O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

sábado, 31 de agosto de 2013

Conserto


Na franja dos dias esqueço o que é velho
E o que é manco.
E é como te encontrar
Corro a te encontrar.

(Ao que vai nascer - Milton Nascimento)




O que viu exatamente? Melhor seria perguntar-se sobre o valor da pergunta: de que vale perguntar-se pelo que viu? Nada! De nada vale. Até porque, no caso, ouviu e não viu:

      - Bela orquestra, hein Rotvic! Gritou, de passagem, o colega da outra turma, piano. 

Assim costumava diferenciar os colegas: fulano... ah sim! Piano! Sicrano, violino. Beltrano flauta. E ele, Rotvic, baixo - retomou o fio de suas indagações, depois da interrupção abrupta do colega piano. Partiu da conclusão anterior: sim, no fundo, não ouviu nada da orquestra. Coisas assim acontecem, e quando batem, não deixam dúvidas. O amor não (se) permite dúvidas... Certo? Não! Quer dizer... Rotvic entornava pelas calçadas, contraditoriamente.

Lembrou-se de Magda bandolim. Com ela poderia exprimir-se, revolvendo sua quase-vocação, talvez-vocação, pseudo-vocação, que, ao mesmo tempo, eram dois caminhos correndo em direções opostas. A incerteza de seu destino, o emaranhado das dúvidas, poderia ser um sinal de sua vocação, ou, pelo contrário, a vitória do medo e da insegurança - capaz, apenas, de incapacitá-lo: "O medo anda por fora, o medo anda por dentro...", cantou.

Magda aproximou-se. "Tudo bem Rotvic?". Enigmática, um quase sorriso. A cada fração de segundos mudava em outra. O olhar reconfortante virava-se em desconfiança. E revirava-se, novamente, compreensivelmente, em sua direção. Falou-se do concerto. "Eu gostei". "Eu, Magda, não senti nada...". Explicar que a Música é uma questão, explicar que a Música despertava-lhe questões. E Magda, ouvindo, enigmática e reconfortante; desconfiada e compreensiva. Ou. 

Analisava sua alma? Entrevia-lhe o talento, a aptidão, ou apenas ria-se por dentro? 

Magda, em sua alternância enigmática, talvez fosse a própria música. Via-o como tudo, ou nada. O não decifrar-se é sua decifração, sua essência. Olhava fixamente para Magda, um tanto enlouquecido, diríamos:
     
      - Ora, Rotvic! Não me olhe assim... Você parece um tanto enlouquecido.

Não se tratava de decifrar Magda, senão que, no caso, decifrá-la é saber-se decifrado por ela. É como a música. Ela deve saber-nos. Como o poema, entra em nós, e não o contrário, possessivo. Deixar-se largar-se. O enigma, sobre o significado de seus enigmas, era, pois, o enigma de Magda: amava-o, ou ria-se por dentro? Pouco importa! Talvez risse de seu temor, talvez risse de amor. Pouco importa. A chave é a manutenção da dúvida. Novamente, olhava-a, como se a escutasse com os olhos:

      - Ora, Rotvic, não me olhe assim, já falei... Você parece um tanto enlouquecido.

E ria, ria, como se não fosse nada, de dentro para fora. Não estranhava, nem temia, seu olhar barulhento. Magda sabia. A música explica-nos, e não o inverso. E por aí a explicamos, talvez. No barulho do tráfego, do sol, da indigência luciferina da tarde, Magda foi-se embora num ligeiro adeus, como se não fosse nada ir-se embora. Foi-se o bandolim, só restou o banzo, retinindo nos ouvidos de Rotvic. Ou talvez fosse o susto das buzinas.

Rotvic pensou mesmo em sua inapetência para o caos. Que, talvez, a sonora indigência da vida (como bigornas descompassadas) subtraísse, em segundos, o difícil aprendizado da harmonia. Aborto induzido, de nós mesmos. Teve medo. Tapou os ouvidos, com força, e recordou nitidamente do concerto. Magda! É preciso isolar as harmonias, preservá-las. É preciso amar Magda. É preciso odiar Melquíades. É preciso não morrer. É preciso salvar o bandolim da queda. É preciso viver com os homens. É preciso não assassiná-los. É preciso ter mãos pálidas, e anunciar o FIM DO...  Voltou-se. Procurou Magda no caminho. Magda se fora, como é natural. Um bandolim voa, vigésimo primeiro andar, espatifa-se no meio-fio. 
     
      - Caqui. Dois reais a bandeja!

Sentado no meio-fio farto de caqui, Rotvic descansava. O silêncio na cidade é uma ilha de absoluto. Pausa mágica. Do mesmo modo a imobilidade em meio a corpos tão ágeis. Sentado no meio-fio, farto, Rotvic era um contra-ponto absurdo, manifestação corpórea do silêncio - como era possível, nesse calor, sem qualquer refrigeração, estarem tão gelados - os caquis?

Cansado. Cansado Rotvic. Como não amá-lo? Ergueu-se apaziguado, o quase feliz entrou na estação. O maestro baixa os braços, os instrumentos emudecem, fulminados, o silêncio ergue-se como poeira, os pedaços do bandolim no asfalto, Magda, Magda de repente do outro lado da rua, restos - se restos há - de caquis. E o ar que pesa. Rotvic, Rotvic, Rotvic, Rotvic (é o som de uma locomotiva, reparem). Um nome sem origem. A princípio acreditou por muito tempo na origem talvez russa de seu nome. Engano seu: pense numa nota (musical), solitária, solta no ar... É cretino. Um nome sem origem é cretino. Sim, melhor seria chamar-se Cretino da Silva. Rotvic riu de si mesmo, por dentro, completamente desbaratinado. Compôs um samba.


