O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Também é Natal na cracolândia.


(o natal existe: todo o Mundo é triste)

O Natal chegou, mais uma vez.


As frases de efeito, chavões, clichês, lugares comuns, etc. que se erguem contra o Natal, povoando o imaginário daqueles que aparentemente detestam o capitalismo, converte-se naturalmente em bloqueio à verdadeira crítica da mercadoria. A revolta assim se transforma em papagaiada, mesmices, do tipo: o natal é a festa da hipocrisia! Nos porões da nossa consciência existe um saco cheio - e vermelho! - dessa ideologia reciclada, que, no fundo, não passa de mais uma atração das festividades natalinas. De fato, o natal já não incomoda tanto quanto os seus críticos morais de plantão. 


A hipocrisia, o parco entusiasmo do trabalhador analfabeto, despolitizado e dominado pela ideologia (petista) do consumo, é infinitamente menos corrosiva do que a hipocrisia histérica da classe-média, que se auto-intitula “reflexiva”. Quem são eles? Nós: artistas, estudantes de Humanas, professores universitários, agitadores culturais, etc. etc. Chamar de corja esse segmento social, por seu pedantismo parasitário, pode parecer um insulto  contraditório. No entanto, muito cuidado leitor: sentir-se insultado com o xingamento é provar justamente sua exatidão! Contente-se com a verdade, e não tenha medo em ser a exceção da regra. Enfrente sua caganeira cheirosa... cagão!

***

“O natal chegou mais uma vez”. Esta frase conserva um conteúdo ideológico gritante, e ensurdecedor. A sensação de imutabilidade, de que nada acontece e de que vivemos numa realidade imóvel, é um dos resultados mais perversos, no nível da consciência, que o veneno da mercadoria produz. O efeito é tão devastador e vertiginoso que beira a loucura: repetem-se detalhadamente os mesmos comportamentos, ano após ano...

Ainda estamos no ano passado? O ano passou, ou tudo não passa de uma eterna véspera – eterna temporada no inferno do consumo?

Os mecanismos que conformam o aparelho mental de um consumidor padrão assemelham-se enormemente aos de um viciado em crack: comportamento repetitivo, uniformização assustadora das funções motoras, incapacidade de comunicação, redução da capacidade cognitiva, confusão mental, sensação repentina de sufocamento, irritabilidade, etc.

Para o viciado, o efeito da droga de certa forma é permanente. Toda a sua vida, nos dias em que não está sob efeito da droga, é uma espécie de odisséia (com toda ironia) que só faz sentido quando o objetivo é alcançado: o consumo. Essa é a medida palpável de onde devemos partir: a experiência sensível das pessoas, e não de esquemas morais inócuos.

Uma festividade voltada ao consumo, no reino absoluto da mercadoria, aparece necessariamente como um verdadeiro caos moral. Não pode ser de outro modo.  A dissolução ética em curso é plenamente compreensível à luz das forças cegas de acumulação do capital, que regem os anseios mais subjetivos das pessoas. Espantoso, nesse sentido, é ainda nos espantarmos com isso. O nível moral só se presta à constatação do óbvio, exemplo simples para fins pedagógicos.

Mas, justamente no nível mais sensível à consciência podemos observar que as coisas mudaram, e mudam, ao contrário do que parece. Primeiro: a derrocada cultural, ou o reforço diário da ideologia do consumo, não esbarra num grau zero de destruição subjetiva – pelo contrário: seguindo-se até as últimas conseqüências a marcha só será interrompida por uma destruição definitiva da base social que lhe sustenta: o fim da própria civilização humana.

O natal, nesse sentido, serve para alguma coisa: é um termômetro. Todos percebem, ou “sentem”, que as “festas” do ano atual mudaram em relação ao ano anterior. Difícil é confessar que mudam pra pior. Seja como for: trata-se de uma expressão simples, mas altamente reveladora do ritmo pelo qual nos aproximamos de um abismo irreversível.

De outro lado, a crise, alastrando-se em ondas sucessivas e cada vez mais largas de desemprego em massa, medidas econômicas restritivas contra a classe trabalhadora, etc. O Brasil afundará em breve... Com o seguinte desconto, que parece tornar imperceptível o efeito da crise: a miséria atual extrema de algumas nações européias não é novidade para nós: o desemprego aqui é crônico, e a miséria permanente. Mas, como foi dito, o buraco é sem fundo...

