O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

O Massacre de Pinheirinho: A verdade não mora ao lado

Praticamente na mesma semana da manutenção da barbárie  - cracolândia e Pinheirinho-, pelo governo nazista representado, sobretudo, por Kassab e Alkmin, a presidenta Dilma, não menos conivente, na sua politica reformista, em prol do capital diz " “Essa figura capaz de agregar, capaz de criar vínculos fraternos, republicanos com pessoas as mais diferenciadas, que é o prefeito”

Abaixo, Pinheirinho...


Cineastas Juliana Rojas e Marco Dutra fazem oportuna manifestação

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

"Poeta colombiana Angye Gaona acusada de liberdade!"

Matéria Original: http://carosamigos.terra.com.br/index2/index.php/artigos-e-debates/2434-poeta-colombiana-angye-gaona-acusada-de-liberdade

Em janeiro de 2011, a poeta colombiana Angye Gaona voltava de uma viagem para a Venezuela quando foi presa pela polícia da Colômbia acusada absurdamente de “narcotráfico” e “rebelião”. Durante longos 4 meses, mesmo sem provas, permaneceu encarcerada. Vencido o prazo máximo para seu julgamento, Angye teve que ser posta em liberdade. Mas agora, no dia 23 de janeiro de 2012, ela e mais 3 pessoas serão injustamente julgadas e correm o risco de pegar até 20 anos de prisão. 

Para entender o processo kafkiano por qual passa Angye (e milhares de outros colombianos) é preciso entender os reais motivos de sua prisão e, para isso, é preciso compreender a Colômbia, verdadeiro ponto-cego da América, apagada pela mídia e pouco discutida até mesmo pelas organizações de esquerda.

Colômbia: miséria e rebeldia

A Colômbia, apesar de ser a 4ª maior economia da América Latina, é o 3º país mais desigual do mundo: 68% da população são miseráveis e pobres que “vivem” ao lado de uns poucos milionários, como o banqueiro Sarmiento Angulo que domina quase metade do crédito do país, sendo o 75º no ranking dos mais ricos do mundo. Essa imensa desigualdade vem crescendo enormemente com a ação das multinacionais que exploram e roubam as imensas riquezas naturais da Colômbia, agindo sobre 40% do território (áreas já concedidas ou em trâmite). 

Esse quadro de desigualdade vem se construindo ao longo da história do país, gerando choques violentos entre liberais, conservadores e comunistas.

Um dos mais marcantes acontecimentos de sua história se deu em 1964, quando liberais e conservadores lançaram o exército contra camponeses rebelados influenciados pelos comunistas, promovendo o Massacre de Marquetália. Desse massacres, escapam para as selvas 48 camponeses que fundam as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) e dão início a mais antiga guerrilha do mundo, que controla hoje entre 15% e 20% do território colombiano.

Dentro desse contexto de enormes desigualdades e intensa revolta popular, os governos colombianos (Ayala, Uribe e, agora, Santos) vêm reprimindo duramente qualquer manifestação de pensamento crítico; criminalizando as liberdades de expressão, manifestação e livre organização; e reduzindo as FARC a um grupo “narco-terrorista”, ignorando suas reivindicações políticas. Tudo isso com enorme apoio militar dos EUA (Plano Colômbia) que tem interesse geopolítico e econômico na região.

O terrorismo de Estado na Colômbia

Há na Colômbia pelo menos 7.500 presos políticos: 90% de civis (sindicalistas, jornalistas, acadêmicos, estudantes, ambientalistas, camponeses) e apenas 10% de membros das FARC. Dados oficiais da Defensoria do Povo, vinculado ao Ministério Público da Colômbia, reconhecem que há 61.604 pessoas “desaparecidas” nos últimos 20 anos, sendo que mais 16.655 ainda não receberam esse status, pois desapareceram há “pouco tempo” (os números estimados pelos movimentos são bem maiores). Em 2010, a Central Unitária dos Trabalhadores da Colômbia denunciou que, em 10 anos, 2.778 sindicalistas foram assassinados, ou seja, 60% dos sindicalistas assassinados no mundo. São comuns as práticas de tortura e assassinatos exemplares praticados pelo exército e pelas milícias de paramilitares que são incentivadas e acobertadas pelo governo. Recentemente, foi encontrada bem atrás da força militar Omega (menina-dos-olhos do Plano Colômbia), a maior cova comum do continente com 2000 corpos de “desaparecidos”.

angye-i
Os números indicam um novo recorde macabro na América: a “democracia” colombiana tem destruído mais vidas que as ditaduras do Chile e da Argentina juntas (as duas mais sangrentas!).

“E se um menino preso chora, dirás,
e se um homem é torturado, dirás.”

O terror de Estado na Colômbia tem intimidado a população que se cala para não ser presa ou morrer. 

Angye Gaona, ao contrário, vem se posicionando publicamente a favor da luta dos trabalhadores, estudantes e dos milhares de presos políticos. Angye, artista de intensa atividade cultural, faz de sua poesia e de sua arte uma arma de luta e esperança para todos que desejam afirmar a vida na Colômbia. 

Por isso mesmo, o governo de Santos armou sua prisão e agora prepara um julgamento de “cartas marcadas”, que será realizado a 800Km da cidade natal de Angye, impedindo o depoimento e as manifestações das pessoas que a conhecem. O governo colombiano quer prender Angye por ser livre!
Para garantir a liberdade de Angye e dos demais presos políticos é preciso uma campanha internacional que denuncie o terrorismo de Estado colombiano. Calar diante da situação colombiana é aceitar, indiretamente, que o mesmo ocorra no Brasil. É visível, nos últimos anos, o crescente desrespeito aos direitos humanos no Brasil que se manifesta mais claramente nas ações policiais e militares em morros, nas periferias, nas universidades e nas desocupações. É preciso forjar, apesar das dificuldades, a unidade de luta latinoamericana, pois um fantasma ronda a América... e, infelizmente, não parece ser o do comunismo.

Para saber como lutar pela liberdade de Angye Gaona visite o site: 
Angye Gaona Livre 

TECIDO BRANDO
(Angye Gaona, tradução de Jefferson Vasques)



Calma e tino te digo, peito brando.

Não queiras conter toda a água dos mares.

Toma uns litros de ondas bravas, 
de espuma fera.

Deixa que se encrespe dentro de ti,

cavalo afrontado,
 mas não domes esta água
que o tempo a requer viva
 e pulsante.

Respira e prepara-te, peito brando.

Não queiras conter todo o ar dos abismos,

toma só o de tua pequena inspiracão,
o acaricie por instantes, 
o sussurre como se ao último alento
e o deixa livre ir ali,
aonde tu também querias: 
vasto, imenso, indistinto.

