O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Estréia Trylogia Terror e Miséria no Novo Mundo

Habilite as imagens.
Fruto de 5 anos de pesquisas sobre a história do Brasil e experimentações cênicas, a Cia Antropofágica apresenta a Trilogia; Terror e Miséria no Novo Mundo Partes I, II & III. 

Inspirada no livro Pau Brasil de Oswald de Andrade, a Trilogia passa pela história nacional devorando, modificando, e ressignificando fatos e documentos históricos dos períodos Colônia, Império e República. Uma devoração metonímica do Brasil permeia as três peças, onde uma profusão de quadros, acontecimentos, personagens reais e ficcionais misturam-se para contar episódios relevantes da história do Brasil. 

Utilizando-se de recursos épico-revisteiros, e orquestrado por uma trilha sonora original, o material histórico pesquisado aparece não apenas para refletir sobre o passado, mas para construir uma reflexão crítica quanto aos seus desdobramentos no contemporâneo.

de 18 de Maio à 21 de Julho de 2013

Sábados18h - Terror e Miséria no Novo Mundo – Parte I: Estação Paraíso
20h - Entre a Coroa e o Vampiro – Terror e Miséria no Novo Mundo – Parte II: O Império
Domingos19h - Terror e Miséria no Novo Mundo – Parte III: A República
 Ingressos Gratuitos

Espaço Pyndorama 
Rua Turiassú, 481, Perdizes, São Paulo (Próximo ao metrô Barra Funda)
Reservas e informações: 11 3871-0373.
Email: contato@pyndorama.com
 





sábado, 11 de maio de 2013

"O Dragão da Maldade" Do esquema sensório motor à imagem ótica e sonora pura e a questão da literalidade em Deleuze

Por Danilo J Santos
(Trabalho apresentado na Universidade Federal de São Paulo)

I


RESUMO: O presente trabalho visa à análise dos conceitos desenvolvidos por Gilles Deleuze, em "Cinema II, A Imagem-Tempo", em movimento com a obra "O dragão da Maldade", de Glauber Rocha, bem como a questão da literalidade em Deleuze, sob a ótica de François Zourabichvili.


   A abordagem considera o cinema uma experiência, não só a obra em si, mas em relação com o público, ou aqueles a interpretarão. Deste modo, cabe a este trabalho tentar expor como o filme quebra com o esquema do cinema clássico, ideológico e aprisionado, para dar um salto de qualidade na recepção da obra e desenvolvimento do pensamento através da experiência. Mas como se dá essa experiência? Uma vez rompido o esquema clássico, o espectador tem contato direto e “verdadeiro com a obra”? Como é a leitura da obra? Carregada de juízos prévios ou é possível ler a obra de forma quase que exclusiva aquilo que ela mostra? Em outras palavras seria possível a leitura imanente de uma obra em detrimento de visão metaforizada?

II

   Ao descrever a ação da empregada no filme “Umberto D.”, de Vittorio De Sicca, Deleuze introduz um novo ponto de vista sobre o neorrealismo, em que sua construção não mais estaria sendo atribuída, unidimensionalmente ao seu conteúdo político, mas a critérios rigorosamente estéticos, onde se extraíra um novo entendimento, ou registro de realidade, ou como diria Bazin um “mais de realidade”.

    Tendo como fio condutor o cinema neorrealista, Deleuze trará à tona o conceito de imagem ótica e sonora pura em detrimento do esquema sensório-motor no cinema - este, por sua vez, integrado, sobretudo, ao cinema comercial, onde a necessidade de circulação e venda das obras se sobrepõe ao aprimoramento estético, à experimentação, fazendo com que resultasse nas mais comuns e banais situações do cotidiano, ou ainda o clichê. As situações banais do cotidiano também podem ser óticas e sonoras puras, como o próprio exemplo da empregada. 

   Para tanto, a imagem ótica e sonora pura surgirá, não mais como simplesmente um aprimoramento estético, mas algo que fosse além de nossas próprias – e, também em relação aos próprios personagens - capacidades sensório-motoras:

... a jovem empregada entrando na cozinha de manhã, fazendo uma série de gestos maquinais e cansados, limpando um pouco, expulsando as formigas com um jato d'agua… E quando seus olhos fitam sua barriga de grávida, é como se nascesse toda a miséria do mundo. Eis que, numa situação comum ou cotidiana, no curso de uma série de gostos insignificantes, mas que por isso mesmo obedecem, muito a esquemas sensório-motores, o que surgiu foi uma situação ótica e sonora pura (Deleuze, 1985, p. 10). 

