O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

domingo, 30 de outubro de 2011

BRECHT NO CATIVEIRO DAS FORÇAS PRODUTIVAS


Por Iná Camargo Costa

As fúrias do interesse privado são as paixões mais violentas, mesquinhas e odiosas do coração humano.
Marx, O Capital

O capitalismo não morrerá de morte natural: ele precisa ser morto. Para isso é preciso que a luta de classes apareça como uma categoria natural. Então a humanidade será o objetivo da luta de classes.
Brecht, Processo de três vinténs

Crise estética e teórica

Para explicar que o cinema deveria ser objeto de estudos comparados com o teatro, Eisenstein argumenta que só é possível dominar a metodologia específica do cinema através da comparação crítica com formas primitivas mais básicas do espetáculo. Neste texto de 1932, o agora professor está pensando nas conhecidas objeções que, como outros veteranos do cinema mudo, fazia aos adeptos do teatro enlatado no qual patinavam os filmes sonoros, pois ainda estavam longe do horizonte os desenvolvimentos técnicos que libertariam câmeras e atores da prisão imposta pelos executivos dos estúdios submetidos à precariedade técnica dos primeiros microfones.

Mas não era só para explicar que teatro não é cinema ou que bom cinema não é meramente teatro filmado que Eisenstein fazia estudos comparados de teatro, cinema e também de literatura. Ele queria que seus alunos entendessem o cinema como o último rebento da família multissecular do show business, pois achava que sem entender como se deu a industrialização das artes do espetáculo (a maneira conservadora de referir o processo de submissão destas forças produtivas às determinações do capital), nenhuma discussão sobre cinema tem fôlego. Afinal, ele definira cinema como "muitas sociedades anônimas, muito giro de capital, muitas estrelas, muitos dramas" .

As experiências alemãs de Brecht com estes novos meios de produção também apontam para a mesma necessidade e seus relatos avançam reflexões obrigatórias para interessados nas relações entre teatro e cinema. O Processo de três vinténs dá conta do confronto com a empresa que filmou sua Ópera de três vinténs (direção de Pabst) e os escritos sobre Kuhle Wampe dão conta de uma tentativa, ainda hoje atual, de fazer cinema independente que acabou, por isso mesmo, tropeçando nos obstáculos da distribuição e da censura. Nos dois casos, Brecht entendeu que participara de dois reveladores experimentos sociológicos e por isso registrou suas reflexões a respeito pois, ao que tudo indica, percebeu que topara com uma espécie de limite da comédia ideológica do século XX .


Uma demanda barata

Restringindo um processo que consumiu cerca de trinta anos aos fatos que o delimitam – da descoberta do cinema como um ramo lucrativo do show business em 1895 até o seu controle monopolístico pelo capital financeiro em 1926-1929 –, pode-se dizer que, quando venderam os direitos autorais da Ópera de três vinténs ao estúdio que produziu o filme, Brecht e Weill caíram na rede do filme musical enlatado, a última palavra em matéria de novidade cinematográfica, inaugurada oficialmente em 1927, testes de mercado à parte, com o filme da Warner Brothers, O cantor de jazz. Quando da assinatura do contrato com a Nero Filmes, em 21 de maio de 1930, talvez nossos artistas não soubessem ainda que a corrida pelo controle do mercado cinematográfico mundial estava prestes a se decidir por uma espécie de empate técnico: o mundo ficou dividido nesse mesmo ano, em acordo firmado em Paris, entre americanos e alemães que detinham o monopólio das patentes padronizadas dos equipamentos necessários à filmagem e exibição de filmes sonoros. Parte do mercado europeu ficou com os alemães, menos a União Soviética, que ficou para os americanos, assim como os Estados Unidos . E o padrão americano de produtividade estabeleceu que filmar peças musicais de sucesso era sinônimo de lucros seguros. Também fazia parte da receita americana, após os experimentos franceses, produzir filmes que correspondessem tão fielmente quanto possível ao espetáculo teatral, mesmo com alguma "perda de qualidade", compreensível e aceitável em se tratando de "produto cultural industrializado" (é só ver o caráter abertamente apologético das campanhas de publicidade da época).