No telejornal do meio-dia, mostraram a imagem de uma rua do centro da cidade de São Paulo. Como um formigueiro, pessoas moviam-se aparentemente sem rumo. A jornalista hesitou por reveladores milésimos de segundos. Cracolândia, ou 25 de março? O editor deu a informação, e o tom do informe, imediatamente, revelou-se eufórico... De fato, como não pensávamos, era a rua do comércio feliz. Mas um silêncio fúnebre se manteve indisfarçável... Resquícios de uma dúvida sinistra. Visto de certo ângulo, o cinismo é digno de pena.  

João .

Roberto Piva - A Piedade

Filme com Roberto Piva e vozes de Jim Morrison, Willian Burroughs, Patti Smith Jack Kerouac, Antonin Artaud. Músicas de Stockhausen, Lou Reed e Morfine.



segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

"O Signo do Caos"

Escravos de Zara

Ação direta realizada em 10 de dezembro, dia de comemoração do aniversário da publicação da Carta Universal dos Direitos Humanos, contra a franquia espanhola ZARA, que mantém trabalhadores em regime de escravidão.


Veja a reportagem completa - no link abaixo-, e entenda mais como essa empresa- que só é uma entre tantas empresas, corporações - mantém os trabalhadores em regime escravo.


http://www.reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=1925&name=Roupas-da-Zara-s%E3o-fabricadas-com-m%E3o-de-obra-escrava



quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

"Linguagem" Paulo Leminski

"Pasolini passou aqui"




A notícia é da semana passada: depois de uma longa queda de braço, o prédio do Cine Belas Artes, na Rua da Consolação, não será tombado pelos órgãos de proteção ao patrimônio. Fechado desde março, o imóvel foi pichado com a frase “Pasolini passou aqui”, aludindo ao cineasta italiano.

O autor da ação (confira vídeo acima) é um artista paulistano. Ele topou dar uma entrevista, por e-mail, ao blog. Antes, fez algumas ressalvas, que reproduzo a seguir:

“sobre o meu nome pensei bem e não gostaria que aparecesse mesmo.
não por omissão, mas pela coerência da proposta.
gostaria de assinar com um endereço eletrônico:
www.exorcity.pravida.org
o que acha?
de qualquer maneira gostaria de colocar o link junto do texto.
sei que será praticamente impossível
isso sair na íntegra no impresso
mas fico na expectativa que ao menos no eletrônico
não haja cortes.
tomei algumas liberdade de escrita
por exemplo:
escrever pixação com x (de pixel)
e não com ch (de piche)
utilizei a palavra pixo também muitas vezes”

Isto posto, publico a nota na coluna impressa da edição de hoje da seção ‘Paulistices’. E, a seguir, a íntegra da entrevista:

Por que “Pasolini Passou Aqui”?
Perigoso explicar. A expressão “Pasolini passou aqui” se auto-explica e, precisamente, naquele espaço, estimula múltiplas interpretações. O que posso afirmar, percebendo a recepção das pessoas, é que ao menos duas questões primordiais são levantadas: a primeira (definição da denúncia), como assim acabou o cinema e ninguém faz nada? a segunda, não menos importante: quem que é esse Pasolini? Um grupo de pixo? Fato é que o cine belas artes encontra-se agora desfigurado como desfigurado fora o rosto de Pasolini naquele novembro horrendo de 1975 (quando o poeta do cinema, de porte e postura, foi atropelado de maneira perversa, sob a pecha de comunista emporcalhado). “Pasolini passou aqui”, é obvio, porque os filmes dele foram ali exibidos, “Pasolini passou aqui” porque esse é o espírito da pixação: o do “fulano passou por aqui”, “Pasolini passou aqui” porque o espírito Pasolini passou por mim: psixografei-o. Atropelo cinema X atropelo Pasolini. Para alertar os desmemoriados.

Como surgiu a ideia de escrever essa frase na fachada do Belas Artes?
Muros são como túmulos: merecem epitáfios; e morremos todos os dias entre os muros. Penso que jamais devem haver retrocessos nesses aspectos: nunca um muro a mais, sempre um muro a menos: nunca um cinema a menos. A ideia de uma intervenção bem diagramada e clara, utilizando a marquise como grid para simular um letreiro de cinema (letras brancas em caixa alta), me pareceu uma boa solução para comunicar e resignificar o problema. Fiz a poetixação (como Augusto de Campos me sugeriu chamar essas perquirições) para explodir o diálogo, trazendo a questão do cinema pro universo da pixação ao mesmo tempo q a questão do pixo pro universo do cinema. Afinal, já é tempo de abrir os códigos desta linguagem marginalizada para expandir seu alcance e atuação e como diria o próprio Augusto: “filmletras quem os tivera?”.