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quarta-feira, 28 de agosto de 2013

CINECLUBE CINEMA EM REVISTA



O Coletivo Cinefusão, em parceria com a Cia Antropofágica, convida para a estreia do "Cineclube Cinema em Revista", que terá início com o "Ciclo Cinema-Greve". Na primeira sessão, exibiremos três curtas: "Greve de Março" (de Renato Tapajós), "Rapsódia para um Homem Comum" (de Camilo Cavalcante) e "Dias de Greve" (do parceiro Adirley Queirós). A sessão é gratuita e ocorre a partir das 18h01, no Espaço Pyndorama (Rua Turiassú, 481), sempre no último domingo do mês. 

A representação do trabalhador no cinema remonta à primeira exibição pública, ocorrida em 1895, na qual foi exibido “A Saída da Fábrica Lumière em Lyon”. De lá para cá, os filmes não só se converteram em entretenimento, como também abriram possibilidade para uma perspectiva crítica. Com isso, o ciclo “Cinema-Greve” que propomos pretende resgatar, em primeiro lugar, o espaço de debate característico das experiências cineclubistas, além do prazer estético e experiência coletiva de assistir a um filme. Num primeiro momento, tratar do tema greve pode parecer simplista ou até mesmo uma obviedade. No entanto, é imprescindível entender inclusive como o capitalismo assimilou e incluiu em seu vocabulário cotidiano o termo greve. Greve de fome, greve de sexo, na tentativa de desarticular um instrumento da classe trabalhadora para combater aqueles que detêm os meios de produção. 

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Sobre a solidão (Julio Cortázar)


"Edgar Allan Poe metido numa ambulância, Verlaine nas mãos de um médico qualquer, Nerval e Artaud diante dos psiquiatras. Que podia saber de poesia o médico que o sangrava e o matava de fome? Se os artistas guardam o silêncio a respeito de si mesmos, como é provável, os outros triunfam cegamente, sem qualquer má intenção, é claro, sem saber que aquele operado, aquele tuberculoso, aquele acidentado despido sobre a cama se encontra duplamente só, rodeado por seres que se movem como por trás de um vidro, num outro tempo...

Abrigando-se sob o portal de uma casa, acendeu um cigarro. A tarde caía, grupos de moças saíam das lojas, com necessidade de rir, de falar aos gritos, de se empurrarem, de se esponjarem, numa porosidade de um quarto de hora antes de voltarem ao filé e à revista semanal. Oliveira continuou andando. Sem necessidade de dramatizar, a mais modesta objetividade era uma abertura ao absurdo de Paris, da vida gregária. Já que pensara nos poetas, era fácil recordar-se de todos os que denunciaram a solidão do homem junto do homem, a irrisória comédia dos cumprimentos, o "perdão" ao se cruzar na escada, o assento que se cede às senhoras no metrô, a confraternização na política e nos esportes. Somente um otimismo biológico e sexual poderia dissimular o isolamento de alguém. Os contatos na ação e na raça e no escritório e na cama e no campo eram contatos de galhos e folhas que se entrecruzam e acariciam-se de árvore para árvore, enquanto os troncos erguem, desdenhosos e indiferentes, as suas paralelas inconciliáveis. "No fundo, poderíamos ser como na superfície", pensou Oliveira, "mas teríamos de viver de outra maneira. E o que quer dizer viver de outra maneira? Talvez viver absurdamente para acabar com o absurdo, sair de si mesmo com tal violência que o salto acabasse nos braços do outro. Sim, talvez o amor, mas o diferente, o outro, nos dura o que dura uma mulher, e além disso, somente no que toca a essa mulher. No fundo, não há o outro, apenas os iguais. É certo que isso já é alguma coisa... " Amor, cerimônia ontologizante, doadora de ser. E por isso lhe ocorria agora aquilo que, na verdade, deveria ter lhe ocorrido logo no início: se alguém não tem domínio sobre si, jamais poderia ter alcançado a singularidade. E, afinal, quem é que se dominava de verdade? Quem é que tinha a perfeita consciência de si, da solidão absoluta que significa nem sequer contar com a própria companhia, que significa ter de entrar num cinema ou num bordel, ou em casa de amigos ou numa profissão absorvente ou, ainda, no matrimônio para estar, pelo menos, só entre os demais? Assim, paradoxalmente, o cúmulo da solidão conduzia ao cúmulo do gregarismo, à grande solidão das companhias alheias, ao homem só na sala de espelhos  e dos ecos. Todavia, pessoas como ele e tantas outras, que aceitavam a si mesmas ou que se rejeitavam, mas conhecendo-se de perto, caíam sempre no pior paradoxo; estar talvez á beira da singularidade e não poder alcançá-la. A verdadeira singularidade feita de delicados contatos, de maravilhosos ajustes com o mundo, não podia ser cumprida por um só lado: a mão estendida deveria receber outra mão, vinda de fora, vinda do outro".


(Julio Cortázar -  trecho de O Jogo da Amarelinha)


quarta-feira, 21 de agosto de 2013

CURTA "O EMPREGO"




Direção: Grasso 'Bou' Santiago
Roteiro: Patricio Plaza
Animação: Santiago Grasso / Patricio Plaza
Produção: Opusbou

terça-feira, 20 de agosto de 2013

1º gesto da RECUSA: ato em frente ao hotel Jaraguá-SP

retirado do site http://passapalavra.info/

No último sábado, 17 de agosto, grupos culturais de diversas linguagens junto ao Movimento Passe Livre-SP fizeram a primeira manifestação da recém criada Rede Cultural de Solidariedade Autônoma (RECUSA) em frente ao hotel Jaraguá no centro de São Paulo, onde acontecia o II Seminário Procultura do Ministério da Cultura  (MinC) com empresários e produtores culturais.

A participação no evento oficial estava condicionada ao pagamento de R$ 250,00 para os convites comprados com antecedência e R$ 350,00 no dia do seminário. Lá a proposta era discutir o projeto de lei do Procultura (6722/2010), que institui novas regras para o fomento e o incentivo à cultura, como o abatimento fiscal de 4% para 6% para todas as empresas que financiarem projetos culturais. O projeto ainda precisa ser aprovado pela Câmara e pelo Senado.