      Essa nova imagem possibilita que esse mais de realidade seja efetivado, superando não só nossas capacidades sensório-motoras em relação a nós mesmos, mas agora em relação à obra e à sua poética, assim trazendo à tona uma nova forma de observar nossa própria realidade.

     Apropria-se de uma suposta realidade, questionável, coloca-a em linguagem, estética, e cria uma nova realidade, para além daquilo que é comum, cotidiano, e dessa nova realidade se extrai uma imagem, que não será decifrável a priori, quiçá, outrora, será decifrável. Mas, por essa imagem ser, por muitas vezes, tão intensa em sua proposta ao trazer esta “realidade” em seu estado imagético e sonoro puro - seja por sua desconcertante beleza, ou na violência do que a compõe – que despertará algo novo, sobretudo no espectador em relação à sua percepção e leitura da realidade.

        O cinema mundial, em seu processo de reformulações, novos critérios estéticos, políticos e, sobretudo dentro de sua busca formal/conceitual, gerou resistências em relação aos esquemas sensório-motores, para então dar vida em suas obras à imagem ótica e sonora pura. No Brasil, movimentos como o cinema marginal, cinema novo, de onde surge a obra eixo deste trabalho e atualmente o cinema moderno brasileiro tendo como um dos pioneiros desse novo momento, filmes como Central do Brasil (1998) de Walter Salles, Se nada mais der certo (2009) de José Eduardo Belmonte, A Casa de Alice (2007) de Chico Teixeira, além de muitos outros. 

   Passa-se a repensar o cinema enquanto não mais um meio de se chegar a uma identidade cultural e artística, mas, sobretudo como um “despertador revolucionário”, através do choque imposto por suas imagens em seu mais novo e puro estado.  O bom cinema deveria buscar o choque, aquele contido numa imagem para além do que é sensório-motor, no cinema ruim, o corpo meramente figurativo, coberto por sangue e lugares comuns, onde a violência estaria ligada ao extrapolar dos movimentos mecânicos cotidianos, e na não-superação destes, em detrimento de uma nova imagem.

   A imagem cinematográfica, segundo Deleuze, faz o próprio movimento, torna ele automático, e faz surgir em nós um autômato espiritual, que, por sua vez, reage sobre ele*. Assim: produzir um choque no pensamento, comunicar vibrações ao córtex, tocar diretamente o sistema nervoso e cerebral*. 

    Em outras palavras, o choque a partir da obra cinematográfica teria a função estabelecer uma ponte entre espectador e obra, efetivando um distanciamento crítico, capaz de reavaliar sua condição no mundo e da obra que vivencia.   

Segundo Deleuze:

"Todos sabem que, se uma arte impusesse necessariamente o choque ou a vibração, o mundo teria mudado há muito tempo, e há muito tempo os homens pensariam. Por isso essa pretensão do cinema, pelo menos nos seus grandes pioneiros, hoje em dia faz sorrir. Eles acreditavam que o cinema seria capaz de impor tal choque, e de impô-lo às massas, ao povo (Vertov, Eisenstein, Gance, Elie Faure...). No entanto, pressentiam que o cinema encontraria, já encontrava todas as ambiguidades das outras artes, iria revestir-se de abstrações experimentais, palhaçadas formalistas” e figurações comerciais, sexo ou sangue. O choque ia se confundir, no cinema ruim, com a violência figurativa do representado, ao invés de atingir essa outra violência de uma imagem-movimento desenvolvendo suas vibrações numa sequência móvel que se aprofunda em nós "(Deleuze, 1985, p. 190). 

III

          Em Dragão da Maldade, podemos observar já em seus dez primeiros minutos, diversas camadas narrativas que se opõem ao que chamamos de esquema sensório-motor. O primeiro momento que devemos nos ater é seu início, cujo qual a história começa por ser contada através de um letreiro, que informa o espectador daquilo que está prestes a assistir: 

“A
Os cangaceiros, bandidos místicos desapareceram do Nordeste do Brasil em 1940. O mais célebre de todos foi lampião que capitaneou uma luta de 25 anos contra o governo. 