Como foi a “operação”? Você tomou algum tipo de cuidado para não ser surpreendido?
A operação foi precisa. Utilizei a técnica que a pixação me deu. Nenhuma outra modalidade de composição me daria essa habilidade, e eu não estava sozinho. Aspirei ao letreiro luminoso que é recorrente no filme O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, mas foi mesmo o letreiro furioso do pixador #DI#, pioneiro que dominava plenamente a arte de pixar de ponta cabeça, que me inspirou na hora.

Qual sua ligação com o Belas Artes?
Não tenho nenhuma ligação com as “belas artes”, esse termo está totalmente ultrapassado. Não compactuo com beleletristes. Mas, apesar do nome, é certo q era um bom cinema, caso em extinção de boa programação (que incluía filmes representativos da história cinematográfica) e ótima localização (contrário da cinemateca por exemplo). Hoje, ficamos reféns dos filmes em cartaz da programação meramente comercial dos outros cinemas da região, da qual 1% dos filmes trazem alguma novidade, os outros 99% são carne de vaca.

Como você recebeu a notícia de que, definitivamente, o cinema não será tombado?
As coisas estão tão sem sentido que eu recebi mensagens comemorando o fato da pixação ter aparecido no jornal ao invés de lamentando a decisão da “justiça”. Cultivei, nestas ultimas semanas, a falsa expectativa de que o cinema pudesse voltar a funcionar. Mas não, o que se vê é uma política pública que privilegia os interesses do mercado imobiliário, e essa política repercuti em sérios equívocos sociais. Como abordar essa coisa delicada a qual chamamos vida? E se o cinema é, em certo grau, a extensão da nossa mente, de nossos sonhos, é justamente a nossa cabeça que está sendo atropelada. E se não tem cinema, e se o mercado rodoviarista também comete suas presepadas, e se aquela velha lei da física prova que os muros estão em movimento em relação ao corpo que está parado dentro do carro, os pixadores (melhor se forem poetixadores) vão se encarregando de distribuir palavras e imagens em movimento por aí. o cinema é o mundo?

EDUARDO COUTINHO (Vice Magazine)



TEXTO LAURO MESQUITA E FOTOS CHRISTIAN


Os filmes de Eduardo Coutinho não têm pirotecnias, nem jogos de câmera incríveis. Em geral, têm pessoas falando, contando histórias de suas vidas. Mas foi com essas histórias que ele se tornou um dos melhores cineastas do Brasil—e sem dúvida o maior documentarista.

Morador do Rio de Janeiro há quarenta anos, ele mantém o seu jeito de tio turrão de bairro paulistano, onde nasceu. É notadamente ansioso e se recusa a falar sobre sua vida pessoal e hábitos—como o tabagismo—renega dois de seus filmes e costuma declarar que não aprendeu nada trabalhando na imprensa na década de 50, e que duvida que alguém aprenda.

Em Santo Forte (1989), seu segundo filme a ir para os cinemas, mesmo sem apego algum a ideologias ou credos, ele fez algumas das cenas mais intensas sobre a fé do cinema brasileiro sem filmar ne- nhum culto nem nenhum ritual—a crença se materializava nos depoimentos das pessoas. Coutinho acima de tudo ouve o seu interlocutor. Daí em diante, seu cinema parece obcecado com a descoberta das coisas a partir das conversas e dos relatos diante da câmera.

Esse interesse pela conversa talvez tenha começado já em 1984, quando o diretor lançou o seu primeiro longa-metragem, Cabra Marcado para Morrer (1985), quando ele retomava a tentativa de fazer um filme com camponeses da cidade de Galiléia na Paraíba. Na primeira tentativa, em 1964, a intenção era reencenar a vida do líder camponês do título. O filme foi interrompido violentamente, assim como tudo que se opunha à ditadura que chegava com o golpe militar. Quando o diretor vai atrás das pessoas que participaram do projeto, 20 anos mais tarde, já não há mais utopia de construir um projeto coletivo de intelectuais e camponeses.

Apesar de sempre declarar que não vai ao cinema, shows ou teatro, preferindo assistir a tudo em casa, em seu filme mais recente, Moscou (2009), Coutinho acompanha a montagem da peça As Três Irmãs, de Tchekhov, e vai além do registro dos ensaios. Observando os bastidores do esforço para construir a interpretação do texto em apenas três semanas, ele registra uma mistura de realidade e ficção que fala muito sobre cada um dos participantes e leva o espectador a se imaginar também.