Entretanto, do lado de fora, recusando a política do cafezinho às portas fechadas, trabalhadores da cultura, ativistas, agitadores culturais e integrantes de movimentos populares se organizavam num café de rua – “Café Batucada: também quero decidir!” – para denunciar as negociações do MinC e dialogar com a população sobre cultura como direito e não como mercadoria.

A manifestação começou às 10h da manhã do sábado e numa mistura de recusa, festa, denúncia, ironia e provocação estendeu toalhas na calçada do hotel Jaraguá e serviu um grande café da manhã coletivo, com direito a frutas, bolachas, pães, bolos, sucos e, claro, café para os passantes, que puderam ouvir o som da Fanfarra do M.A.L  (Movimento Autônomo Libertário), a rádio poste e cenas com personagens ilustres como a ministra Marta Suplicy e Carmem Miranda.

Ao meio-dia, os manifestantes ocuparam o teatro do hotel Jaraguá, onde acontecia o evento oficial. Sem conflitos, apresentaram seu gesto de recusa através das marchinhas compostas pelo grupo, batucada, jogral e até uma rádio novela, produzida especialmente para o ato, “O casamento de Governoso Minquel Pau-Mandado com Bradesca Itaulícia do Patrocínio“. Com o constrangimento causado nos convidados do Seminário, a RECUSA conseguiu deixar seu recado: disposição para experimentar novos formatos de se manifestar sem negar a necessidade de se correr riscos – da ação direta.

A rede em construção

A RECUSA se formou a partir de conversas chamadas pelo Movimento Passe Livre-SP, após a jornada de lutas pela redução da tarifa em São Paulo, com diversos coletivos e grupos culturais em torno da construção de uma rede de articulação e fortalecimento das lutas de trabalhadores, ativistas, agitadores da cultura e movimentos populares. Essa rede está aberta e em construção e terá seu próximo encontro no dia 02 de setembro, no Espaço Cultural Carlos Mariguella, em Guaianases, zona leste.

Veja abaixo o vídeo do ato de sábado.


Ato da Recusa no Novotel Jaraguá from Passa Palavra on Vimeo.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

APOIO À CAMPANHA DE ARRECADAÇÃO - COLETIVO TELA SUJA FILMES

Nosso próximo projeto é o curta-metragem COICE NO PEITO que necessita de uma força para ser realizado. Para colaborar, dê uma olhada no vídeo e contribua, doando quanto for possível até 13 de setembro de 2013. Precisamos arrecadar R$15.000,00. Se não conseguirmos atingir o mínimo possível para realizar este filme, devolveremos todas as doações.
Abaixo do vídeo, mais informações sobre COICE NO PEITO.



“Interiorizam o comportamento mas observam o homem de longe, podendo desmistificá-lo e acabar com todo romantismo.”
(Rogério Sganzerla)
         
COICE NO PEITO é o novo projeto do coletivo Tela Suja Filmes. Nesse filme buscamos pesquisar a linguagem do realismo e as relações sociais numa região do Brasil que junta elementos de nossa contemporaneidade e de nosso passado simples e rural.
Pretendemos abordar a coexistência do velho e o novo. Com o “progresso”, velhas funções como a de charreteiro ainda tentam se reinventar para sobreviver na nova sociedade capitalista avançada, se relocando à serviço do turismo pelo dinheiro de quem dele desfruta.
O filme COICE NO PEITO abordará como DITO, empreendedor charreteiro, lida com uma tragédia pessoal e extraordinária: a morte de seu filho ainda criança; e como esta tragédia revela a tragédia social ordinária a qual DITO está preso.   

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

MÃES DE MAIO E O PRÉ-RANCOR

"MUITA GENTE TEM NOS PERGUNTADO SOBRE O 'FORA DO EIXO'...

Nosso movimento não tem como foco esta polêmica (temos a busca por Amarildos, Ricardos e Justiças como prioridade todos os dias), nem vamos entrar em qualquer onda de denuncismo, de crítica ética-moral ou fulanização da história. Reduzir qualquer crítica social mais profunda, da exploração capitalista e suas lógicas renovadas de lucro, ao tema da “corrupção” é sempre mais interessante para o próprio sistema capitalista – corrupto e corruptor na sua estrutura histórica - do que para os reais interesses de nós trabalha-dores. Temos visto muito essa manobra midiática nas ruas atualmente...

Enquanto movimento social autônomo, achamos que as experiências populares não podem ser capturadas de maneira nenhuma por empresas, ONGs, mídias comerciais, políticos ou outros intermediários de nossa cultura de resistência. Ninguém fala, muito menos capitaliza, em nosso nome! Isso vale para o campo da cultura e comunicação, onde acreditamos que os coletivos de artistas e comunicadores populares devem cada vez mais empoderarem-se e serem fortalecidos diretamente – sem intermediários. Isso vale também para as iniciativas sociais que lutam diretamente contra o genocídio da população preta, pobre e periférica, que sempre foi e continuará sendo nosso foco prioritário, e cuja luta não está à venda.

Autonomia pressupõe empoderamento da própria vida e ação coletiva direta, "Nóis por Nóis", e pressupõe também a liberdade de colocar o dedo em todas as feridas críticas necessárias (a começar frente ao próprio Estado), que a sociedade tem que colocar para a sua transformação radical. Por isso nunca embarcamos nessa história-pra-boi-dormir de "pós-rancor" e de falsa conciliação “amorosa” das lutas sociais que temos no presente, afinal de contas bem pesadas, e, se Nós quisermos, vamos ter ainda mais fortes daqui pra frente.

Como falar de “pós-rancor” em meio a mais de 570.000 dos nossos encarcerados neste momento em todo país?! Como “sorrir” com outras mais de 30.000 crianças e adolescentes penando em FEBEMs por todo território, aprisionando junto suas Mães e familiares?! Como ser “amável” com cerca de 60.000 pessoas do nosso povo assassinadas, mortas ou desaparecidas, todos os recentes anos no Brasil (estamos falando de cerca de 5.000 corpos dos nossos POR MÊS, ou 166 pessoas e famílias destruídas POR DIA), entendeu?! “Pós-rancor”?! É muita treta pra Vinicius de Morais ou Amorais...

