O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

sábado, 31 de agosto de 2013

Conserto


Na franja dos dias esqueço o que é velho
E o que é manco.
E é como te encontrar
Corro a te encontrar.

(Ao que vai nascer - Milton Nascimento)




O que viu exatamente? Melhor seria perguntar-se sobre o valor da pergunta: de que vale perguntar-se pelo que viu? Nada! De nada vale. Até porque, no caso, ouviu e não viu:

      - Bela orquestra, hein Rotvic! Gritou, de passagem, o colega da outra turma, piano. 

Assim costumava diferenciar os colegas: fulano... ah sim! Piano! Sicrano, violino. Beltrano flauta. E ele, Rotvic, baixo - retomou o fio de suas indagações, depois da interrupção abrupta do colega piano. Partiu da conclusão anterior: sim, no fundo, não ouviu nada da orquestra. Coisas assim acontecem, e quando batem, não deixam dúvidas. O amor não (se) permite dúvidas... Certo? Não! Quer dizer... Rotvic entornava pelas calçadas, contraditoriamente.

Lembrou-se de Magda bandolim. Com ela poderia exprimir-se, revolvendo sua quase-vocação, talvez-vocação, pseudo-vocação, que, ao mesmo tempo, eram dois caminhos correndo em direções opostas. A incerteza de seu destino, o emaranhado das dúvidas, poderia ser um sinal de sua vocação, ou, pelo contrário, a vitória do medo e da insegurança - capaz, apenas, de incapacitá-lo: "O medo anda por fora, o medo anda por dentro...", cantou.

Magda aproximou-se. "Tudo bem Rotvic?". Enigmática, um quase sorriso. A cada fração de segundos mudava em outra. O olhar reconfortante virava-se em desconfiança. E revirava-se, novamente, compreensivelmente, em sua direção. Falou-se do concerto. "Eu gostei". "Eu, Magda, não senti nada...". Explicar que a Música é uma questão, explicar que a Música despertava-lhe questões. E Magda, ouvindo, enigmática e reconfortante; desconfiada e compreensiva. Ou. 

Analisava sua alma? Entrevia-lhe o talento, a aptidão, ou apenas ria-se por dentro? 

Magda, em sua alternância enigmática, talvez fosse a própria música. Via-o como tudo, ou nada. O não decifrar-se é sua decifração, sua essência. Olhava fixamente para Magda, um tanto enlouquecido, diríamos:
     
      - Ora, Rotvic! Não me olhe assim... Você parece um tanto enlouquecido.

Não se tratava de decifrar Magda, senão que, no caso, decifrá-la é saber-se decifrado por ela. É como a música. Ela deve saber-nos. Como o poema, entra em nós, e não o contrário, possessivo. Deixar-se largar-se. O enigma, sobre o significado de seus enigmas, era, pois, o enigma de Magda: amava-o, ou ria-se por dentro? Pouco importa! Talvez risse de seu temor, talvez risse de amor. Pouco importa. A chave é a manutenção da dúvida. Novamente, olhava-a, como se a escutasse com os olhos:

      - Ora, Rotvic, não me olhe assim, já falei... Você parece um tanto enlouquecido.

E ria, ria, como se não fosse nada, de dentro para fora. Não estranhava, nem temia, seu olhar barulhento. Magda sabia. A música explica-nos, e não o inverso. E por aí a explicamos, talvez. No barulho do tráfego, do sol, da indigência luciferina da tarde, Magda foi-se embora num ligeiro adeus, como se não fosse nada ir-se embora. Foi-se o bandolim, só restou o banzo, retinindo nos ouvidos de Rotvic. Ou talvez fosse o susto das buzinas.

Rotvic pensou mesmo em sua inapetência para o caos. Que, talvez, a sonora indigência da vida (como bigornas descompassadas) subtraísse, em segundos, o difícil aprendizado da harmonia. Aborto induzido, de nós mesmos. Teve medo. Tapou os ouvidos, com força, e recordou nitidamente do concerto. Magda! É preciso isolar as harmonias, preservá-las. É preciso amar Magda. É preciso odiar Melquíades. É preciso não morrer. É preciso salvar o bandolim da queda. É preciso viver com os homens. É preciso não assassiná-los. É preciso ter mãos pálidas, e anunciar o FIM DO...  Voltou-se. Procurou Magda no caminho. Magda se fora, como é natural. Um bandolim voa, vigésimo primeiro andar, espatifa-se no meio-fio. 
     
      - Caqui. Dois reais a bandeja!

Sentado no meio-fio farto de caqui, Rotvic descansava. O silêncio na cidade é uma ilha de absoluto. Pausa mágica. Do mesmo modo a imobilidade em meio a corpos tão ágeis. Sentado no meio-fio, farto, Rotvic era um contra-ponto absurdo, manifestação corpórea do silêncio - como era possível, nesse calor, sem qualquer refrigeração, estarem tão gelados - os caquis?

Cansado. Cansado Rotvic. Como não amá-lo? Ergueu-se apaziguado, o quase feliz entrou na estação. O maestro baixa os braços, os instrumentos emudecem, fulminados, o silêncio ergue-se como poeira, os pedaços do bandolim no asfalto, Magda, Magda de repente do outro lado da rua, restos - se restos há - de caquis. E o ar que pesa. Rotvic, Rotvic, Rotvic, Rotvic (é o som de uma locomotiva, reparem). Um nome sem origem. A princípio acreditou por muito tempo na origem talvez russa de seu nome. Engano seu: pense numa nota (musical), solitária, solta no ar... É cretino. Um nome sem origem é cretino. Sim, melhor seria chamar-se Cretino da Silva. Rotvic riu de si mesmo, por dentro, completamente desbaratinado. Compôs um samba.


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