Durante a conversa, tive a certeza de que pra quem procura a verdade e nada mais que a verdade em seus filmes, a voz desgastada pelos três maços de cigarro por dia e os ouvidos abertos de Eduardo Coutinho têm pouco a oferecer. Seus últimos filmes mostram como as interpretações, no palco ou fora dele, constroem a memória do mundo.

Vice: Por que, depois de conversar com gente tão diferente ao longo de sua carreira, você foi atrás dos atores nos últimos filmes?
Eduardo Coutinho: Depois de tanto tempo trabalhando com pessoas como personagens, eu vi que há um elemento ficcional no momento em que elas falam. As pessoas se reinventam na hora de falar. Pelo modo como elas falam, e eu chamá-las de personagens, acaba se construindo mesmo uma mise en scène nem que seja uma situação vivida por elas.Isso eu já observo desde que eu fiz o Cabra Marcado para Morrer, mas ganhou força no Santo Forte. No meu filme anterior, o Jogo de Cena, eu misturei as entrevistadas com atrizes profissionais. A idéia era mostrar que muitas vezes outras pessoas podem contar me-lhor sua história do quem passou por isso. E se não é melhor, é diferente, a história pode até ganhar outro sentido... Tem duas mães contando a mesma história no filme. Uma é verdadeira e outra é falsa, mas não é isso que importa. O que importa é que todas falam a história com verdade. Ninguém é dono de sua própria história.

Então a ficção pode ser tão verdadeira quanto a declaração de um personagem que conta sua história?
No fundo é o seguinte, o imaginário é tão real quanto o real. Você pode pensar na realidade sócio-econômica e nos dados, mas o ima-ginário é tão importante quanto isso. O imaginário é o jeito como a gente cria o nosso passado, presente e o futuro. No final das contas, nós somos sempre atores—agora, aqui na entrevista, e sempre.

E quando uma história é bem contada?
Quando ela é dita com paixão, ela já é verdadeira, mesmo que ela não pertença a pessoa. O bom contador de história é sempre ator...

E qual o papel que o diretor interpreta?
O meu personagem tem de ser a pessoa que escuta mas não julga. Mas nesses dois últimos filmes, eu tive que assumir outro papel. Um papel de ator mesmo... Quando eu filmo um ator interpretando um texto do Tchekhov ou reinterpretando uma entrevista, eu tenho de fingir que não sei o que elas vão me falar, mas eu já sei o texto. Mas quando funciona é surpreendente e é isso que eu busco nos filmes.Eu não tinha noção do que as atrizes iam fazer com o texto em Jogo de Cena, nem elas, eu acho. A Fernanda Torres entra em pane. Ela tenta fazer a personagem e é ela mesma, tentando ser uma mulher que está em crise e tenta sair usando os recursos de atriz para fazer a personagem. É tudo um pouco misturado.Tem muitos momentos que eu não sei se os atores têm consciência de que estão sendo filmados ou não. Não desligo nunca a câmera. É um ocaso absoluto. Eu me comporto como quem pergunta sem saber. Várias vezes, é um papel de ator.

E foi daí que nasceu o interesse pela Três Irmãs do Tchekhov?
A partir do Jogo de Cena, eu vi que não podia voltar atrás, não podia me repetir. Eu resolvi fazer algo ao contrário do Jogo de Cena. Ao invés de colocar as atrizes para interpretar um depoimento, eu preferi acompanhar a montagem de um texto ficcional. Lidar com a questão de quem é o ator e quem é o personagem. Afinal as coisas se confundem no filme, não é? Tem hora que os atores do Galpão estão lendo um texto, tem hora que uma atriz se comove com as coisas da vida dela, em outros momentos alguma coisa da peça emociona uma das atrizes e elas começam a cantar o hino de Divinópolis. E a situação, em si, já tem um elemento de imaginário. Afinal é uma peça que nunca vai se realizar. Uma peça que a deveria ser montada em três semanas, já era um projeto inacabado no nascimento...