Passar um verniz ideológico de “amor” sobre essa dor real que sentimos, produto da exploração e da opressão cotidiana de todo um povo por uma elite civil-militar secular, sempre nos soou como uma manobra oportunista do interesse apenas dessa elite patrocinadora da miséria, da violência continuada, e da sua cínica tentativa de disfarce “cordial e democrático”. Nenhum fim justifica esses meios!

Somos do “movimento pré-rancor” e da "mídia capoeira", e ao invés de entrar nessa mais nova histeria sobre o Fora do Eixo e seus Ninjas, preferimos seguir a construção cotidiana e rancorosa do verdadeiro Amor revolucionário.

Se nos permitirem uma citação, o "Manifesto da Antropofagia Periférica" do Sérgio Vaz, escrito lá no já longínquo ano de 2007: "A Periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor. / Dos becos e vielas há de vir a voz que grita contra o silêncio que nos pune. (...) / Contra o capital que ignora o interior a favor do exterior. Miami pra eles? “Me ame pra nós!” / Contra os carrascos e as vítimas do sistema. / Contra os covardes e eruditos de aquário. / Contra o artista serviçal escravo da vaidade. / Contra os vampiros das verbas públicas e arte privada. / A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza. / Por uma Periferia que nos une pelo amor, pela dor e pela cor."

Nós não somos dessa guerra de memes, nem dessa "paz". Nossa História, nossa Caminhada, nossa Campanha é Otra."

Mães de Maio da Democracia Brasileira

domingo, 11 de agosto de 2013

Os medos do regime (Bertolt Brecht)

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I

Um estrangeiro, voltando de uma viagem ao Terceiro Reich
Ao ser perguntado sobre quem realmente governa lá, respondeu:
O medo.


II

Amedrontado
O erudito para no meio de uma discussão e observa
Pálido, as paredes finas de seu gabinete. O professor
Não consegue dormir, preocupado
Com uma frase ambígua que o inspetor deixou escapar.
A velha senhora na mercearia
Coloca os dedos trêmulos sobre a boca, para conter
O xingamento sobre a farinha ruim.
Amedrontado
O médico vê as marcas de estrangulamento em seu paciente, e cheios
de medo
Os pais olham os filhos como se olhassem para traidores.
Mesmo os moribundos
Amortecem a voz que sai com dificuldade, ao
Despedirem-se dos seus parentes.


III

Mas também os policiais (camisas-marrons)
Tem medo do homem que não levanta os braços
E ficam aterrorizados diante daquele
Que lhes deseja um bom dia.
As vozes agudas dos que dão ordens
Tem tanto medo quanto os guinchos
Dos porcos, a esperar a faca do açougueiro, e os mais gordos traseiros
Transpiram medo nas cadeiras do escritório.
Impelidos pelo medo
Eles irrompem nas casas e fazem buscas nos sanitários
E é o medo que os faz
Queimar bibliotecas inteiras. Assim
O temor domina não apenas os dominados, mas também
Os dominadores.


IV

Por que
Temem tanto a palavra clara?


V

Em vista do poder imenso do regime
De seus campos de concentração e câmaras de tortura
De seus bem nutridos policiais
Dos juízes intimidados ou corruptos
De seus arquivos com listas de suspeitos
Que ocupam prédios inteiros até o teto
Seria de acreditar que o poder não temeria
Uma palavra clara de um homem simples


VI

Mas esse regime lembra
A construção do assírio Tar, aquela fortaleza poderosa
Que, diz a lenda, não podia ser tomada por nenhum exército, mas que
Através de uma única palavra clara, pronunciada no interior
Desfez-se em pó.


(Bertolt Brecht)

Memes, mentiras e vídeo-tapes

texto publicado originalmente pelo Coletivo Zagaia (http://zagaiaemrevista.com.br/memes-mentiras-e-video-tapes/)

A salada é geral no tubo de imagens. Fora do Eixo com Mídia NINJA, uma combinação explosiva. Seja o novo homem, seja a avatar de Deus, não importa: nada e tudo os representa. Caminhos antigos que recebem uma nova vestimenta digital. E uma logomarca com cara despojada, sem compromisso com nada além, é claro, de editais e regalias empresariais, funcionando no calor da cultura.  De repente, todos aqueles vídeos que qualquer um poderia fazer de seus dispositivos eletrônicos, parecem ganhar uma cara: como se este modo de mostrar diretamente a truculência do Estado tivesse como eixo a face oculta  de um NINJA. 

Cultura? Lugar certo para as metamorfoses ambulantes: o que seria a publicidade dos bancos sem a Lei Rouanet? Como justificar a atrocidade sem os editais públicos que conferem às ONGs de empresas com fins lucrativos um espaço digno em que se gerencia a miséria dos outros? É a cultura o grande canal. E a difusão midiática, sua grande companheira. Pois não se pode fazer os beneméritos sem uma boa campanha de divulgação… 

Eis o sorriso de Monalisa que escancara os beiços e consola os Torturrados! O enigma em forma de arte, desafiando a todos que procuram decifrar seus mistérios. Sabemos que quando o “pobre” Capilé (CEO da empresa Fora do Eixo)  declara publicamente que a margem de lucro da “Fora do Eixo corporation” gira em torno de 3 a 5 milhões não pode estar falando sério. Não há imaginação matemática que explique este volume! 

NINJA e FdE, tudo a ver! 

E os Ninja´s? Não há nome melhor para a sigla. Afinal, todos sabem que estes eram especialistas em infiltração a serviço do governo feudal japonês. Sujeitos nada confiáveis, ao menos para os samurais, que combatiam com alguma honra em um Japão à beira da Modernidade. Em geral, ninjas seguem a onda do poder, qualquer que seja o partido. Basta o pagamento. O que vale é a prática de como se infiltrar nos jogos da cultura e da política, como travar as guerras obscuras e levar o lucro através da esquerda enquanto marca.   