A idéia de fazer teatro enlatado para concorrer diretamente com o produto mais prestigiado do show business foi lançada na França por americanos radicados em Paris (os irmãos Lafitte), enredados até o pescoço com a indústria cultural (jornal e editoras) . No ano de 1908 eles realizaram a dupla proeza de lançar um filme com o elenco da Comédia Francesa e, com ele, o gênero "filme de arte" que desde então é marca comercial. Do ponto de vista mercadológico, a operação significou conquistar para este produto a "classe A", ou o segmento mais abonado dos consumidores que até então o desprezavam como "coisa de pobre", além de trazer para o trabalho nas fábricas a mais alta categoria de trabalhadores da hierarquia teatral, como Sarah Bernhardt. A partir deste ano, os fabricantes de filmes americanos começaram a assediar os elencos teatrais dos principais centros produtores (Nova York, Chicago e depois Los Angeles, uma das razões da migração do cinema para Hollywood), numa longa campanha que só terminou com a vitória da indústria depois da introdução do cinema sonoro. Mas os americanos nunca perderam tempo com essa história de "filme de arte": seu jogo sempre foi explicitamente assumido como um problema de mercado.

Para um profissional do teatro alemão como Brecht, o caráter reacionário desta segmentação mercadológica era muito claro: ao mesmo tempo em que rifara o público popular inicial dos curta-metragem mudos, o teatro enlatado de longa metragem, ainda mudo (a definição negociada do padrão para cerca de uma hora e meia de duração data dos últimos anos da década de 1910), conquistara o público de classe média requentando os "clássicos" do drama burguês do século XIX e submetendo o amplo repertório técnico já desenvolvido pelos cineastas pioneiros à camisa de força das exigências e convenções atualizadas daquele drama que, nas práticas teatrais da República de Weimar, estavam devidamente enterradas, como a própria Ópera de três vinténs testemunha. A introdução do filme sonoro apenas completou a operação estético-ideológica (para não dizer nada do golpe econômico), radicalizando o problema já instalado nas pantomimas dramáticas.

Esta convicção está por trás de pelo menos um aspecto do mal entendido presente nos termos do contrato assinado por Brecht com a Nero Filmes que pode ser assim resumido: a companhia cinematográfica estava interessada em somente enlatar a peça, que fora um dos maiores sucessos de bilheteria do teatro alemão nos anos de 1928 e 1929 enquanto Brecht, que sabia o que fizera no teatro mas ainda não conhecia o terreno onde estava pisando, acreditou no que diziam as cláusulas relativas a seu direito de adaptação do texto porque achou que a empresa estivesse interessada em fazer do filme um experimento equivalente ao realizado no palco. Ele confessa abertamente esta ingenuidade, que demorou um pouco para entender.

Para Brecht, tal experimento começava pela adaptação do texto por ele mesmo, o autor. Não que acreditasse, como rezava o contrato, em propriedade das idéias, mas por acreditar em fidelidade a seu material. Como explicou, se o filme, com as técnicas de que dispunha, não desenvolvesse os materiais que na peça ficaram apenas pressupostos, o resultado, por mais que se aproximasse do ocorrido no palco, ficaria aquém do seu potencial e assim configuraria (como ele acha que aconteceu) um retrocesso artístico. Simplificando bastante a história, digamos que a certa altura ele estava alegremente redigindo o seu roteiro quando soube que as filmagens já tinham começado. Dirigiu-se ao local do crime e nem ao menos lhe permitiram ver o que estava acontecendo: foi impedido de entrar no estúdio. Abriu um processo contra a empresa e descobriu que, ao contrário do que pensava, na opinião do tribunal ele descumprira várias cláusulas. Para começar, dificultara o trabalho da empresa desde o início, insistindo, por exemplo, em permanecer no sul da França, onde se encontrava, ao invés de seguir para Berlim, onde ficava a empresa, para tratar das negociações; um recalcitrante, enfim. Mais grave que isso: mesmo sabendo que a empresa já alugara os estúdios e contratara o elenco, não apresentara a primeira sinopse dentro do prazo estipulado. Por essas e muitas outras, o tribunal concluiu que a empresa exercia o seu direito ao fazer o que fez: contratar outros escritores e fazer o que bem entendesse com o texto "original" (desde que mantivesse a idéia básica) . Por estes motivos, a primeira sentença foi contra ele. Recorrendo dela, acabou chegando a um acordo pelo qual foi modestamente indenizado.