E sua experiência como jornalista ajudou nesse trabalho de entrevistador?
Eu acho que não. No Jornal do Brasil eu fui copidesque, ficava na redação. E depois fui trabalhar nas reportagens da Globo e ali eu tive um aprendizado de câmera... Mas foi no Cabra Marcado pra Morrer que eu me tornei cineasta. Cheguei na Paraíba sem muita pesquisa para dirigir um documentário sobre a morte de um líder dos lavradores. Tudo sem pesquisa alguma e sem conhecer a minha principal personagem, viúva do João Pedro. Lá que eu aprendi que com pesquisa ou sem pesquisa eu espero buscar coisas surpreendentes. Por que jogo é jogo e treino é treino. É na hora de filmar que as coisas acontecem. Nunca se sabe se vai sair um filme ou não dali. 

É bom falar sobre o Cabra Marcado, eu acho que ele diz muito sobre a mudança do cinema brasileiro. Originalmente o filme era um projeto coletivo envolvendo “representantes” de intelectuais e camponeses, não é? Com o golpe militar, que interrompeu as filmagens em 1964, ele se tornou uma busca de um indivíduo por outros indivíduos, reencontro em que os cacos da história estilhaçada, rompida, são retomados. O quanto essa experiência te marcou?
É isso mesmo. Eu era envolvido com o CPC e fui me meter em cinema, fazendo filmes sobre camponeses. Logo eu que não sabia nem como se plantava uma batata. Em 15 dias lá, estive com umas 15 pessoas. O curioso é que a gente ia filmar uma história das pessoas do movimento dos camponeses da Paraíba, eles atuando como atores de sua própria história. O golpe militar interrompeu as filmagens e o filme ficou inacabado. E daí eu reencontrei essas pessoas quinze anos depois. O Cabra era uma espécie de um resgate de uma história perdida por todos. Por isso é um filme que fala da minha vida e da vida dos personagens, da equipe... O próprio filme é personagem. E acho que isso que deu tanta força ao filme.

E por que você passou tantos anos sem lançar um filme nos cinemas depois do Cabra?
Eu fui fazer cinema 15 anos depois com o Santo Forte. Eu demorei pra fazer o filme porque não encontrava quem apostasse na idéia de um filme sobre religiosidade em que os cultos e os templos não aparecem... A religiosidade aparece toda por meio da fala das pessoas. E eu na verdade, falava sobre fé ,mas queria saber como as pessoas vivem. A partir daí, os meus filmes partiram de ser o encontro das pessoas e da câmera. A maneira como elas se relacionam e contam suas histórias para câmera. O tema é sempre a vida.

Esse caso é curioso por que seus filmes parecem interessados no que as pessoas têm a falar sobre o que é difícil de medir, pelo intangível. Seja nas entidades de Santo Forte e Babilônia, seja no mito de Lula, em Peões...
Acho que isso rende conversa. Em Peões, eu não queria saber da maneira como as pessoas viam a greve de 78.Todos eles vão contar a greve como um mito. Quero saber como eles viveram aquilo, como era vida das pessoas naquela época. E como eles viveram depois da greve. O curioso é que a maioria dos operários estava melhor de vida. No discurso deles, os mais comunistas, os mais aguerridos, se orgulhavam de trabalhar na Mercedes-Benz. E isso é muito curioso pra quem vem de outra realidade. Mas o que me interessa é isso mesmo. Você tem de revelar a diferença cultural. Tem de se abrir pras coisas. E mostrar que isso não é um obstáculo. Eles têm algo a me ensinar e eu tenho algo a ensinar a eles.

Por que falar de um lugar que só existe na imaginação das pessoas, como a Moscou da Três Irmãs de seu último filme? Essa Moscou é boa para pensar o Brasil?
Na verdade, já na peça, Moscou é uma coisa de tudo que você idea-liza. É o que a gente pensa na vida e que não acontece nunca. Eu acho que esse texto não fala só sobre o Brasil, é universal, pra qualquer pessoa. Eu acho que a peça diz respeito a todas as pessoas. A vida de todo mundo tem origem, família, morte, o trabalho. São as coisas que inte-ressam as pessoas. Como a gente filmou com o Galpão em Minas Gerais, o texto acaba trazendo algumas reminiscências deles. Mesmo por que as memórias delas e das personagens se misturam também. Tem uma cena em que uma das atrizes chora depois de um ensaio. As colegas se aproximam, uma dá um copo de água, diz uma frase do texto da peça, como se o ensaio continuasse, e, por fim, uma atriz entoa o hino de Divinópolis. O que isso tem a ver com Tchekhov? Não sei também, mas é que ali elas eram as atrizes, a personagens. A atriz tá falando da vida dela. No fundo não tem no Tchekhov. Foi puramente eventual. Elas viram a atriz triste e tentaram animar ela com o que tava acontecendo ali na hora.