Sopra forte o que guardas.

Não recolhas mais lágrimas, peito brando.

E se um menino preso chora, dirás,
 e se um homem é torturado, dirás.

Que não é tempo de guardar a ira, te digo.

É momento de forjar e fazer luzir
o fio da navalha.

Jefferson Vasques é poeta e atua no projeto Camará Comunicação e Educação Popular

Somos Todos Pinheirinho!


Quanto vale? Ou é por quilo?

"Chega uma hora em que o vaso de barro só é vaso quando se completa com uma flor" foi algo do gênero que escutei de um dos personagens na peça "Ópera dos Vivos" do Latão, no primeiro ato.

E ao ler uma noticia, essa semana, sobre um ator que reclamou ao diretor não sair no cartaz de um filme, na estreia de um festival, recebendo como resposta  que não saiu pois "não vendia", me lembrei de um filme que o mesmo ator fez, e que foi um dos mais marcantes de minha vida. Além disso uma poesia de Ferreira Gullar que ilustra muito bem a incompatibilidade da arte com o mercado.

Senão, vejamos:



                                                                                  "Os Inquilinos", De Sergio Bianchi

TRADUZIR-SE, de Ferreira Gullar

Uma parte de mim

é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

uma parte de mim

é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim

pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim

é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim

é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte

na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?


R$: ___________

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

O vírus incubado da vida sob o invólucro dos mortos – Viver à vida, ou ficar mais um pouco

Uma crônica sem nenhuma relação com a realidade


Não é, nem de perto, tentativa minha proliferar qualquer tipo de compaixão, compadecimento - ainda que se assim fizesse, seria inútil, até porque não pretendo semear a morte, tentando colher um pouco de vida - entre mim e aqueles que estejam lendo isso agora. Já aviso antes, protegendo-me também dos que me chamariam de niilista, esquerdista de merda, metido a intelectual, diletante, vagabundo e etc.

De qualquer forma, nessa semana tive uma sensação muito grande que iria morrer - muito provavelmente por problemas emocionais, nervosos, que aumentaram durante dias meus batimentos cardíacos e me traziam uma sensação de falta de ar muito grande, também provavelmente fisicamente inexistente, contudo o corpo não vive sem a mente. Bem, isso não é uma consulta.

O fato é que mesmo sendo uma doença burguesa, ou ainda mais um mimo pequeno burguês - como me acusariam até os mais próximos companheiros -  aconteceu que isso me aproximou de forma mais crua das relações humanas de nosso tempo, como sabemos cruéis, desgastadas e obviamente desumanas. Me fez pensar, sobretudo, no cinema.

Eduardo Galeano descreve em curtos textos dois tipos diferentes de experiências com a morte:

O primeiro conta que "nem dez pessoas iam aos últimos recitais do poeta espanhol Blas de Otero. Mas quando Blas de Otero morreu, muitos milhares de pessoas foram à homenagem fúnebre feita numa arena de touros em Madri. Ele não ficou sabendo"

O segundo "foi na selva, na Amazônia equatoriana. Os índios shuar estavam chorando a avó moribunda. Choravam sentados, na margem de sua agonia. Uma pessoa, vinda de outros mundos, perguntou:

– Por que choram na frente dela, se ela ainda está viva?
E os que choravam responderam:
– Para que ela saiba que gostamos muito dela."

Todo este emaranhado de ideias aparentemente confusas e desconexas, me fez lembrar dos filmes do Coutinho e de algumas coisas que Schopenhauer  escreveu sobre o sujeito e a vontade.

O filmes do Coutinho nunca precisaram de uma epígrafe definidora de sua poética-política, nem precisou voz off nenhuma dizer que seu filme era humanista, ou ainda sim não necessitou de um título escrachadamente marxista. E mesmo assim, mostrou melhor que ninguém as entranhas dos "comuns". Aqueles que não tem página na revista.

Muito semelhante, inclusive, a fase pré-pós-moderna genial de Caetano Veloso, cuja a trajetória de ambos se cruza, não necessariamente por aproximação estética, por uma única razão: a celebração da vida, ainda que incubada num corpo-cabra "marcado para morrer". Passeia, pisa, sobre o invólucro da desumanidade.

Schopenhauer, que aqui resumo brutal e deselegantemente, em suas reflexões sobre a "vontade", diria que o homem é guiado por uma vontade, que não visa o outro, mas de forma egoísta e cruel visa seu próprio desejo. Contudo há dentro deste mesmo homem uma compaixão, comum em todos os homens, que se encontrada, de certa forma romperia com esta ditadura do eu, gerando "mundos no mundo" - parafraseando Caetano.

Ainda sim, não parece claro a aproximação de ambos. Mas se nos ativermos ao método de cada um, veremos que enquanto Schopenhauer constata essa compaixão possível, num sujeito aparentemente cruel e mesquinho, para Coutinho, como ele mesmo diz, o que interessa é a superfície do sujeito é próprio invólucro, mas que de tão cavucado, acaba por ser uma tentativa, senão igual, maior que a do filósofo, de extirpar o tumor de uma vez por todas, não só dos "outros", mas de "nós", que acabam por ser a mesma coisa, e que não ao mesmo tempo.

Só que trata-se de um revestimento moribundo que incuba a vida, que despotencializa o verdadeiro sentido da beleza, da potencialidade humana.

No mais, que sentido faz um filme, "homenagem" ao poeta, ou ao seu zé, depois de morto? Senão, por muitas vezes, a auto-promoção.

Aliás, homenagear não: "celebrar-criticar-querer-mudar-suas-nossas-vidas".

Quando usamos da arte para celebrar outra vida, única e simplesmente, porque outro é extensão do "eu", no final das contas, estamos pensando apenas no "eu". Dificil é celebrar a vida do Eu que é Outro e por ser outro quero que ele viva - mais uma vez caetano, em uma de suas mais belas canções e burramente tornada menor:" Existe alguém em nós.Em muitos dentre nós. Esse alguém. Que brilha mais do que. Milhões de sóis. E que a escuridão. Conhece também[...]"

Esse é o nosso papel, celebrar os vivos, extrair de nós e dos outros o tumor-terror holocáustisco, e junto dele desincubar a vida abraçado pela embalagem moribunda.
Romper com o invólucro dos mortos que perambula por entre nós.

Começo e termino este texto, muito provavelmente dentro de horas digitalizado, com uma caneta que existe, um papel que existe, e um medo que também existe.
                                                                                                                                                                 
   Aos meus amigos,
                                                                                 
                                                                                                                                                                      Eu, ou o Outro.