Não é possível reconstituir agora todas as lições que Brecht aprendeu no processo como um todo, mas vale a pena reproduzir algumas observações cujas consequências continuam presentes como um desafio para quem ainda se interessa por teatro. A mais importante: o Processo de três vinténs demonstra até que ponto avançou a transformação de valores intelectuais em mercadoria . O próprio sistema legal faz parte disso, pois a Justiça espera atrás de portas que só se abrem para quem tem dinheiro.

O objetivo do processo, já que o artista não tinha dinheiro para abrir as portas da justiça, passou a ser o de desenvolver na prática uma crítica de maior alcance às idéias liberais sobre arte no capitalismo. Através dele foi possível demonstrar que a justiça do Estado burguês não hesita em violar suas próprias leis quando está em jogo a proteção dos interesses financeiros do capital. Todos sabem que a lei assegura a inviolabilidade da propriedade intelectual. Mas a validade dessa propriedade é restringida por suas consequências econômicas. Quando se trata de cinema, o risco é tão grande que a expectativa de lucro na produção da mercadoria pesa mais que o direito do escritor à sua propriedade imaterial (às suas idéias) .

O cinema só se interessa pela arte se tiver garantias de que terá condição de a violar. E não adianta dizer que a arte não precisa do cinema pois, sem ele, quem se dedica às artes do espetáculo está privado dos meios de produção ao mesmo tempo em que se vê forçado a falar por meio de aparatos cada vez mais complexos, sem os quais nos expressamos através de meios cada vez menos adequados. Independente do gosto geral, as velhas formas (inclusive as impressas) são afetadas pelos novos meios e não sobreviverão imunes a eles. O avanço tecnológico sobre a produção literária é irreversível .

No caso do teatro, é ainda mais evidente o impacto do cinema e é preciso tirar dele as consequências avançadas. O tratamento que o cinema dá ao ator, por exemplo, é muito instrutivo. Como neste meio a personagem é vista de fora, o ator de cinema só interessa segundo a sua função. Qualquer motivação interior é excluída; a vida interior do personagem nunca fornece a causa principal da ação e raramente seu principal resultado. Isto no cinema mudo. Já o cinema sonoro, que depende do grande estúdio, além de jogar esta forma de arte nas convenções (vida interior, etc., tudo através do diálogo dramático) que o meio tornou ultrapassadas, é ao mesmo tempo o processo em que os produtores (autores, atores, técnicos) são expropriados dos seus meios de produção; sinaliza, portanto, a proletarização dos produtores. Uma vez transformados em proletários, os trabalhadores do teatro e do cinema, se quiserem fazer arte e não mercadoria, encontrarão na peça didática um método decisivo para alcançar seu objetivo. Mas isto depende de compreenderem que a peça didática põe na ordem do dia a transferência dos meios de produção aos verdadeiros produtores, tema que Walter Benjamin desenvolverá em seguida e ao qual retornaremos.

Como o trabalhador manual, o trabalhador intelectual (categoria em que estão os artistas) só tem a sua força de trabalho a oferecer no mercado. Ele é a sua força de trabalho e nada mais que isso. Assim como o trabalhador manual, ele precisa cada vez mais que os meios de produção explorem a sua força de trabalho, porque a produção intelectual vai ficando cada vez mais "técnica" . Aliás, intelectuais e artistas, mesmo sob condições de trabalho ignominiosas, se consideram livres das determinações às quais se submetem os trabalhadores manuais porque entendem por liberdade a livre concorrência e a liberdade a que aspiram é a livre concorrência na venda das suas opiniões, conhecimentos e habilidades técnicas . Eles nem ao menos admitem ser chamados de trabalhadores intelectuais, pois se vêem como empreendedores, ou como pequenos burgueses. Dentre estes há ainda os que acreditam na liberdade de renunciar aos novos instrumentos de trabalho, mas esta é uma liberdade que se exerce fora do processo produtivo, pois não existem mais ciência nem arte livres da influência da moderna indústria: ciência e arte serão mercadorias como um todo ou não existirão.