Pois não há fenômeno mais pervertido do que este: uma esquerda que é marca de si mesmo, um empreendimento que não tem medo de fazer seu nome. No fundo, não é o jogo entre esquerda e direita que se trava para os NINJA. Parte dos que se declaram contra os projetos de lei nefastos sobre o corpo da mulher, há um tempo atrás integravam a campanha de Marina Silva, deusa da Natura! 

Mas o que importa mesmo:  tudo acaba tangenciado pela concorrência do capital simbólico que os Ninjas procuram obter. Na cortina de fumaça destes guerreiros sem honra, pouco se disse sobre o que seria uma cobertura militante dos fatos (isso não interessa para ninguém do jornalismo, seja industrial, seja pós-industrial). O modo como os NINJAs se relacionam com os movimentos que registram é extremamente questionável. Bruno Torturra chega a defender um olhar sem comprometimento, de imagens-denúncia dos movimentos em luta. As transmissões são longas e chatas – o próprio Torturra declarou isso. Um mídia-ativismo mesclado a jornalismo sem trabalho algum de reflexão. Afinal, como sempre: é o outro que deve trabalhar (isto é o tal “pós-industrial”). A imagem fala por si (como no antigo princípio de neutralidade do jornalismo). De modo que, se você é a favor do movimento, a imagem tem um significado; se é contra, outro. No fim das contas, nada se altera a partir do relato. Todas as partes ficam satisfeitas. E os NINJAs saem limpos vendendo sua marca: a imagem instantânea de cenas de conflito. 

Isto diz muito da posição dos NINJAs na estratégia FdE: como eles rastejam silenciosos nas sombras deste novo negócio – um capitalismo precarizado, seja no trabalho 24 horas em suas Casas FdE (com arquitetura mais próxima da pós-indústria têxtil que escraviza bolivianos e afins, do que de uma comunidade alternativa), seja na desvalorização do pagamento dos artistas que trabalham mais que Criolo doido (veja a matéria do Passapalavra). No interior disso, os NINJAs representam a base comunicativa desta nova estampa. 

Aliados ao empreendimento cultural FdE, os NINJA absorvem o impacto da comunicação. Comunicação & cultura: lugares explosivos para levar nossos imaginários em uma narrativa descomprometida. E eis o jogo de espelhos que une os dois empreendimentos. É como disse nosso pobre Capilé em recente entrevista ao Roda Viva: não se trata de uma mídia de massas, mas de uma “massa de mídias”: inversão propícia para um capitalismo em crise: no momento de sua agonia, nada melhor do que a multiplicação de suas armadilhas. Inovação que mimetiza, eis a grande oferta dos NINJAS às velhas najas da imprensa brasileira. 

Infelizmente, diante das recentes denúncias, os Ninjas lançam suas estrelas shurikens para todos os lados em defesa do seu feudo. Deprimidos ou raivosos, memetizam seus desgostos, nada falando da abertura de contas disto que se diz novo… Afinal, como sempre fizeram, vale mais captar com um celular os movimentos da grande massa, criar campanhas no facebook, do que entregar o ouro:  

Afinal, como sempre fizeram, vale mais tomar à frente das mídias das campanhas do facebook que, porventura, teriam algum público relevante (numericamente, claro): rachtags  variadas, memetizadas ao infinito pelos twiteiros escravizados (ou melhor, pagos com Cubecard!), segundo recentes denúncias, fazendo da imagem do movimento de protesto uma marca conectada ao lançamento NINJA. Vai que cola? 

Pouco importam os rachtags: Amarildos, Guarani-Kaiowás, AmoremSP, VetaDilma: impávidos, o que vale para os notáveis NINJAs é tornar tudo o mesmo caldo geral. Sorrateiros, não é que os guerreiros podem conquistar aquilo que o capitalismo há muito tenta obter: o coração e a mente da galera conectada? 

Guerrilha Simbólica X Propaganda 

Empreendimento muito diverso de movimentos mais reflexivos, que buscam a narrativa dos movimentos – como o CMI, Passapalavra, Vídeo Popular de Ação Direta – ou de redes de divulgação das lutas e campanhas como as Mães de Maio e o Cordão da Mentira, Rede 02 de Outubro. Movimentos que denunciam a  escravidão e o extermínio pós-industriais. 

No meio disso tudo, não devemos nos ater aos detalhes conhecidos das críticas da velha imprensa aos NINJA. Na hora do bote, Najas e NINJAs chegarão a um entendimento. 

Aliás, já é tempo de não sermos mais reféns de estratégias miúdas dos jogos de guerra da contrainformação. Nada mais contrário à energia criativa que tanto precisamos do que ficar entre uma ou outra bandeirola, seguindo os caminhos seguros, sem os riscos da mudança radical que as ruas demandaram. 

Entretanto, e para além disso, o problema é como sair da armadilha e criar um canal de informação que faça a esquerda se reconhecer sem medo: saber narrar nossas próprias histórias, colocar à prova uma sensibilidade diversa. Despovoar nosso imaginário da ordem privada  das logomarcas sinistras para encontrar uma nova constelação.  Fazer uma guerrilha simbólica não é abraçar o primeiro comando de divulgação de ideias. Nada mais publicitário do que isso. Guerrilha simbólica não é consumo de imagens, mas produzir o próximo passo.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

As Ruínas Circulares (Jorge Luis Borges)