E o quanto esse acaso é importante nos seus filmes? 
Sem o acaso e o improviso, eu não tenho o menor interesse no que eu faço. Se eu não me surpreendo em um filme, ele não me interessa em nada. Acho que isso também serve pro público. Se o filme não faz pensar, não toca na imaginação, não vale a pena. Nessa cena mesmo, do hino de Divinópolis, não tem nada premeditado. Nessa hora, não tem nem o diretor e nem o personagem, não tem nada. É a perso-nagem e a atriz falando ao mesmo tempo. O artista tem de buscar o acaso. Quando ele funciona é quando a gente acredita no que está vendo ali. A coisa tem paixão, a gente acredita e a coisa se desmancha, ninguém vive no paraíso o tempo todo.

E isso também parece ter muito a ver com o que as irmãs falam no filme.
Eu acho que a vida é assim. As pessoas fantasiam que a vida vai ser de um jeito, sonham com alguma coisa, e quando isso acontece elas se frustram. Para mim é assim, e acho que Moscou tem muito disso.

E pelo que eu fiquei sabendo isso também teve muito a ver com a montagem do filme?
Nesse filme a gente tinha tanto material, setenta horas filmadas em duas câmeras. Era muito material filmado e acho que isso tem muito a ver com as novas tecnologias. A câmera permanecia ligada o tempo todo. E na hora de montar, eu e Giovana Berto, que já trabalha comigo há dez anos, a gente estava perdido. Então fizemos uma pré-edição de quatro horas e quarenta. E vendo tudo ali naquele material, eu percebia que a gente não tinha filme. Eu realmente não sabia o que fazer. Eu nunca tinha vivido essa experiência. Em Peões eu até vivi uma coisa parecida, mas era mais relacionada a alguns detalhes do filme. E aí o João Moreira Salles, produtor do filme, foi essencial pra me apontar o caminho. Ele inclusive também sugeriu o nome do filme. Partimos para a idéia de fazer uma coisa em fragmentos. E nisso, esse formato dialogava com uma peça que também é um fragmento inacabado.

Mas havia a preocupação de contar toda a história da peça?
Eu nunca quis um filme de making of e o material das conversas não renderia imagens boas pro filme. Na montagem, a gente passou a não se preocupar em contar a história inteira. Começamos a trabalhar com fragmentos que incluíam vida pessoal, workshops, oficinas, improvisos e o próprio texto do Tcheckhov, fazer um mosaico que fizesse sentido sem ser óbvio

E quando você sentiu que o filme estava pronto?
Ao longo da montagem, eu fiquei aliviado por chegar a uma solução que fosse interessante, mas mesmo assim eu continuei cheio de dúvidas até que o filme estreou. Só depois da estréia no “É tudo verdade” é que eu vi que o filme estava pronto. Depois que eu li umas críticas que me deixaram contente. E não é por que falaram bem do filme, mas por que pensaram a partir do filme. E pensaram até coisas que eu não tinha pensado. Na minha opinião o filme é bom quando faz pensar ou sentir, com a cabeça ou o coração. É claro que algumas pessoas não vão embarcar no filme. Isso é normal. O público pode gostar dele se estiver aberto a um filme que não é tão comum. Um filme que não é uma peça e nem um documentário sobre montagem de peça é isso também.

E uma vez você disse que o filme pronto não é só seu...
O filme pronto não é mais meu. Eu pertenço ao filme, mais do que o filme pertence a mim. Ele já é um fato consumado, um objeto que tá aí.

E como essas novas tecnologias te ajudaram?
Foi a primeira vez que eu filmei com câmeras HD digital. O modelo que eu usei não é desses super modernos não, mesmo assim, ele tem uma qualidade de imagem muito boa, que parece cinema. E outra coisa é que ela grava em uma espécie de disco em que você pode filmar umas vinte horas seguidas. Você pega e põe no computador. Você pode filmar horas sem parar. Mas o principal é essa qualidade de imagem e que cada um vai ficar melhor e mais barato. Eu já não filmo com película há quase vinte anos. Tem gente no Brasil, um país pobre, que ainda tem esse fetiche com o 35 mm. Eu acho que pode até existir ocasiões em que a película é necessária, mas no caso do documentário, eu acho patético que ainda tenha gente com essa preocupação.