SP, Janeiro 2011

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Ética e Humor: Entrevista com Newton Cannito

Entrevista concedida por Newton Cannito para o blog de Luiz Zanin (http://blogs.estadao.com.br/luiz-zanin/etica-e-humor-entrevista-com-newton-cannito/)



Uma das mesas de debate do É Tudo Verdade (Ética e Humor) reúne Newton Cannito, Jean-Claude Bernardet e Marcelo Tas. Cannito é autor de dois filmes provocativos e que causaram muita polêmica: Jesus no Mundo Maravilha e Violência S/A. É preciso vê-los. Mas posso adiantar que tratam de temas graves como a violência urbana, corrupção policial, o sentimento de medo da classe média, sempre em chave não convencional. Usam a paródia, o humor (muitas vezes desconcertante), a ironia e mesmo o sarcasmo como formas de problematizar reações estereotipadas. São filmes discutíveis – e isso é um elogio. A minha ideia era fazer uma grande matéria para o jornal, mas não foi possível. Vai no blog. Entrevistei Newton Cannito. Perguntas e respostas seguem abaixo. Façam bom proveito.

Por que você escolheu essa aproximação aos graves problemas através do humor? Acha mais eficaz? Como é que você fundamenta isso?

Primeiro porque eu queria despertar o choque. Sair da mesmice da representação cotidiana. São temas e imagens muito vistos na televisão e no documentário na forma de drama social. Essa forma foi tão repetida que perdeu o impacto. Para revelar novamente essa realidade cruel era preciso mostrá-la em uma forma nova. A escolha do humor veio daí.

No “Violência s.a.” nossa maior referência foi o satirista Swift, de “Panfletos Satíricos”. Partimos da contradição de que a violência começa a ser um mercado e começa a enriquecer pessoas. Essas pessoas tem interesse pessoal no aumento da violência e geram uma cultura do medo. E então fizemos o filme a partir da pergunta: como ganhar dinheiro com a violência? E quais os absurdos que isso gera. Tal como Swift e Kurt Vonegut trabalhamos com a revelação de lógicas sociais absurdas.

Mas eu acho que a grande questão é que nosso documentário precisa saber trabalhar mais com os gêneros dramáticos. Nosso cinema tem muito medo de trabalhar gêneros. Mesmo o docudrama é pouco trabalhado. João Batista de Andrade é, para mim, o principal documentarista brasileiro. Ele fez docudramas maravilhosos, como Caso Norte e Wilsinho Galileia. Mas hoje é também acusado de ser antiético por explorar os personagens. Nosso documentário constrói mal personagens por conta desse desprezo e desconhecimento da teoria dramatúrgica. Nosso documentario atual está muito retorico /discurso e pouco dramático. Acredito que nosso documentário tem que reaprender a trabalhar com gêneros sem preconceito. Ou vai ficar muito homogêneo.

Jesus no Mundo Maravilha, por exemplo, começou sendo um projeto totalmente diferente. Era para ser um docudrama, chamado Fatalidade, que trabalhava com o formato da tragédia moderna. Mas foi impossível fazer esse filme, pois o policial que assassinou o filho da mãe entrevistada não foi autorizado a filmar. Parti então para entrevistar policiais exonerados. Quando vi o universo do parque, no primeiro dia de gravação, tive a idéia de mudar o gênero do filme. Deixou de ser um docudrama e virou uma docufarsa, aí entrou o humor. Foi a solução para esse filme. Pode ter outra solução para outros filmes.

O importante é nosso documentário aprender a trabalhar com gêneros.

Por fim, você acha que o documentário bonzinho, aquele que trabalha com total empatia e cumplicidade com os personagens já não produz mais efeitos? Produziu algum dia? O Jean-Claude costuma dizer que o documentarista brasileiro não tem coragem de contestar seus entrevistados. Concorda?

Nada contra documentário bonzinho. O nome disso é institucional. Pode ser institucional de pessoas, mas é institucional. Eu já fiz uma vez, fui contratado e fiz. Acho normal, mas se puder não faço mais. É chato.

Acho que esse tipo de documentário nunca produziu efeitos e não é arte. É propaganda. Pode ser propaganda de pessoas, de grandes artistas , mas é propaganda. Boa parte do cinema documental brasileiro de hoje poderia passar no People and arts. Eu não me interesso por isso. 

Quanto a afirmação de Jean claude. Sim, é isso mesmo. Nossos documentaristas viraram puxa sacos de seus entrevistados. É típico de institucional. Temos que superar essa fase.

A questão da ética é clara para você? Por exemplo, alternando a fala dos policiais com a daquela mulher que chora a morte do filho, o que você busca causar no público?

Sim, tenho muito claro a questão ética. No caso desses meus dois documentários que dirigi o que busco é explicitar os conflitos sociais. Trazer a tona verdades ocultas, preconceitos que nossa sociedade quer esconder debaixo do tapete. Preconceitos que temos em nós mesmos. É uma ética que busca despertar o público de sua apatia. Meus filmes trabalham com estéticas/éticas que estão mais próximo das vanguardas, da obra de Eisenstein (cine-punho) ou do teatro da crueldade do Artaud.

O debate ético sobre documentário no Brasil ainda é tacanho. Ele se restringe a debater a figura do entrevistado. É muito pouco. A conclusão dos estudiosos de documentário é que o realizador deve “tratar bem” a pessoa entrevistada para não magoar a “vitima” entrevistada. Isso para mim é uma confusão entre ética e etiqueta. A etiqueta é a ética da elite. É a ética do bem educado, que interessa a manutenção do status quo. Existem outras éticas. Na verdade, cada filme tem uma ética própria. Além disso, esse raciocínio de que o entrevistado é uma “vítima” indefesa do diretor tirânico é arrogante (supervaloriza o diretor e a importância do cinema), melodramático e paternalista. Os entrevistados de meus filmes não são nada bobos e não da para encaixá-los como vitimas indefesas. E – apesar de ter “zombado” de alguns deles – não destruí a vida de ninguém.

Para mim não existe arte sem conflito. E um dos conflitos do filme é sempre entre o diretor (narrador) e o personagem. Sempre haverá uma interpretação. O “personagem” sempre será interpretado pelo narrador.

Tem, no entanto, algumas diferenças:

a) Alguns não gostam de deixar claro que fazem uma interpretação do personagem. Preferem se fingir neutros, imparciais. Um exemplo, eles não explicitam um corte brusco no filme como eu costumo fazer. Mas eles também selecionam perguntas e escolhem o que editar. Estão também construindo personagens. Mas preferem se fingir de neutros. Eu prefiro deixar bem claro ao público que o diretor existe e interpreta. Faz parte da minha ética explicitar as manipulações que faço. Acho melhor explicitá-las do que escondê-las sobre um verniza de imparcialidade, falsamente justa. Pois assim o público terá mais liberdade de concordar ou não comigo.