B
Ainda hoje de tempos em tempos, surgem bandos de cangaceiros que tentam recuperar a lenda de Lampião.

C
São Jorge é o Santo católico mais popular do Brasil. Há uma divindade análoga na religião negra de origem africana, Oxóssi. São Jorge e seu duplo Oxóssi são chamados pelo povo de “Santo Guerreiro". 

D
Este filme se inspira na lendária Guerra do "Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro".

E
Jagunços são Matadores de aluguel

Coronéis são grandes proprietários de terra

Beatos são comunidades de camponeses miseráveis e místicos

Santa é a pessoa que dirige espiritualmente essas comunidades “

     Na música clássica, em diversos momentos de sua história, obras foram criadas iniciando-se com um tema, e seguindo-se de variações sobre o ele. Em Dragão da Maldade, podemos observar semelhante gesto, uma vez que a primeira imagem do filme visa apresentar os personagens que dão a direção dos conflitos e contradições que serão expostos no filme, e já em cenas muito próximas vemos variações cujo quais não estão contidas na exposição do tema: 

1. Uma câmera fixa mostra uma paisagem árida, com plantas secas, e tomadas pela claridade de um sol forte. Surge Antônio das Mortes, de maneira imponente, atira, não vemos seus oponentes. Uma trilha que se assemelha a um disco colocado de trás para frente é base-integrante dos gritos dos homens feridos por Antônio das Mortes. Só então, após travessia de Antônio pelo quadro fixo, até desaparecer, vemos um cangaceiro que após perambular pelo solo seco entre gritos e mal conseguindo manter-se de pé, deixa sua baioneta cair, e sobre o chão repousa, morto.

2. O professor, rodeado de crianças, faz perguntas como "Quando foi o descobrimento do Brasil", "Proclamação da República", "A morte de Lampião", e reforça - repetindo - didaticamente as respostas que as crianças dão.

3. O povo junto às duas lideranças religiosas e aos cangaceiros de baionetas erguidas promovem um cortejo em forma ritualística em que a música não se pode ser chamada de alegre, mas há a presença de vozes, há o canto coletivo, até um corte brusco da celebração. A trilha agora é composta por instrumentos em sua maior parte de sons metálicos em contraponto graves potentes e de tons ameaçadores, juntos quase como anúncio de algo que está por vir, um confronto. Trata-se de um plano aberto, onde o cangaceiro dirigente do grupo se encontra mais a frente, logo atrás as duas figuras espirituais e o povo em massa sentado mais ao fundo. Em meio a tudo o professor, o delegado e o coronel cego acompanhado de seu servo, que faz o papel de seus olhos, surgem notando a presença daquele bando. 

        Notamos que já nesses três momentos iniciais temos variações sobre temas já suscitados que obviamente terão sua clareza estabelecida no decorrer da obra, como quando, no exato momento seguinte, o cangaceiro anuncia: 

       "Eu vim aparecido. Não tenho família, nem nome. Eu vim tangendo o vento pra espantar os últimos dias da fome. Eu trago comigo o povo desse sertão brasileiro. E boto de novo na testa um chapéu de cangaceiro. Quero ver aparecer os homens dessa cidade. O orgulho e a riqueza do Dragão da maldade. Hoje eu vou embora, mas um dia eu vou voltar. E nesse dia, sem piedade, nenhuma pedra vai restar. Porque a vingança tem duas cruz: a cruz do ódio e a cruz do amor. Três vezes reze o padre nosso, Lampião nosso senhor."

      Tal discurso determina agora aquilo que havia sido mencionado no letreiro inicial, cujo qual o cangaço, e a lenda de Lampião que estaria viva em outros homens. Essas palavras ditas diretamente para a câmera são anunciadas logo após um plano médio - consequência do plano-sequência imediatamente anterior, citado no item 3 - do coronel e seu criado que o carrega pelo braço. Já de inicio: Antônio das Mortes liquidando um cangaceiro; o cangaço novamente vivo junto ao povo, ou ainda os beatos, e seus líderes espirituais em oposição ao coronel.