And if he left off dreaming about you... 
Through the Looking-Glass, VI

    Ninguém o viu desembarcar na unânime noite, ninguém viu a canoa de bambu sumindo-se no lodo sagrado, mas em poucos dias ninguém ignorava que o homem taciturno vinha do Sul e que sua pátria era uma das infinitas aldeias que estão águas acima, no flanco violento da montanha, onde o idioma zenda não se contaminou de grego e onde é infreqüente a lepra. O certo é que o homem cinza beijou o lodo, subiu as encostas da ribeira sem afastar (provavelmente, sem sentir) as espadanas que lhe dilaceravam as carnes e se arrastou, mareado e ensangüentado, até o recinto circular que coroa um tigre ou cavalo de pedra, que teve certa vez a cor do fogo e agora a da cinza. Esse círculo é um templo que os incêndios antigos devoraram, que a selva palúdica profanou e cujo deus não recebe honra dos homens. O forasteiro estendeu-se sob o pedestal. O sol alto o despertou. Comprovou sem assombro que as feridas cicatrizaram; fechou os olhos pálidos e dormiu, não por fraqueza da carne, mas por determinação da vontade. Sabia que esse templo era o lugar que seu invencível propósito postulava; sabia que as árvores incessantes não conseguiram estrangular, rio abaixo, as ruínas de outro templo propício, também de deuses incendiados e mortos; sabia que sua imediata obrigação era o sonho. Por volta da meia-noite, despertou-o o grito inconsolável de um pássaro. Rastros de pés descalços, alguns figos e um cântaro advertiram-no de que os homens da região haviam espiado respeitosos seu sonho e solicitavam-lhe o cuidado ou temiam-lhe a mágica. Sentiu o frio do medo e na muralha dilapidada buscou um nicho sepulcral e se tapou com folhas desconhecidas.
    O objetivo que o guiava não era impossível, ainda que sobrenatural. Queria sonhar um homem: queria sonhá-lo com integridade minuciosa e impô-lo à realidade. Esse projeto mágico esgotara o inteiro espaço de sua alma; se alguém lhe perguntasse o próprio nome ou qualquer traço de sua vida anterior, não teria acertado na resposta. Convinha-lhe o templo inabitado e derruído, porque era um mínimo de mundo visível; a vizinhança dos lavradores também , porque estes se encarregam de suprir suas necessidades frugais. O arroz e as frutas de seu tributo eram pábulo suficiente para seu corpo, consagrado à única tarefa de dormir e sonhar.
    No começo, eram caóticos os sonhos; pouco depois, foram de natureza dialética. O forasteiro sonhava-se no centro de um anfiteatro circular que era de certo modo o templo incendiado: nuvens de alunos taciturnos fatigavam os degraus; os rostos dos últimos pendiam há muitos séculos de distância e a uma altura estelar, mas eram absolutamente precisos. O homem ditava-lhes lições de Anatomia, de Cosmografia, de magia: as fisionomias concentravam-se ávidas e procuravam responder com entendimento, como se adivinhassem a importância daquele exame, que redimiria em cada um a condição de vã aparência e o interpolaria no mundo real. O homem, no sonho e na vigília, considerava as respostas de seus fantasmas, não se deixava iludir pelos impostores, previa em certas perplexidades uma inteligência crescente. Buscava uma alma que merecesse participar no universo.
    Depois de nove ou dez noites, compreendeu, com alguma amargura, que não podia esperar nada daqueles alunos que passivamente aceitavam sua doutrina e sim daqueles que arriscavam, às vezes, uma contradição razoável. Os primeiros, embora dignos de amor e afeição, não podiam ascender a indivíduos; os últimos preexistiam um pouco mais. Uma tarde (agora também as tardes eram tributárias do sonho, agora velava apenas um par de horas no amanhecer) licenciou para sempre o vasto colégio ilusório e ficou com um só aluno. Era um rapaz taciturno, citrino, indócil às vezes, de feições afiladas repetindo as de seu sonhador. A brusca eliminação de seus condiscípulos não o desconcertou por muito tempo; seu progresso, no fim de poucas lições particulares, pôde maravilhar o mestre. Não obstante, sobreveio a catástrofe. O homem, um dia, emergiu do sono como de um deserto viscoso, olhou a luz vã da tarde que, à primeira vista, confundiu com a aurora e compreendeu que não sonhara. Toda essa noite e todo o dia, contra ele se abateu a intolerável lucidez da insônia. Quis explorar a selva, extenuar-se; somente alcançou entre a cicuta aragens de sonho débil, listradas fugazmente de visões do tipo rudimentar: inaproveitáveis. Quis congregar o colégio e apenas havia articular algumas breves palavras de exortação, este se deformou, se apagou. Na quase perpétua vigília, lágrimas de ira queimavam-lhe os velhos olhos.
    Compreendeu que o empenho de modelar a matéria incoerente e vertiginosa de que se compõem os sonhos é o mais árduo que pode empreender um homem, ainda que penetre todos os enigmas da ordem superior e da inferior: muito mais árduo que tecer uma corda de areia ou amoedar o vento sem efígie. Compreendeu que um fracasso inicial era inevitável. Prometeu esquecer a enorme alucinação que no começo o desviara e buscou outro método de trabalho. Antes de exercitá-lo, dedicou um mês à recuperação das forças que o delírio havia exaurido. Abandonou toda premeditação de sonhar e quase imediatamente conseguiu dormir uma razoável parte do dia. As raras vezes que sonhou, durante esse período, não reparou nos sonhos. Para reatar a tarefa, esperou que o disco da lua fosse perfeito. Logo, à tarde, purificou-se nas águas do rio, adorou os deuses planetário, pronunciou as sílabas lícitas de um nome poderoso e dormiu. Quase subitamente, sonhou com um coração que pulsava.