Mas não sou como os que me criticam e não gosto de acusar os outros de serem antiéticos. Eu não acho que quem faz filme diferente de mim é anti-éticos. Só acho que eles tem outra ética (a da etiqueta). Acho normal. Faz parte da minha ética não ficar por aí afirmando que os outros são antiéticos.

Nem os personagens, nem os outros documentaristas.

Quem gosta de afirmar que o outro (diferente dele) é antiético é, na verdade, um moralista. Nos anos 60 isso era claro: eram o pessoal da moral e bons costumes! Agora eles se disfarçaram de guardiões da ética. É a mesma coisa.

b) Eu gosto de personagem complexo e com conflito interior. Ou seja, o personagem (documental ou ficcional) tem que ter um lado negro. Sempre! Seja “mocinho” ou “bandido” (na verdade , não trabalho com isso de mocinho ou bandido). Todos tem lados negros e todos tem sua ética própria. Podem merecer ser presos pois fizeram coisas ilegais. Mas tem também sua ética própria. Isso de ficar escondendo lado negro de personagem para “respeitá-lo” não me interessa artisticamente. 

E por fim, é preciso dizer. Não da para fazer um filme pensando o tempo todo na futura ética (ou moral, como eu já disse) do filme. Isso é auto-patrulhamento moralista. Fala-se muito da “responsabilidade” necessária ao documentarista. Mas ninguém lembra da necessária irresponsabilidade! Da necessária loucura e entrega que um artista deve ter ao realizar seu trabalho. Não existe arte que na criação fica o tempo todo se controlando.

O cineasta deve ser um xamã. Para revelar a realidade ele tem que descer aos infernos. Para que o monstro se revele o cineasta não pode julgá-lo o tempo todo. Tem que deixar aflorar no momento da filmagem. Depois pode comentar no momento da edição. Foi o que fiz (ao lado de Saad e Benaim), por exemplo, na entrevista com Erasmo Dias e com os “bandidos” no documentário “Violência SA”. E foi o que fiz com todos os personagens do “Jesus no Mundo Maravilha”. Se você fica o tempo todo julgando o “outro” a partir de sua própria ética você não deixa a verdade aparecer. Nisso, o diretor do filme documental, tem que ser como qualquer bom ator. Todo bom ator sabe que tem que amar o personagem. Mesmo se ele for um “vilão”. O que faz a ética do filme, no entanto, não é apenas a entrevista e o personagem. No momento da filmagem eu gosto de estar ao lado do meu entrevistado, seja quem ele for. Ali, eu sou ele, nós dois somos o mesmo. Mas depois, na montagem e edição de som, eu recupero minha opinião e afirmo minhas posições sem ter dó de ninguém. Não sou paternalista e não que preciso cuidar de meus entrevistados. Respeito eles, são adultos e assinaram cessão de direitos. Não acho o diretor um superman que vai acabar com a vida de um entrevistado. Acho esse raciocínio, aliás, bem arrogante. Prefiro me considerar um colega dele de vida e quero debater com ele como uma pessoa adulta, inclusive minhas diferenças éticas. Eles não são fragéis. Se me autorizaram a filmar eles sabem que tem algo ali, sabem desde o inicio que vou construir a imagem deles na edição. E aceitam esse pacto, por interesse próprio.

Por fim , é também necessário dizer: nunca existiu um bom filme que não tencionasse a ética. Pode rever a história do documentário. Todo grande cineasta tencionou a ética da época. Pois é só tencionando a ética é que o filme choca. A função da arte é trazer a tona o inconsciente, é mexer nisso, é mostrar a verdade oculta. E ao fazer isso ela ajuda até mesmo a reformar a ética daquele momento e fazer a sociedade evoluir.

Não é função do cineasta ser bonzinho. Se você quiser ser bonzinho é melhor ser dono de “Ong”. Também não é função do cineasta apresentar as soluções. Vamos deixar isso para os políticos. A função do artista é revelar o mundo ao público, inclusive as parte negras do mundo. Que são também parte negras de nós mesmos. Por isso, incomoda. Mas é essa a função da arte. Remexer nas entranhas de nossos piores delírios, trazer nosso inconsciente para a arte, para aí melhorarmos todos.

O artista para mim é como um xamã: ele tem que descer aos infernos para ajudar na cura das loucuras, seja elas coletivas ou individuais. Essa é minha ética.

Um documentarista como o Eduardo Coutinho parece trabalhar com um profundo respeito pelos personagens? O que acha da postura dele? E qual a sua forma de trabalho e em que ela se difere de outras? Visa alcançar resultados políticos (no sentido amplo do termo, claro) com esse tipo de documentário de choque?

Não acho que Coutinho faça isso que os críticos acham que ele faça. Coutinho é muito melhor que seus críticos. E – obviamente – muito melhor que os cineastas que tentam copiá-lo a partir da leitura simplificada dos críticos. Coutinho mostra a complexidade dos personagens e – em seus melhores momentos – explicita momentos aonde eles chegam próximos ao patético. Nem sempre acerta, mas tem ótimos momentos disso, em tom de comédia melancólica. São momentos muito humanos, maravilhosos. 

Outros momentos, Coutinho faz ironias machadianas. O filme aonde isso mais se evidencia é Teodorico- Imperador do Sertão (que é meu filme preferido do Coutinho). Nele Coutinho dá a voz ao personagem do coronel, mas é irônico com a câmera. Ali o narrador(diretor) denuncia o personagem. E outros filmes ele não faz mais ironias com a câmera, mas revela momentos complexos dos personagens. Já em outros filmes, ele acreditou demais na análise de seus analistas, e seus filme ficaram – infelizmente – meio amorfos.

E sim, o objetivo dos documentários que fiz é sempre politico. Isso fica mais claro no “Violencia” e “Jesus…” que são sátiras sociais. Mas também é presente no “Alo Alo Terzinha”, filme do Nelson hoineff sobre o Chacrinha, que fiz o roteiro. Quando Hoineff me chamou para escrever o roteiro e o projeto do “Alo Alo Terezinha” tivemos claro desde o início que não devíamos fazer uma biografia tradicional. Acredito que a melhor forma de neutralizar um personagem contestador é fazer um documentário careta sobre ele. Não queríamos neutralizar o Chacrinha, queríamos revive-lo. Chacrinha merece do que virar um velhinho louco do People and arts. E aí o filme seguiu outro caminho. Tal como o Coutinho no Cabra Marcado para Morrer, decidimos revisitar os personagens dos anos 70. “Alo Alo Terezinha” foi o “Cabra Marcado” da indústria cultural. A crítica – que finge gostar de Chacrinha porque ele já morreu e não tem mais perigo – não gostou do filme. Acusou de ter zombado dos personagens. A questão é que não existe humor a favor. O humor – desde o bufão, ou o palhaço, sempre zomba de nós. Se for um bom humorismo ele – ao zombar de um tipo social – nos incomoda e revela coisas sobre nós também.