      Mais a frente Antônio das Mortes, junto ao delegado acalentado por uma mulher, relembra e narra, enquanto personagem, as lembranças dos confrontos contra o cangaço, quase como um transe, e admite: "Lampião era meu espelho". Antônio é jagunço, portanto é matador de aluguel, ganha a vida semeando a morte para colher um pouco de vida em troca de algum dinheiro, mas nada disso pode determiná-lo como um personagem mal, ou bom, mas contraditório. Sobretudo no momento em que se encontra, ainda que aceite a tarefa de acabar de uma vez por todas com o cangaço, assume ser uma tarefa ligada a seu “orgulho”, e poderíamos dizer completude de sua função enquanto matador.

       Novamente Antônio executando cangaceiros, com uma trilha que integra tal retorno representado por um disco que insiste em seguir de seu fim para o início como um circulo vicioso, que por sua vez prepara a volta de outros homens que representarão o povo, o cangaço e suas contradições e belezas místicas. O personagem de Antônio é tomado então por tal circulo, e se encontra claramente em conflito consigo mesmo, e mesmo assim ainda decide dar prosseguimento, já não mais pelo dinheiro, mas pelo fim imediato dele.

       O que veremos durante a continuidade do filme é que todos estes personagens, e os outros que surgirão, já não tem necessariamente mais controle sobre a história - e sobre a estória - enquanto indivíduos, nenhum deles carrega em si a mudança, mas ao contrário só em momentos de união popular, coletiva, ainda que repleta de contradições, é que há possibilidade de alguma saída afirmativa para aqueles condenados. Todos os personagens concentram contradições insuportáveis: o coronel cego nega o desenvolvimento agrário, tentando manter um tipo de vida negado até pelo personagem do delegado contrário ao cangaço e ao movimento popular, mas a favor da reforma agrária, tanto que propõe a Antônio das Mortes um último massacre, depois uma vida tranquila, o jagunço como já vimos em transe quase absoluto; o povo por sua vez, vaga entra a miséria e por sua vez a dor que representa ao mesmo tempo sofrimento e possibilidade de força para o enfrentamento, e a devoção religiosa, bela e aprisionadora, que também carrega força de mantê-lo em pé ainda que miserável, mas muitas vezes acomodado a ponto de aceitar sua condição de explorado.

        A obra acontece, os personagens revisam seu passado, anseiam um futuro, mas suas ações são quase nulas, se atracam uns contra os outros, por vezes contra seus pares, fazem surgir germes revolucionários, mas logo os matam. Suas ações violentas desesperadas são combatidas com violência, farinha e carne seca.

        Ainda que represente um personagem que não tem mais controle que seus pares da situação, uma vez que foi responsável, inclusive, por grande parte da morte - literalmente - de possibilidades de lideranças revolucionárias, Antônio das Mortes representa uma camada onirico-desejante do filme, a possibilidade, ilusória, de um herói redimido, uma vez que se colocando contra os poderosos, liquida praticamente sozinho, quase um exército inteiro, mas ao mesmo tempo marcha contra o progresso - em cena final quando caminha contra os caminhões que levam as mercadorias.

        A importância de se entender esta camada onírico-desejante de Antônio das Mortes é que na medida em que todo o filme é construído através de relações concretas e literais, que produzem experiências, é através do choque entre real e onírico-desejante que se estrutura a obra. As relações entre personagens destruídas pelo capitalismo, figuras de poder, vingança, solidariedade do explorador, os torna, e torna suas ações, cada vez mais ineficazes, mas, sobretudo explicita-se o movimento e as razões da ineficácia, por trás da concretude das relações e de suas aparente normalidade, se sobrepõem um mais de realidade. Como quando o coronel, entregando farinha e carne seca ao povo, que jogado ao chão, devora o alimento em latas de leite "Ninho" com as mãos, a voz do coronel ressoa insistentemente: "Eu sou bom. Dêem farinha e carne seca para todos. Eu sou bom. Diga ao povo que sou bom. Farinha e carne seca para todos. Abra o armazém." Aquele alimento sana a necessidade momentânea - e eterna - daquele povo, é também paliativo e objeto de aprisionamento à figura do coronel que aparentemente é solidário, mas como qualquer bom capitalista, mantém seus empregados de pé para lhe servirem, e extrair deles a mais-valia em tempo-dinheiro; há ainda a necessidade humana, de um homem cego pelo poder que ainda necessita sentir-se bem consigo e para os outros, e que acredita que é bom, na medida em que faz a ação analgésica.