    Sonhou-o ativo, caloroso, secreto, do tamanho de um punho fechado, cor grená na penumbra de um corpo humano, ainda sem rosto ou sexo; com minucioso amor sonhou-o, durante quatorze lúcidas noites. Cada noite, percebia-o com maior evidência. Não o tocava: limitava-se a testemunhá-lo, observá-lo, talvez corrigi-lo com o olhar. Percebia-o, vivia-o, de muitas distâncias e ângulos. Na décima quarta noite, roçou a artéria pulmonar com o indicador e após todo o coração, por fora e por dentro. O exame o satisfez. Deliberadamente não sonhou durante uma noite: logo retomou o coração, invocou o nome de um planeta e empreendeu a visão de outro dos órgãos principais. Antes de um ano chegou ao esqueleto, às pálpebras. O pêlo inumerável foi talvez a mais difícil tarefa. Sonhou um homem inteiro, um moço, mas este não se incorporava nem falava, nem podia abrir os olhos. Noite após noite, o homem sonhava-o adormecido.
    Nas cosmogonias gnósticas, os demiurgos amassam um vermelho Adão que não consegue pôr-se de pé; tão inábil e tosco e elementar como esse Adão de pó era o Adão de sonho que as noites do mago tinham fabricado. Uma tarde, o homem quase destruiu toda a sua obra, mas se arrependeu. (Mais lhe teria valido destruí-la.) Esgotados os votos aos numes da terra e do rio, arrojou-se aos pés da efígie que talvez fosse um tigre e talvez um potro, e implorou seu desconhecido socorro. Nesse crepúsculo, sonhou com a estátua. Sonhou-a viva, trêmula: não era um atroz bastardo de tigre e potro, mas simultaneamente essas duas criaturas veementes e também um touro, uma rosa, uma tempestade. Esse múltiplo deus revelou-lhe que seu nome terrenal era Fogo, que nesse templo circular (e noutros iguais) prestavam-lhe sacrifícios e culto e que magicamente animaria o fantasma sonhado, de tal sorte que todas as criaturas, exceto o próprio Fogo e o sonhador, julgassem-no um homem de carne e osso. Ordenou-lhe que uma vez instruído nos ritos, remetesse-o ao outro templo derruído, cujas pirâmides persistem águas abaixo, para que alguma voz o glorificasse naquele edifício deserto. No sonho do homem que sonhava, o sonhado despertou.
    O mago executou essas ordens. Consagrou um prazo (que finalmente abrangeu dois anos) para desvendar-lhe os arcanos do universo e do culto do fogo. Intimamente, doía-lhe separar-se dele. Com o pretexto da necessidade pedagógica, dilatava diariamente as horas dedicadas ao sonho. Também refez o ombro direito, talvez deficiente. Às vezes, inquietava-o uma impressão de que tudo isso havia acontecido... Em geral, eram-lhe felizes os dias; ao fechar os olhos pensava: Agora estarei com meu filho. Ou, mais raramente: O filho que gerei me espera e não existirá se eu não for.
    Gradualmente, habituou-o à realidade. Uma vez determinou-lhe que embandeirasse um cume longínquo. No outro dia, flamejava a bandeira no cimo. Esboçou outras experiências análogas, cada vez mais audazes. Compreendeu com certo desgosto que seu filho estava pronto para nascer – e talvez impaciente. Nessa noite beijou-o pela primeira vez e enviou-o ao outro templo cujos despojos branqueiam rio abaixo, a muitas léguas de inextricável selva e pântano. Antes (para que nunca soubesse que era um fantasma, para que se acreditasse um homem como os outros) infundiu-lhe o esquecimento total de seus anos de aprendiz.
    Sua vitória e sua paz ficaram embaciadas de fastio. Nos crepúsculos do entardecer e da alba, prostrava-se diante da figura de pedra, talvez imaginando que seu filho irreal praticasse idênticos ritos, noutras ruínas circulares, águas abaixo; de noite, não sonhava, ou sonhava como fazem todos os homens. Percebia com certa palidez os sons e formas do universo: o filho ausente se nutria dessas diminuições de alma. O propósito de sua vida fora atingido; o homem persistiu numa espécie de êxtase. No fim de um tempo que certos narradores de sua história preferem computar em anos e outros em lustros, dois remadores o despertaram, à meia-noite: não pôde ver seus rostos, mas lhe falaram de um homem mágico, num templo do Norte, capaz de tocar o fogo e não queimar-se. O mago recordou que de todas as criaturas que constituem o orbe, o fogo era o único que sabia ser seu filho um fantasma. Essa lembrança, apaziguadora no princípio, acabou por atormentá-lo. Temeu que seu filho meditasse nesse privilégio anormal e descobrisse de alguma maneira sua condição de mero simulacro. Não ser um homem, ser a projeção do sonho de outro homem, que humilhação incomparável, que vertigem! A todo pai interessam os filhos que procriou (que permitiu) numa simples confusão ou felicidade; é natural que o mago temesse pelo futuro daquele filho, pensado entranha por entranha e traço por traço, em mil e uma noites secretas.
    O final de suas cavilações foi brusco, mas o anunciaram alguns sinais. Primeiro (no término de uma longa seca) uma remota nuvem numa colina, leve como um pássaro; logo, para o Sul, o céu que tinha a cor rosa da gengiva dos leopardos; depois as fumaradas que enferrujam o metal das noites; depois a fuga pânica das bestas. Porque se repetiu o acontecido faz muitos séculos. As ruínas do santuário do deus do fogo foram destruídas pelo fogo. Numa alvorada sem pássaros, o mago viu cingir-se contra os muros o incêndio concêntrico. Por um instante, pensou refugiar-se nas águas, mas em seguida compreendeu que a morte vinha coroar sua velhice e absolvê-lo dos trabalhos. Caminhou contra as línguas de fogo. Estas não morderam sua carne, estas o acariciaram e o inundaram sem calor e sem combustão. Com alívio, com humilhação, com terror, compreendeu que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Centro do Meio