E, voltando a falar de política, considero o “Alo Alo Terezinha” um filme que revelou a crueldade da indústria cultural. Um tema fundamental e que também esta presente em meus outros trabalhos. Em “Violência s.a” investigamos como programas sensacionalistas difundem um pânico excessivo na população. E em “Jesus…” o tema esta presente no personagem do palhaço, que representa a mania moderna de todos quererem aparecer na tv.

O interessante é que os críticos atacam os documentários de humor atuais usam os mesmos argumentos dos críticos conservadores que atacavam o Chacrinha nos anos 70. O politicamente correto já existia naquela época, mas era chamado de direita conservadora. O que acho mais estranho é as pessoas dizem que gostam do Chacrinha, mas afirmam que “Alo Alo Terezinha” é antiético. Porque Chacrinha podia fazer no passado e não podemos fazer mais hoje? O Chacrinha, ok, pode fazer isso, pois já morreu? É isso?

A mostra Risadoc serviu para catalisar esse debate. Eu e Eduardo Benaim resgatamos vários casos de documentários brasileiros (alguns clássicos como “Iracema” e “Teodorico”) que trabalham com humorismo. Os clássicos são aceitos, mas neutralizados. Seu potencial de polêmica e crítica social pelo humor é esquecido. Já os filmes mais recentes são desconsiderados no debate sobre documentário brasileiro, que ficou muito centrado na estética do Coutinho. Ou melhor, na forma limitada que a estética de Coutinho foi interpretada pelo Escorel e pelo João Moreira Salles. Isso tem reduzido a diversidade de nossa expressão na estética documental. Eu até gosto dos filmes do Salles e de alguns Coutinho. Mas não posso aceitar que isso seja a única forma de fazer documentário. Nosso objetivo com esse debate é que os cineastas liberem sua criatividade e aprendam a trabalhar com todos os gêneros e formatos possíveis, escolhendo o mais adequado ao objeto que vai ser representado.

Por parte de quem você foi patrulhado? Pela turma do politicamente correto, à direita ou à esquerda no espectro político?

Eu acho que eles estão à direita. Eles se consideram a esquerda. É curioso ver como a esquerda virou politicamente correta e anti-contestadora. Eles se consideram de vanguarda e aí seguem o que eles consideram as “regras da boa vanguarda”. Parece que “Tudo muda, menos a vanguarda”.

No caso do “Alo Alo Terezinha” um crítico chegou a propor o que ele chama de “interdição critica”. Ali ficou claro para mim que existe um movimento meio oculto de evitar debater com os filmes que esse grupo hegemônico considera “antiéticos”.

A grande maioria dos filmes que eu curto são ignorados e/ou tachados de antiéticos e ponto final. O debate para aí. Os filmes não são selecionados para festivais e não são debatidos. Apenas “Alo Alo Terezinha” (por ser longa-metragem e agradar o público) e “Jesus…” romperam essa barreira. E aí foram acusados e ponto final. Apenas agora estamos conseguindo debater os filmes.

No caso de “Jesus…” o filme foi ignorado por um bom tempo, um silêncio sepulcral. Cheguei a convidar alguns críticos a participar de debates que eu promovia sobre o filme. Eles viram o filme e se negaram a participar. Disseram que foi problema de agenda. Depois de quase um ano Jean Claude Bernardet escreveu afirmando que o filme era uma referência inevitável ao documentário brasileiro contemporâneo. Em seguida, o pessoal do Doctv, colocou o filme para um debate que tinha na plateia boa parte do ambiente de documentário brasileiro. Jean Claude defendeu o filme e aí “o pau comeu” entre ele e Eduardo Escorel. O Escorel afirmou que o filme é “um caso claro de abuso de poder do diretor” e acusou o Jean Claude de estar sofismando. Varios outros críticos também acusaram o filme de ser antiético. Finalmente as posições começaram a ficar claras. Devido a coragem e a importância crítica do Jean Claude os outros críticos decidiram se posicionar contra o filme e explicitar suas opiniões. No blog do filme tem vários artigos atacando o filme www.jesusnomundomaravilha.blogspot.com). Foi ótimo, adoro quando as posições ficam explicitadas. Acho muito estranho pessoas que se consideram democráticas e que querem interditar o debate. É uma censura educadinha, exercida pelo silêncio, por atuar no controle dos critérios de qualidade dos festivais e pela negação ao debate.

Acho o debate muito saudável. O que mais me assusta é tentar fazer interdição crítica de qualquer coisa. Temos que tomar cuidado com quem sai à rua acusando os outros de serem fascistas. Pode ser patrulhamento. Muitos fascistas surgiram acusando os outros de serem fascistas. Acho que a crítica tem que ter a coragem de debater o que é ético ou antiético com toda a sociedade. Quem é democrático não pode ter medo do que acha que é fascista.

Gosta de incorporar o acaso à sua filmagem? Por exemplo, a presença daquele palhaço no parque de diversões em Jesus Maravilha? Acha que isso enriquece o documentário?

Adoro o acaso. Para mim o instante da filmagem é tudo, é sagrado e temos que estar atento a tudo que acontecer. O palhaço ,por exemplo, se impôs no filme. Ele queria aparecer e eu pensei: quem sou eu para negar? Eu nunca soube direito a função dele no filme, mas filmava ele com prazer. Sentia que ali tinha coisa. E tinha.

Eu não tinha roteiro prévio. Só tinha claro que o filme terminaria no dia que o Lucio topasse rodar em brinquedos do parque de diversões. E foi isso mesmo. Ele só topou no último dia, foi o dia que me contou as coisas mais fortes e ensinou tortura ao jovem assistente.

Antes disso foram muitos dias de pura curtição na filmagem. Para conquistar os personagens eu aprendi a curtir eles de verdade. São meus amigos, brinquei com eles. Filmei muito eles andando no parque, eles adoravam essa exposição tarantinesca e eu curtia filmar isso. Sem pauta clara.

Mas para improvisar é preciso uma mega pesquisa de campo. Como fiz – na mesma época a serie 9mm (para a fox) – eu tinha lido milhares de livros sobre policiais, entrevistados muitos outros, conhecia bem o universo deles. Sabia o que significa as gírias, sabia as regras do universo deles (quais são as regras da corporação, etc..). Para improvisar na filmagem é necessário que você realmente conheça bem o universo.

