ambiguidade não é relativismo; por outras palavras: por mais que seja necessária a constatação de uma relativa aleatoriedade na vida cotidiana (de onde Sartre supõe a liberdade inevitável), jamais será o suficiente para imaginarmos a possibilidade de uma realização plena do sujeito. Ambiguidade não é relativismo. A ambiguidade e a transitoriedade da vida cotidiana é uma espécie de "liberdade condicional", que a literatura buscará dar forma:

"Assim como a descoberta da história não significa assumir o relativismo, mas sim a ambiguidade que une e separa o absoluto do transitório em tudo que seja humano, assim também a historicidade da literatura não significa a eleição dos particularismos e das circunstâncias como únicos temas, mas a figuração ficcional pela qual a narrativa singulariza no contorno de situações concretas a universalidade do drama da existência". 
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Quando a literatura obtém êxito, na exposição dessa ambiguidade ("extrema liberdade" que aprisiona o homem), a reação do leitor deve consistir - e de fato consiste - na intensificando do processo de leitura, enquanto aprofundamento no conhecimento de sua própria condição histórica:

"É nesse sentido que o escritor fala a seus contemporâneos, e que age através da palavra ao apresentar-lhes, não uma representação qualquer, mas um espelho que os reflita criticamente e que os provoca a responder pela leitura enquanto ressignificação da escrita. É a construção desse espelho crítico que podemos entender como o sentido ético e político da literatura, se tal construção corresponder à descrição da intersubjetividade no plano das práticas constituintes da existência histórica".
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Surgem algumas perguntas no caminho:

"Muitos viram nessa proposta de engajamento uma espécie de golpe fatal na autonomia da literatura. 

- Se o escritor se dirige ao leitor participante do mesmo drama histórico que configura uma época determinada com o intuito de convocá-lo a uma representação crítica da história vivida, isso não significaria fechar necessariamente o foco da literatura na dimensão conjuntural do presente, e mesmo de uma situação específica?".

Há uma diferença entre "história vivida" (a qual a grande literatura não deve retratar, mas retrata, inevitavelmente), e "dimensão conjuntural do presente". Se voltarmos aos trechos anteriores, veremos que, na visão de Sartre, a "história vivida" ultrapassa em muito a dimensão "conjuntural" do presente. Esta, diferentemente da "história vivida", não pressupõe necessariamente um movimento de totalização.

"Não estaria o escritor praticando deliberadamente a recusa de admitir o horizonte do leitor universal?".

Não existe "leitor universal". Em todo caso, seria necessário defini-lo. E, pelo que se viu até aqui do pensamento de Sartre, não há espaço para este "personagem".

Ademais, teria o escritor o direito de fazer da literatura um apelo que traga ao leitor a incômoda lembrança de que ele deveria fazer do exercício de sua liberdade uma tomada de posição no contexto de uma situação, sempre historicamente definida? 

Aqui avançamos na definição de "exercício da liberdade". Em Sartre, o homem está condenado à liberdade. Terá que exercê-la inevitavelmente, ou melhor: terá de lidar com ela até o fim de seus dias. Essa condição deriva da possibilidade, diariamente renovada, de voltarmos os olhos na direção do passado, isto é, para as determinações históricas que nos constituem. Por mais pesada que seja a herança do passado, sempre restará uma margem de locomoção do olhar, que nos permite, ao menos, enxergar este peso.

Esta margem de ação virtual, por assim dizer, quando o homem a ignora, aparece enquanto sensação de contingência, impressão constante de que a "vida é oca", e que, de algum modo, as coisas acontecem sem propósito. É que, no caso, o terreno de exercício da liberdade estará vago, por assim dizer - vazio constitutivo da realidade mesma do indivíduo, e que só pode ser "preenchido" por narrativas capazes de situá-lo historicamente - a cada minuto devemos preencher novamente esse "espaço".

O combate da aleatoriedade aparece enquanto "tomada de posição" em cada novo contexto da existência. Nesse sentido, a pergunta é auto-supressiva, nega a si mesma, já que o leitor consciente do exercício de sua própria liberdade não sentirá incômodo nenhum em ser lembrado desta consciência, que já possui. Então, devemos perguntar, para responder devidamente a pergunta: de qual espécie de leitor se trata?

E por que o escritor, também ele, teria de situar sua liberdade frente àquilo que é necessário dizer? 

Ora, se o escritor não situar sua liberdade frente àquilo que é necessário dizer, não poderá situá-la em lugar nenhum. Mas, por que o escritor precisa situar sua liberdade? Porque, do contrário, tornar-se-á refém desta liberdade, isto é, não compreenderá os limites de sua própria condição individual. De modo que, nos termos de Sartre, entre a liberdade estritamente inevitável, e a não-liberdade absoluta (a morte, talvez), é preferível esta última. A liberdade estritamente necessária, que não busca compreender a si mesma enquanto tal, é origem de sofrimentos incalculáveis. Não é possível existir escritor à margem de si mesmo.