Muita gente inclusive comenta da plasticidade do seu último filme. Do trabalho com a imagem, a câmera tem a ver com isso?
As duas palavras mais terríveis para mim são pureza e perfeição. Você sabe o mal que essas palavras já causaram no mundo. Meus filmes são e continuarão tendo a pessoa como centro das coisas, a oralidade e o corpo delas. Talvez a câmera tenha trazido uma imagem melhor, mas acho que essas imagens vêm muito do trabalho que os atores faziam surgir na sala de ensaio e das propostas do Enrique Diaz. Eu só acompanhava e tentei interferir o mínimo nas cenas.

E como foi esse trabalho entre você, o Enrique Diaz e o Galpão?
O Enrique Diaz também dirigiu. Eu participava das discussões sobre os detalhes e sobre a concepção do trabalho, mas a direção de atores e a concepção da peça é dele. Eu nunca falei com um ator pra fazer isso ou aquilo. Eu interferia o mínimo. Podia até conversar com ele sobre uma cena ou outra. Ao mesmo tempo, ele tinha a dificuldade de lidar com uma coisa que era pouco confortável. Afinal ele pro-punha as cenas e os ensaios da peça sem saber como eu estava filmando. Ele não podia interferir na imagem. Com isso, eu queria deixar ele livre, para que os atores fossem verdadeiros. Pro público acreditar nos atores, seja fazendo Tchekhov, seja fazendo exercícios, seja falando da vida deles. Os atores do Galpão e o Enrique Diaz não sabiam como eu dirigia a câmera e conduziam a montagem da peça como se fosse uma montagem. Era uma atuação dentro da atuação. No final, eles sabiam que eu ia montar e na montagem é que a coisa seria decisiva, como acabou sendo. Mas o importante é que as imagens que estão foram feitas por eles. E mesmo que falem desse cuidado maior com a imagem, é tudo de uma simplicidade total. Não gastamos nada com cenografia, já estava tudo lá. Eu acho isso muito bom. Porque o texto e as interpretações fazem entrar na viagem do filme, imaginar, pensar as coisas da vida. Isso que importa. Dá pra interpretar como quiser, o filme é aberto pra isso. E como eu disse, o filme não me pertence.

E depois desse trabalho, o que te motiva a fazer um filme nos dias de hoje? O que você busca?
Vários filmes, desde o Cabra, acabam sendo filmes sobre um mundo que sumiu. Nesse caso era o fim do patrimonialismo, o fim do movimento camponês, mas é muito desse mundo que não existe mais, que fica na memória e que a gente recria com a imaginação. Quando eu filmei o Edifício Master, que é sobre os moradores de um prédio em Copacabana, eu não queria falar sobre esse bairro no Rio de Janeiro. O tema é o encontro com as pessoas na metrópole. Eu jamais esco-lho um tema. O tema é sempre um pretexto. O tema é a vida delas e a memória delas e dos objetos. Eu não filmo pobre por motivações políticas ou sociais. Eu filmo por que eles são diferentes de mim. Meu objetivo é sair de mim.

Eu não estou preocupado com a profundidade, mas com a superfície. No cinema, se não tem aparência a vida não existe. Por isso não interessa se a história é real ou não, interessa que ela seja contada. Não me interessa a montanha, o edifício, a fábrica ou o que for. O que me interessa é o corpo humano que se expressa por meio da fala. Quando a pessoa fala, ela se revela com o corpo e com as tripas. E é na singularidade de cada indivíduo que está meu interesse. Isso é forte pra mim.



2159


Era noite de festival de cinema, em 2159, numa cidade do interior de São Paulo.

Haviam alguns alienígenas na platéia da premiação. Eram de um planeta há pouco descoberto chamado "Capton". Eles, por sua vez, eram donos de metade do planeta terra, a outra metade era de empresários do Mac Donalds. O Mac Donalds havia instalado algumas franquias em Capton e levado alguns seres humanos para lá trabalharem, agora sob recente descoberta de cientistas do planeta "Mercaton", de que seres humanos conseguiriam trabalhar 22h por dia, com 30 minutos de descanso, 30 para comer uma cenoura por dia no almoço, e outros 60 para visitar amigos, família, se divertir, criar, trabalhar a subjetividade e dormir.

Naquela noite, um cineasta que parecia não dialogar com seu tempo, desde sua forma de vestir até como se sentava na cadeira ou respirava, ouvira seu nome pronunciado a um prêmio pela  pesquisa histórica de um filme que falava sobre o século 21.