   Como diz Bergson "Nós não percebemos a coisa ou a imagem inteira, percebemos sempre menos, percebemos apenas o que estamos interessados em perceber, ou melhor, o que temos interesse em perceber, devido a nossos interesses econômicos, nossas crenças ideológicas, nossas exigências psicológicas. Portanto, comumente, percebemos apenas clichês. Mas se nossos esquemas sensório-motores se bloqueiam ou quebram, então pode aparecer outro tipo de imagem: uma imagem ótica e sonora pura, a imagem inteira e sem metáfora, que faz surgir a coisa em si mesma, literalmente, em seu excesso de horror ou de beleza, em seu caráter radical ou injustificável, pois ela não tem mais de ser "justificada", como bem ou como mal… O ser da fábrica vem à tona, e já não se pode dizer "afinal, as pessoas precisam trabalhar…" pensei estar vendo condenados: a fábrica é uma prisão, a escola é uma prisão, literal, não metaforicamente." (Guilles Deleuze. Imagem-Tempo; página 33, Editora Brasiliense, 2009).

           Da mesma forma é impossível dizer em Dragão da Maldade “afinal as pessoas precisam comer".

    Contudo, uma vez que entendemos que habitualmente estamos de fronte à matéria, ao mundo, que por sua vez, percebemos através de nossas categorias sociais, econômicas, religiosas, etc. como poder acessar essas imagens em sua literalidade? A experiência cinematográfica existe na medida em que a obra finalizada é exibida e posta em relação. O filme poderia ter morrido na cabeça do autor, ou ainda na geladeiras em rolos de filme jamais postos em experiência. Portanto consiste em experiência de cinema, o público entrar em contato a partir do todo até as relações colocadas nas diversas camadas narrativas do filme. 

   Mas se no que tratamos aqui, a superação do esquema sensório-motor, a fim de se chegar a tal literalidade da imagem, o que não determina o sentido pleno das relações expostas, uma vez não atingido este objetivo poderíamos dar o nome de experiência ao que percebeu o espectador? 

   Eis a importância de trabalharmos a ideia de literalidade em Deleuze, a partir do ponto de vista da experiência cinematográfica. 

IV

"[…] se aprender é uma experiência que envolve todo o ser, e não a troca entre um sábio e um ignorante, o ensino ajusta-se às condições da aprendizagem, desde que ele próprio seja uma experiência; este requisito será satisfeito caso se coloque a atenção nos problemas e na diferença dos problemas." (Zourabichvili, François. Pag 1312. Educ. Soc, . Campinas. 2005)

 Em “Deleuze e a questão da literalidade”, Fraçois Zourabichvili aponta três temas cujo quais seriam possíveis organizar uma teoria do ensino:

1. a aula tem a ver com o que buscamos e não com o que sabemos

2. Não sabemos por quais signos um estudante aprende ou torna-se bom em alguma coisa

3. A atividade de pensar, e também o verdadeiro e o falso relativamente a essa atividade, começam quando traçamos os problemas mesmos

         E em consequência dos três, a questão da literalidade.

    Segundo F. Zourabichvili, para “acessarmos” ou percebemos uma obra - em seu texto ele usa precisamente a compreensão sobre um filósofo - devemos acreditar nela. Por acreditar, François não propõe aderir à obra, mas deixar que seu movimento real aconteça e seja percebido no momento da leitura.

“[...] não separar nunca, seus conceitos do desvio, do deslizamento ou do deslocamento, dos quais eles são, por assim dizer, os casos. Isso supõe que o próprio fazer seja enunciado, indicado em palavras. O filósofo faz ao dizer, mas porque ele diz o que faz, não apenas para nos indicar isso, mas também porque fazer, em filosofia, não tem outro elemento a não ser a linguagem: trata-se de uma mudança prática da linguagem”

     Para Deleuze o sentido existe na medida em que há relação, tudo está no mundo, encadeado e em movimento, e, por sua vez, todas as coisas no mundo sofrem contaminações móveis umas das outras: a extinção do ser em prol da relação, ou do devir, segundo Zourabichvili.

     Como já frisado, junto a criação de sentido através da relação a obra deve ser percebida com certa crença:

“[...] Crer é um acontecimento, uma síntese passiva, um ato involuntário, que se confunde com a abertura de um novo campo de inteligibilidade.”