Independentemente de suas prováveis fraquezas, dedico esse pequeno texto à força vital do diálogo. Aos poucos, e raros momentos em que a luz da compreensão e do respeito conseguem ultrapassar a miséria da guerra cotidiana pela sobrevivência. Devemos à camaradagem o resgate diário de nossas energias vitais.

Também dedico esse texto aos habitantes de "Centro do Meio", Maranhão.



Num dos momentos altos de Quarup (Antonio Callado) uma espécie de comitiva sai em busca do centro geográfico do Brasil, no Xingu. Simultaneamente, na capital do país, João Goulart é deposto pelos militares. Para além da simples coincidência (estamos falando de um romance, afinal de contas), notemos como os grandes acontecimentos históricos por vezes encontram explicação fora de sua órbita imediata. 

Assim, o conhecimento dos personagens de Quarup, de suas motivações íntimas - que, supostamente, explicam o desejo de conhecer o centro geográfico do país em plena derrocada de seu centro político -, ensina muitas coisas a respeito do momento histórico em que se vivia. 

Podemos recordar ainda a posição geográfica e temporal de Macondo (Cien Años de Soledad). O não-lugar que - de tão absoluto em sua inexistência - pode ser todos os lugares. Posição dos invisíveis, aquém dos centros de decisão onde o futuro, no entanto, repentinamente ganha corpo. Macondo, em relação à "vida real", encontra-se numa distância que jamais será percorrida. Este o segredo, talvez, da sua verossimilhança.

Seja como for, é notável a vigência temática da relação centro/periferia na literatura latino-americana. Como lembra Antonio Cândido: "As áreas de subdesenvolvimento e os problemas de subdesenvolvimento (ou atraso) invadem o campo da consciência e da sensibilidade do escritor, propondo sugestões, erigindo-se em assunto que é impossível evitar, tornando-se estímulos positivos ou negativos da criação" ("Literatura e subdesenvolvimento"). 

Que se leia, a título de exemplo, o emblemático conto de Borges, "As Ruínas Circulares", ou de seu conterrâneo Cortázar, "A auto-estrada do sul". Exemplos não faltam. À parte a diversidade das soluções formais em cada país, o fato é a permanência instigante (e instrutiva) do problema, que as transformações econômicas e políticas das últimas décadas - a chamada globalização - pretensamente colocam em suspensão, enquanto motor da criação artística. 

Desse modo, em vários contextos, a superação do atraso parece derivar unicamente da "universalização" do acesso à informação, por exemplo. No entanto, a oposição compartilha, com muita frequência, o pressuposto do inimigo, aceitando os termos da discussão: estaria em jogo uma definição mais precisa do verdadeiro poder dos meios de comunicação. Questão real, sem dúvida, mas antecedida por outra. Na verdade, trata-se, mais uma vez e sempre, do próprio conceito de "atraso". Com muita facilidade renegamos o esforço dos mais velhos. 

Talvez devamos, além disso, identificar a defesa positiva da globalização como construto ideológico puro. Ou, de outro modo: olhar a realidade, para ver até que ponto ela desmente a atualidade (formal e política) do problema. O reconhecimento da complexidade da questão, no plano literário (que apresenta saldo objetivo, isto é, formal) atingiu níveis altos, contrastando com as respostas no plano político. No Brasil, por exemplo, a esquerda ainda não extraiu devidamente o saldo político da ditadura.

Qual o balanço da experiência política dos trabalhadores com o regime militar? Há muita especulação em jogo. Ignora-se, sem mais, não a experiência com a miséria, mas a experiência dos próprios miseráveis. E o erro repete-se: atualmente, há uma séria dificuldade em mensurar o alcance dos estragos, e extrair as perspectivas resultantes, da dominação petista.

Evidentemente, a tarefa não é fácil: os desdobramentos históricos do atual esgotamento político não se encontram ao alcance do braço. Porém, a letargia em levantar os braços rumo ao futuro, à ideia de uma nova vida, enfim, paralisa o ímpeto. A esquerda carece de um objeto digno de desejo. 

A dificuldade em escorregar para o ponto de vista dos derrotados, dos invisíveis, beira o desespero. Como diria Mário de Andrade: "Há sempre um jeito de escorregar num ângulo de visão, numa escolha de valores, num embaraço duma lágrima que avolumem ainda mais o insuportável das condições atuais do mundo". 

De outro lado, é possível encontrar o sonho desse deslocamento depositado na experiência literária. Que deve servir de contraste, ou, pelo menos, de meio eficaz para manter intacta as figuras elementares de um velho sonho, constitutivo da dignidade necessária, e desejável, do amanhã. 

Para terminar, fiquemos com um exemplo das últimas semanas, que ilustra a tese inicial: o atual momento histórico, por vezes, encontra explicação fora do alcance de nossas vistas.

No Maranhão, há um povoado chamado "Centro do Meio" (já o nome, na sua quase-redundância, é significativo, ainda mais se pensarmos que, até ontem, praticamente não existia... ), que situa-se no município de Pio XII, em homenagem ao papa eleito 1939. 

Pois bem. No último dia 30/07, domingo, houve um jogo de futebol no povoado "Centro do Meio". O árbitro da partida, rapaz de 20 anos, expulsou um jogador de um dos times. Inconformado, este resolveu acertar contas com o árbitro, que, por sua vez, esfaqueou o rapaz.

Com isso, a família da "vítima" e amigos resolveram apedrejar e lixar o árbitro, e depois o amarraram a uma árvore. 

Aguardaram, até que chegou a notícia: o rapaz esfaqueado pelo árbitro morreu no hospital! O final da vingança encerra o caso, e traz inesperadamente Centro do Meio para o centro dos noticiários. Ocorre que, depois de saberem da morte do rapaz, no hospital, familiares e amigos resolveram esquartejar o árbitro. 

Braços e pernas decepados. Cabeça, idem: pendurada na ponta de uma cerca. 

Já circula fotos na internet, para aqueles que, acostumados ao "espetáculo da vida", necessitem de "mais vivas impressões". Ao que dizem, a brutalidade do ocorrido chocou os moradores de povoados vizinhos, a ponto de cortarem relações com os habitantes de Centro do Meio. Como se, de fato, estivessem enfeitiçados por algum espírito maligno. Eterna noite dos esquecidos.

Já os moradores de Centro do Meio, crianças e velhos, reclamam a mudança no trato: além da brutalidade ocorrida, tem de suportar a exclusão dos vizinhos...  

O evento que marcou o povoado de Centro do Meio, em Pio XII, ocorreu na mesma semana em que o papa Francisco visitava o Brasil. Segundo dizem, Pio XII é conhecido pela sua fria indiferença em relação ao Holocausto. Mera coincidência, enfim.