Eu só entendi o que era o filme depois de pronto. Em todo o processo eu fui descobrindo a estética (e a ética) do filme. A improvisação também é isso. Tem que estar aberto para ir a fundo com os personagens. Não é improvisação apenas da câmera e/ou da pauta da entrevista. É improvisação existencial.

O diretor tem que se entregar. Tem que ouvir realmente. Tem que correr o risco de se convencer de que o personagem está certo. Mesmo que ele tenha matado 80 pessoas, mesmo que ele seja racista, fascista, machista, seja quem for. Você tem que correr o risco existencial de naquele momento se entregar e aceitar que – quem sabe – você poderá concordar com ele. Em meus filmes eu me tornei mais um da turma. Foi ao ouvir e rir das piadas racistas que os personagens me revelaram seu racismo. Foi por não julgar seu fascismo que eles revelaram seu fascismo.

Isso é que é real improvisação. A improvisação existencial. É perigosa, você pode sair do filme transformado. Mas é isso que torna o instante da filmagem um momento real e sagrado.

Apenas no final do filme eu entendi o que ele realmente virou. Eu não sabia antes, só entendi no final. “Jesus no mundo maravilha” é uma mistura de Jean Rouch com “Pânico na TV”. De Jean Rouch tem vários procedimentos de cinema verdade, com a presença ostensiva da câmera, a metalinguagem e as representações “dramatizadas” do imaginário dos personagens. Do Pânico, o filme traz o humor, a auto ironia e a criação a partir do meta-espetáculo televisiva.



sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Fantasia e Utopia em Marcuse


"Na sua recusa em aceitar como finais as limitações impostas à liberdade
e à felicidade pelo princípio de realidade, na sua recusa em
esquecer o que pode ser, reside a função crítica da fantasia."

(EROS E CIVILIZAÇÃO, MARCUSE, ed 1995, Pag 138)

Em Freud, o que Marcuse chama de “forças mentais” trabalham como uma recusa do principio de realidade,, que se encaminha ao inconsciente, e que, também, são operadas pelo próprio inconsciente. De alguma forma, esse novo modo operante em relação ao principio de realidade, trabalha no campo da própria censura, aquela que o “real” nega, e o sujeito só tem acesso a partir da liberação das energias do lugar que dá abrigo ao material censurado, o inconsciente. Esse movimento apresenta uma recusa, ainda que inconsciente no sujeito – levando em conta toda sua estrutura social, determinações socioculturais, e consequentemente moldantes de seu aparelho psíquico -, sobre a própria realidade qual se encontra.

A capacidade de imaginar do sujeito, ou o movimento que esta capacidade pode criar, possibilita uma espécie de reconciliação do indivíduo com seu eu-primitivo, ou ainda com um momento em que sua mente não era determinada pelo principio da realidade, mas sim pelo principio do prazer . Em outras palavras: a fantasia.

A fantasia - ou imaginação - “desempenha uma função das mais decisivas na estrutura mental total: liga as mais profundas camadas do inconsciente aos mais elevados produtos da consciência (arte), o sonho com a realidade; preserva os arquétipos do gênero, as perpétuas, mais reprimidas ideias da memória coletiva e individual, as imagens tabus da liberdade”.(IDEM, MARCUSE, ed 1995, Pag 132)

Segundo Marcuse, a fantasia, quando Freud se debruça no tema, já era entendida como processo necessário, importante e autônomo na atividade mental, logo, o que faz que o tema seja desenvolvido de forma bastante particular, em Freud, é como se daria (gênese e conexão) - fantasia e principio do prazer:

“Enquanto o ego era anteriormente guiado e conduzido pela totalidade da sua energia mental, agora é orientado unicamente por aquela parte que se conforma ao princípio de realidade. Somente essa parte pode fixar os objetivos, normas e valores do ego; como razão, torna-se o repositório único do julgamento, verdade, racionalidade; decide o que é útil e inútil, bom e mau.* A fantasia, como processo mental separado, nasce e, simultaneamente, é abandonada pela organização do ego do prazer no ego da realidade. A razão prevalece; torna-se desagradável, mas útil e correta; a fantasia permanece agradável, mas torna-se inútil, inverídica um mero jogo, divagação.”(Ibid., MARCUSE, ed 1995, Pag 133)

Nossa apreensão mental estaria, então, determinada, pelo principio de realidade. A forma como que nos “apropriamos”, compreendemos a realidade, é desagradável, mas real e útil. A fantasia quando se separa do principio do prazer e é contrastada ao principio de realidade perdendo sua utilidade, como descrito por Marcuse no parágrafo acima.

Isto pode ser explicado pelo processo que nos torna indivíduos, sujeitos, ou de certo modo, quando crescemos (civilização). A fantasia mantém a sub-história do sujeito, ou seja, tudo aquilo que viria antes de nos constituirmos enquanto seres sociais, religiosos, políticos, culturais. Quando outrora não se tratava do principio da realidade, mas o principio do prazer. Nossos desejos, necessidades estariam ligados a essa busca de felicidade, comum ao que é humano, mas de forma totalmente desnudada, e muitos menos “recalcada”.

“A imaginação visiona a reconciliação do indivíduo com o todo, do desejo com a realização, da felicidade com a razão. Conquanto essa harmonia tenha sido removida para a utopia pelo princípio de realidade estabelecido, a fantasia insiste em que deve e pode tornar-se real, em que o conhecimento está subentendido na ilusão.”³(Ibid.., MARCUSE, ed 1995, Pag 134)

A fantasia – ou imaginação, tanto no indivíduo, quanto no coletivo, nas massas - funciona como um “protesto” contra a realidade que se impõe contra este próprio coletivo. A arte tem como instrumento central de seu movimento, a fantasia, que no seu movimento de libertação de pulsões reprimidas recria(ou cria), monta, subjetividades que acabam por se objetivar frente ao mundo “real”. Ou seja, a arte também age como esse protesto contra essa realidade, e acaba por criar, ou apenas sugerir, objetivar, sua própria realidade.