       E, por fim, a toda experiência é cristalina. Para Deleuze trata-se de um cristal, uma estrutura que foge ao padrão, ou precisamente o clichê, e gera uma nova imagem: nas palavras de Zourabichvili a do reconhecimento orientado para a ação.

“[...] Europa 51. A heroína, assim como todos, sabe o que é uma fábrica. Em outros termos, a fábrica tem um lugar no horizonte de seus possíveis: enquanto ma grande burguesa , ela sabe reconhecer um operário, sabe que ele não pertence ao mesmo mundo que ela, etc. Mas eis que um acontecimento de família desarranja sua vida e seu espírito bem arrumados. Ela vai, uma dia, a uma fábrica, fica transtornada , e volta para casa dizendo: “acredito ter visto condenados”. Deleuze comenta: não se trata de um sonho [...] Trata-se, pois, da visão renovada de uma experiência da fábrica: ela viu a fábrica e a viu como uma prisão.” (Zourabichvili, François. Pag 1317. Educ. Soc, . Campinas. 2005)

       Em outras palavras a fábrica outrora “despercebida” pela heroína passar a existir na medida em que é vista como uma prisão. Podemos compreender que neste caso a heroína teve uma experiência.

     Diversos filme do cinema novo brasileiro, neo-realimos italiano, surrealismo, cinema marginal, cinema americano de arte pré-70, ou ainda autores modernos como David Linch, e em nosso objeto de análise O Dragão da maldade, expõem cristais tanto na concepção totalizante do filme, como em seus fatos e relações desencadeadoras e formadoras desse todo. E sobretudo, não falamos aqui só de cristais expostos diegéticamente, mas da relação com o espectador, ou aquele que em relação ao filme será ou não confrontado com a experiência.

        No plano ideal, e primevo, o ato de se dar comida de graça a outro é um ato bom. Contudo, o filme deve ser visto sobre todas as suas relações. O personagem que deu comida aos pobres é um coronel cego, grande proprietário de terras, que teme a reforma agrária, o levante do povo, a chegada do jagunço e do cangaço, portanto quer manter toda sua riqueza, e em qualquer outro momento tendo seu armazém repleto de comida não o ofereceu. Então, literalmente o mesmo povo que marchava em cortejo-ritual junto ao cangaço, e que carregava em si a dor e o germe revolucionário , ajoelhou sobre o chão perante o coronel para aliviar sua fome.

           Parece-me que ainda que muitas imagens sejam perfeitamente concretas, quando vistas através de suas relações nos levam as situações opostas em relação a literalidade sobre uma obra: 

- De um lado vemos a obra colocando, previamente nossas categorias sobre ela
- Por outro, nos entregamos tanto a seu movimento, que esquecemos que para se chegar a percebê-la, também fomos frutos de relações no mundo

          A tarefa não parece fácil, tanto que não é a toa a estrutura musical clássica de o “Dragão da Maldade” quando um tema é apresentado, e no decorrer dele vemos suas variações. Mas não podemos dizer que apreensão de suas variações, após a exposição do tema é mais confortável. Quando partimos do que hoje rege o mundo e suas relações, o senso comum, o desafio parece cada vez mais distante. O filme, a arte, nunca concentrará em si a solução de todos os problemas do mundo.

     Mesmo em sua relação com um público mais “intelectualizado” o cinema passa por momentos difíceis - herança da indústria cultural -, cujo quais suas camadas narrativas e suas capacidades críticas são cada vez mais suprimidas para dar lugar a história propriamente dita. Não se vê mais potencial narrativo na música, na câmera, direção de arte, no som, no corpo e voz dos atores - ou seja, a contradição que podem trazer através de gestos, por exemplo. Atualmente, o que mais vemos são teses sobre o enredo do filme, mas nunca sobre seus elementos narrativo-criticos totalizantes.

         Nos tempos atuais a literalidade não é impossível, pelo contrário é possível e necessária, mas de forma alguma facilmente ao alcance das mãos. Uma vez que vivemos em um mundo que cada vez mais suprime o tempo e as capacidades narrativas do homem, e o coloca na posição a todo instante no povo de O Dragão da Maldade, alimentando-se parcamente para manter-se em pé. A literalidade acima de tudo necessita de tempo, tal qual sempre necessitou a filosofia.