As perguntas acima, quase redundantes em sua obviedade, servem para testar a compreensão do leitor. Como diria Morelli (personagem de Cortázar, em O Jogo da Amarelinha), numa posição abertamente sartreana: é preciso identificar e evitar o "leitor-fêmea".
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Ao mesmo tempo em que não existe, a rigor, um "leitor universal", também não existem mais públicos delimitados. A quem se dirige, então, o escritor "demitido socialmente"?

"O escritor não tem público desde que, no século XIX, a burguesia o desinvestiu da função de justificar os interesses de classe, ao descobrir que o intelectual já não mais lhe interessa porque ela já não tem necessidade de seus serviços, a não ser no mero plano secundário do entretenimento. Ao recusar a mediação do entretenimento, o escritor corroborou a sua demissão social".
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O escritor está à deriva. Que fazer? Lançar-se nos braços do proletariado? Ou seja: cumprir, a rigor, o mesmo papel desempenhado em favor da burguesia, até o séc. XIX, porém agora contra a burguesia? Deve-se notar que a ideia da revolução proletária rejeita necessariamente a figura do intelectual, já que o processo histórico que os fez aproximarem-se do proletariado é realmente uma espécie de "demissão". A figura do intelectual, assim, está desmoralizada. Não há retorno:

"Mas como a universalidade formal foi desmascarada quando a burguesia tornou-se classe dominante, e nessa denúncia consiste precisamente uma das principais frentes de combate do proletariado, a instrumentalização do escritor seria inócua e inconsequente: a burguesia conhece por experiência o que significa o papel do intelectual numa luta política e qualquer partido de esquerda aceita com relutância esse personagem sem fé, cuja fidelidade é problemática".
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Ao mesmo tempo, o verdadeiro intelectual rejeitaria a oferta dos comunistas, para assumir um cargo na revolução. A revolução dispensa os intelectuais, tanto quanto os verdadeiros intelectuais suspeitam de uma revolução que os procure. Ele sabe, por experiência, que a revolução o dispensa:

"Por outro lado, a experiência histórica também faz o intelectual hesitar quanto a essa oferta de serviços: ele sabe que a defesa de princípios gerais não só é ambígua, mas é também perigosa; que a adesão a um futuro politicamente programado é o ardil do qual ele já se fez cúmplice e vítima".
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Recusando a "mediação do entretenimento" e a sedução fácil da "revolução proletária" (ambas descoladas da "história efetiva"), o intelectual e o escritor encontram-se num difícil meio-termo, mas que pode representar uma saída:

"Assim, do mesmo modo que ele corroborou a sua demissão pela burguesia, ele também incorpora a recusa do proletariado em tê-lo como porta-voz. Não o faz em nome da liberdade abstrata de pensamento, mas em nome da necessidade concreta de um compromisso com uma história efetiva. E é assim que a demissão e a recusa políticas o lançam na política, num outro sentido de compromisso, baseado em valores que ele deve inventar".

Aqui, deve-se acrescentar um detalhe: o intelectual recusa a perspectiva da revolução numa determinada situação, em que os supostos representantes do proletariado confundem-se essencialmente com os ideólogos da burguesia, já que não passam do plano abstrato dos princípios para a "história efetiva". Mas isso não quer dizer, necessariamente, que o intelectual não deva mais acreditar na possibilidade da revolução. Caso esta se apresente como perspectiva efetiva, tem o dever de apoiá-la - sem desejar representá-la, já que, em todo caso, saberá de sua própria inutilidade. 

Desse acréscimo resulta outro: mesmo admitindo a necessária "reclusão política" do intelectual (que pode "lançá-lo na política em outro sentido"), é exagerado dizer que nessa condição o intelectual terá que "inventar" novos valores. Os valores dele serão aqueles que deveriam existir para além, obrigando-o a defendê-los sozinho, na medida em que não estão ao alcance de todos - falo da revolução, naturalmente.

As palavras de Sartre, citadas por Franklin Leopoldo, são precisas nesse sentido:

“No momento em que todas as igrejas nos expulsam e nos excomungam, em que a arte de escrever, encurralada entre as propagandas, parece ter perdido a sua eficácia própria, nosso engajamento deve começar. Não se trata de aumentar as exigências com relação à literatura, mas simplesmente de atender a todas elas, ainda que sem esperança”.

O engajamento consiste no esforço de manter vivo o sonho da revolução. E, de certo modo, tomar para si todas as exigências que esse objetivo impõe. Naturalmente, o intelectual será derrotado, não conseguirá difundir a ideia da revolução a ponto de tornar iminente sua efetivação. Mas isso é outra questão. O verdadeiro intelectual, em última análise, sonha com a supressão de si mesmo enquanto intelectual: o sentido de sua existência determina-se pela inexistência da perspectiva maior de transformação. Trata-se de assoprar a brasa, para que não apague definitivamente. Sua inutilidade será maior quanto mais próxima estiver a transformação radical - e é isso que ele deseja, para isto ainda é útil.