“[...]Como processo mental independente e fundamental, a fantasia tem um valor próprio e autêntico, que corresponde a uma experiência própria nomeadamente, a de superar a antagônica realidade humana. ”*(Ibid..., MARCUSE, ed 1995, Pag 134)

A arte como caminho do reprimido de volta aos seus desejos; de suas possíveis realizações; da reconciliação de subjetivo e objetivo, felicidade e mundo material; ela – a arte - estaria em constante oposição ao status de realidade, que, obviamente nega o direito do individuo reprimido de, sequer, repensar seus desejos, a não ser no campo mais e ilusório e inútil de como está colocada a fantasia. Então, como a arte traria um conteúdo crítico, sem que passada a “contemplação” de seu objeto (filme, livro, música, dança, teatro, etc), o sujeito, após acompanhar, por exemplo, a trajetória de um herói - compartilhar de suas derrotas, vitórias, guinadas, fracassos -, voltasse à realidade após tal efeito catártico? O que, concomitantemente, produziria um novo estágio repressão, contrário a sua libertação. Neste caso, a fantasia estaria então a serviço da própria mantença da realidade, ou seja, prover algumas horas de suspensão do mundo realmente opressor, causar a sensação de libertação, para então reafirmar o próprio mundo externo. Novamente, a arte, como no caso do aparelho mental agora regido pelo principio da realidade e não do prazer, colocaria a fantasia num estágio de agradável e inútil ilusão – em oposição à razão, ou principio de realidade.

Haveríamos de trabalhar num outro registro, que não apenas suspendesse momentaneamente o sujeito, mas que “resgatasse” a sua própria possibilidade de sonhar, fantasiar, imaginar, tendo em vista não mais a realização de seus desejos como algo absurdo.

“[...]A arte somente sobrevive na medida em que se anula, na medida em que poupa a sua substância mediante a negação de sua forma tradicional e assim se negando à reconciliação; quer dizer, na medida em que se torna surrealista e atonal. Caso contrário, a arte compartilha do destino de toda a comunicação humana autêntica: extingue-os.[...]”(Ibid...., MARCUSE, ed 1995, Pag 139)

A fantasia, então, não poderia ser ditada, escravizada em seu próprio método, que, ironicamente, serviria para libertá-la no sujeito:

“Reduzir a imaginação à escravidão, mesmo que estivesse em jogo aquilo a que grosseiramente se chama felicidade, é privarmo-nos de tudo o que encontramos, no nosso íntimo mais profundo,de justiça suprema. Somente a imaginação me diz o que pode ser.” (André Breton, Les Manifestes du Surréalisme; Paris: Editions du Sagitaire, 1946), pág. 15”)


A frase de Breton parece o caminho agora proposto por Marcuse, que diferente ao como a fantasia opera no aparelho mental, ou seja, na reconciliação de indivíduo e todo, a arte deveria romper com qualquer possibilidade reconciliação, de modo que o contraste entre arte e realidade se tornasse gritante o bastante, a ponto de que o indivíduo se reencontrasse com o mais primitivo de sua história, ou apenas voltasse a imaginar, fantasiar, criar uma nova realidade. A arte construiria, sem os ditames do mundo real, a própria possibilidade de indivíduo e todo, contudo sem a ideia de conciliação, e não mais como utopia, na forma imposta pelo principio de realidade levou a se compreender a condição de homem e mundo.

A arte então deveria trabalhar a fantasia, reanimar o sujeito que imagina, elabora, como atividade não apartada da vida. Em outras palavras que não distanciasse a arte, o prazer, dos objetivos externos à vida do sujeito, como uma mera suspensão da realidade:

“A separação entre o útil e o necessário do belo e da fruição constitui o início de um desenvolvimento que, por um lado, abre a perspectiva para o materialismo da práxis burguesa e, por outro lado, para o enquadramento da felicidade e do espírito num plano à parte da “cultura” (MARCUSE, 1997, p.90)
 

Se analisarmos o argumento sobre a sociedade, verificaremos que para burguesia o conceito se afastará cada vez mais da noção de utilidade, constituindo-se em um território da satisfação e do prazer. De certo modo, a burguesia estaria renunciando à possibilidade de todos viverem e satisfazerem suas necessidades cotidianas, por isso, estaria sinalizando para a possibilidade ideal de satisfação e realização da felicidade em esfera superior da existência. “A origem de tal proposição já se encontraria na antiga Grécia onde a arte, a ciência e o prazer encontravam-se apartados da vida cotidiana e dos objetivos exteriores da existência, só que naquela sociedade as esferas superiores da existência eram determinadas apenas para um grupo seleto da sociedade”¹

Para Marcuse, assim como para Freud, a fantasia daria origem a uma imagem que com o advento da civilização, seria “jogada” - ou transferida - para o inconsciente como mera fantasia, inútil. A diferença entre os dois pensadores é que para Freud esse processo não poderia ser invertido. Tentar fazer o que chegaram a propor os surrealistas, de que essa imagem formada pela fantasia, de algum modo, substituísse a realidade era um retrocesso para Freud. Não passaria de uma grande utopia:

“Na teoria de Freud a liberdade contra a repressão é uma questão do inconsciente, do passado sub-histórico e até sub-humano, dos processos biológicos e mentais primordiais; por consequência, a ideia de um princípio de realidade não-repressivo é uma questão de retrocesso”

Para Marcuse a arte deveria “resignificar” a utopia:

“Se a construção de um desenvolvimento instintivo não-repressivo se orientar, não pelo passado sub-histórico, mas pelo presente histórico e a civilização madura, a própria noção de utopia perde seu significado”


A utopia deixaria de existir na medida em que o caminho até ela se baseia não pela oposição àquilo que estanca suas possibilidades de “vir à tona”, mas na sua própria lógica de negação histórica à utopia.

O capitalismo, como sabemos, se baseia, sobretudo, na disputa de mercado, a competição, exploração de trabalho, extração de mais-valia, etc. O que faz com que a própria arte tenha seu “valor universal” subordinado às relações sociais dominantes. "É neste contexto, que o conceito de cultura, contendo a noção de civilização, será substituído por uma noção de cultura que remeteria à separação entre o mundo espiritual e a realidade. A imagem produzida pela fantasia – a própria cultura - aparecerá, a partir daí, como um falso universal. Enfim o mundo espiritual seria posto contra o mundo real. "²

Com essa separação, aquilo – neste caso a fantasia – que é diferente ao principio de realidade sendo colocado como sem finalidade, perderia totalmente seu diálogo com o mundo “real”.

“(...) a arte por si nunca poderia cumprir essa transformação, podendo, entretanto, liberar a percepção e a sensibilidade necessitadas para a transformação. E, uma vez a mudança social houvesse ocorrido, a arte, forma da imaginação, poderia guiar a construção da nova sociedade. E à medida que os valores estéticos são valores não agressivos por excelência, a arte como tecnologia e como técnica também viria a implicar a emergência de uma nova racionalidade na construção de uma sociedade livre, isto é, a emergência de novos mundos e novas metas do próprio progresso técnico” (ibidem, p. 251)



  ***
Breve nota sobre o trabalho artístico em oposição à realidade e a “colonização do imaginário”

Apesar do crescimento cada vez maior da ideia de pluralidade, incentivada pelo esvaziamento político, e arte puramente formal, ecleticismo, há um número considerável de artistas da esquerda, que visam a arte não mais como um mero instrumento de suspensão da realidade, mas algo que pode trabalhar a comunicação entre as condições reais e os horizontes utópicos.