Subira até o palco sem olhar para os lados, como se se despedisse de todos, sem querer encará-los um pouco por asco e um tanto por medo. Recebeu o prêmio com um sorriso e retirou da cintura um revólver calibre 38 e o direcionou ao céu de sua boca.

Ninguém entendera nada, já que o obsoleto objeto já não existia - a repressão agora era feita através de um pequeno aparelho do tamanho de um polegar que, simplesmente, contorcia o cérebro dos revoltosos, transformando seu descontentamento em dor, e o que era vontade de mudança, o que era desejo se torna um incômodo tão grande que logo todos se acostumaram a viver sem aquilo, que até um certo momento também chamavam de sonhos.

O cineasta então atirou contra o céu de sua boca. O sangue que corria parecia morto, mas de alguma maneira, seu corpo ainda pulsava. A platéia ainda demorava para entender o que houvera acontecido. Há muito não se via aquele liquido e nem aquela cor. E ao mesmo tempo, um sentimento de vida se confundia com a morte, já que aquele corpo pulsava motivando os outros corpos humanos a também pulsar, os únicos se mantinham ocos, parados eram os dos donos do mundo.

Alguns fotógrafos, repórteres armaram câmeras e espécies de micro computadores, mas não conseguiram clicar ou escrever qualquer coisa, já que um deles houvera se cortado na alça metálica de uma das câmeras, e viram que aquele sangue que jorrava se assemelhava com o homem no chão.

Todos olharam o corpo e, por algum motivo, deixaram seus equipamentos caírem sobre o chão. Apenas compadeceram com aquele corpo morto, e andavam, vagarosamente para fora do espaço de premiação.

Alguns deixavam cartões de crédito e dinheiro - estes ainda sobreviveram através dos tempos -  caírem sobre o chão, que consequentemente eram pisados por outros.

O alienígenas de Capton se juntaram aos outros do donos do mundo e cabisbaixos entravam na última nave para Capton, de onde desciam os trabalhadores que lá estavam.

Foi então que, pela primeira vez, entendemos o que era humanidade. 



Janis Joplin "Summertime"

domingo, 4 de dezembro de 2011

Olhai por nós, doutor!

Freud morreu, Marx morreu, e eu também não me sinto bem.

Algo me atinge semelhante às outras lembranças de grandes seres humanos que se vão:

Quando se foi, Boal parece ter levado contigo uma matéria humana digna, sincera, necessária. Dele fica um teatro que celebra a vida, engajado, combativo. E ao mesmo tempo se esvai assim como um pouco de nós. Morremos um pouco a cada lembrança.

Assim foi com tantos outros: Florestan, Rosa, Ana, Che, Milton, ....

Com todos, todos eles, um pouco de nós.

E, hoje, Sócrates, o doutor, aquele que de fato avistávamos e dizíamos: "Este existe e é filósofo, dos bons"; rompeu com o tecido que nos segura em vida, e quanto mais vive, mais fino fica. Com ele se √ão os desejos de uma democracia onde nada mais vivia. Vão também as promessas, ainda que cumpridas. Fica seu convite para uma dança. Que só aceitam aqueles capazes de se embriagar com a bola nos pés, uma cerveja gelada num buteco mais ou menos, se possível numa segunda pela tarde.

Fica um desejo de novos atrasos nas concentrações antes do jogo, não por causa de melancias e morangos, mas porque se embriagava - de novo - com a mulher que ama(va)(ou) - ainda que por uma única noite, mas amou. 

Fica o desejo, de que surjam mais ociosos, mas que no fundo "só-negam"a realidade e clamam por vida.

Doutores,

Uma coisa é certa: de vocês, mas que qualquer fetiche, fica a vontade de vida, e aquilo, que (nos)nós, extensão de vós, (nos)cabe fazer: mudar o mundo!

Seremos competentes o bastante para continuarmos nossa(vossa) jornada? 

Veremos camaradas, veremos!

ps: se por caso, estivermos errados, e de fato existir um deus e um céu, diz a ele que a brincadeira já deu o que tinha que dar.

Egberto Gismonti "Palhaço"

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Carlos Reichenbach "O M da Minha Mão"

O Fim e o Princípio

Se Marx foi a tentativa de humanizar a ciência, Coutinho é, talvez, a tentativa mais sincera de humanizar o cinema.


Segue o link para download do filme "O Fim e Princípio" de Eduardo Coutinho via torrent:

http://thepiratebay.org/torrent/5094744