São exemplos disso, por exemplo na cidade de São Paulo, os grupos de teatro, que além das próprias peças, intervenções, ações, participam ativamente do debate politico, social, não só no âmbito de viabilização das peças, mas diretamente sobre as condições do sujeito no capitalismo, sobretudo do trabalhador.

Contudo, essa produção apesar de bem intencionada e de convicção política coerente e definida, sofre, em alguns momentos, daquilo que o próprio Marcuse coloca como uma “nova forma de repressão” que aqui chamo de colonização do imaginário. Em outras palavras, alguns desses trabalhos, não unicamente espetáculo em si, mas muitas vezes o debate pós-espetáculo, a explicação dos símbolos, o que se propunha com tais elementos cênicos, etc. parece tentar modelar a imaginação de quem assiste ao tal espetáculo, de forma com que sua capacidade de elaboração, imaginação, e divertimento, - elementos que possibilitariam a identificação de uma brutal oposição entre prazer(fantasia, arte) e desprazer(realidade) – parecem mais engessar a subjetividade do público de modo que se quebra a fantasia, a ponto de se equivaler ao status de realidade, qual outrora a arte tentava se opor. Fazendo com que, apesar da forma ser diferente, o fim seja o mesmo do principio de realidade, a adestração da subjetividade, a colonização do imaginário.

Isso nos levaria ainda a pensar que a arte como instrumento de transformação social, e sobretudo, do indivíduo, poderia só ser útil enquanto existisse um principio de realidade socialmente injusto? E se finalmente chegássemos ao horizonte utópico desejado, ela perderia seu valor, deixaria de existir?

Me parece que a arte, mesmo onde se colocaria no seu mais livre exercício, ainda sim estaria para suprir necessidades que a vida, a realidade são conseguiria. Como diz Ferreira Gullar: “A arte existe porque a vida não basta”.


BIBLIOGRAFIA




¹ e ² ALTAIR REIS DE JESUS, ANTÔNIO DA SILVA CÂMARA, “Autonomia e utopia da arte e da cultura em Herbert Marcuse”, 2007


EROS E CIVILIZAÇÃO, Hebert Marcuse, 1995(3° edição)

AUTONOMIA E UTOPIA DA ARTE E DA CULTURA EM HERBERT MARCUSE, Altair Reis de Jesus, Antônio da Silva Câmara (Trabalho apresentado no III ENECULT – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura)

LES MANIFESTES DU SURRÉALISME, ANDRÉ BRETON,; Paris: Editions du Sagitaire, 1946

Neo-"marxistas" e Sadismo

Não é de hoje que vejo uma nova safra de neo-marxistas ultra-críticos surgirem, não necessariamente por terem lido, entendido, e exercem o trabalho proposto por Marx - ou apenas a realidade desnudada, decifrada associando ao nosso momento histórico -, mas ao contrário, como alguns cristãos que não leram a bíblia, entretanto acreditam piamente em deus.

Para esses mesmos neo-marxistas, Marx obviamente é deus, e o capital a bíblia. E ao mesmo tempo, para eles o trabalho de Marx é muito mais cientifico do que humano, ou seja, se cientificamente o socialismo é possível, não importaria, inclusive, se não fosse uma real necessidade - o que, para mim, é sim uma necessidade, deixo claro para me proteger dos ultra-críticos .

Não acho, é claro, que haja obra ou forma de captar a realidade concreta, o que de fato é o capital, a luta de classes, e a possibilidade - e NECESSIDADE - de emancipação do homem, desenvolvimento de suas potencialidades, semelhante ao trabalho de Marx. Contudo, me parece, que para os tais neo-marxistas-cristãos-ultra-críticos se surgisse uma nova doutrina - um exemplo ultra abstrato - que adicionasse um único átomo que modificasse todo o trabalho de Marx, mas que mantivesse a essência no sentido humano, de abolição das classes, etc. em outras palavras algo que mantivesse o ideal de emancipação humana, aquilo que no fundo as pessoas que realmente leram, entenderam e militam verdadeiramente pela humanidade concordariam essencialmente; se essa nova doutrina não tivesse mais o "signo" socialismo, e ao invés de Marx, fosse Marcos, os mesmos neo-marxistas não concordariam e lutariam fielmente contra. Pois do que adianta ter a “mesma essência”, se não se chama Marx, e se não se chama socialismo. Ouso dizer ainda que para os tais neo-marxistas-cristãos, se o próprio Marx reencarnasse, no corpo de uma tal Joana e aplicasse tais mudanças à doutrina, da mesma forma de nada adiantaria, já que não teria a expressão sisuda, a barba, etc.

Outro ponto que acho bastante interessante é o como todos os tipos de doença, comportamento são pequeno-burgueses. Não só por experiência pessoal, mas por ver outros amigos também marxistas tendo profundos problemas físicos, emocionais, mentais, pela própria radicalização de sua militância, de sua arte, de seu comportamento; do outro lado sempre estavam os neo, sempre bem-humorados, críticos, e prontos para aplicar uma espécie de sadismo sobre os novos depressivos classe-medianos.

A noção de processo para os neo é tão viva, que faz mais sentido intensificar os problemas de saúde desses contra-revolucionários pequeno-burgueses - menos marxistas - e deixar com que morram em sua angústia, pois faz parte do processo (mesmo que isso demonstre contraditoriamente a noção mais sádica e clássica de um tirano), e não faria sentido prestar qualquer forma de assistencialismo, do que tentar entender que a própria elevação crítica, artística, humana, e necessidade de vida - nova vida, no mundo - desses depressivinhos é o que os leva a adoecer.

Se a coisa continuar do jeito que está, até a gripe vai ser pequeno-burguesa.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

"Hombre", Blas de Otero


Luchando, cuerpo a cuerpo, con la muerte

al borde del abismo, estoy clamando

a Dios. Y su silencio, retumbando,

ahoga mi voz en el vacío inerte.


Oh Dios. Si he de morir, quiero tenerte

despierto. Y, de noche a noche, no sé cuando

oirás mi voz. Oh Dios. Estoy hablando

solo. Arañando sombras para verte.


Alzo la mano, y tú me la cercenas.

Abro los ojos: me los sajas vivos.

Sed tengo, y sal se vuelven tus arenas.

Esto es ser hombre: horror a manos llenas.

Ser —y no ser— eternos, fugitivos.

Eclipse oculto

"A ordem criminosa do mundo"/"El orden Criminal del mundo"