Nas mãos dos produtores executivos (impostos às companhias cinematográficas pelo capital financeiro para proteger seus investimentos), gerenciadores que só precisam entender de cálculos e de administração de pessoal, e manipulados por diretores que, no domínio da arte e da tecnologia, têm o raciocínio de uma ostra (para produzir o já conhecido – a mercadoria), as possibilidades que os novos meios de produção disponibilizam simplesmente não podem ser exploradas. Isto porque produtores e diretores se puseram a fazer "arte" no sentido definido pelos irmãos Lafitte. Se os executivos do cinema não estivessem a serviço do capital, mas genuinamente interessados (como alguns pioneiros) no desenvolvimento das forças produtivas da própria indústria que administram, bastaria que manejassem como cientistas os "seus" meios de produção. Nesta hipótese, eles entenderiam que câmeras, trilhos, microfones, luzes, etc. servem para documentar o comportamento visível, mostrar acontecimentos simultâneos, interações humanas dos mais variados tipos. E como o simples documentar por si só não revela a reificação das relações humanas, é ainda preciso analisar as suas manifestações e, a partir dos documentos produzidos e analisados, construir as imagens, inventar, criar algo que necessariamente vai aparecer como artificial à luz das convenções (dramáticas) que pautam a produção e a crítica cinematográfica. Enfim, é preciso criar uma nova idéia de arte para efetivamente desenvolver a força produtiva da indústria cinematográfica, que se encontra aprisionada.

A libertação da força produtiva do cinema depende da apropriação dos meios de produção pelos verdadeiros produtores, que são os artistas e os técnicos (todas aquelas especialidades que aparecem nos créditos finais dos filmes). O mesmo vale para os demais meios de produção intelectual, pois todos estão presos nas garras do capital. Não é demais insistir: o modelo é a peça didática que não tem sentido se os meios de produção não estiverem sob o controle dos envolvidos. Meios de produção, no caso do cinema, desde os anos 20 significam também meios de distribuição e exibição, como demonstram os seguidos desastres da produção independente.


Fetichismo da tecnologia

A experiência do filme Kuhle Wampe mostrou a Brecht e demais produtores independentes que o papel determinante dos interesses do capital tem maior alcance do que normalmente supõem os artistas. Distribuidores, por exemplo, controlam o conteúdo dos filmes num grau que é subestimado até mesmo nos círculos profissionais. Não querem problemas de censura e muito menos de bilheteria . Por isso determinam cortes de cenas ou sequências em filmes prontos sem a menor cerimônia. No entanto, observa Brecht, os críticos profissionais, aos quais chama metafísicos da cultura, só denunciam o papel nefasto dos distribuidores que "identificam demandas" porque acreditam que estes usurparam uma função que seria sua – a de escolher a coisa certa para o consumidor. Estes naturalmente se esquecem de que, em aliança com os distribuidores, trabalham as empresas de propaganda, onde estão os "físicos" do gosto do público. Por certo nem físicos nem metafísicos entendem o que seja este gosto do público mas, como a própria hierarquia do cinema demonstra, não é o conhecimento de alguma coisa que torna alguém capaz de a explorar e, como sabem os leitores de Simmel, está cientificamente demonstrado que, em questão de mercado cultural, a "média" sempre está muito próxima do nível mais baixo. Os metafísicos da cultura jamais se rebaixariam a estudar, por exemplo, o valor social do sentimentalismo que tanto os desgosta e, mesmo se o quisessem, não dispõem do conhecimento e da metodologia necessários a tal tipo de pesquisa. Pelas mesmas razões, jamais compreenderão que um certo tipo de humor, e sua grosseria especial, não apenas é produto de condições materiais, mas ainda é um meio de produção.

A luta dos intelectuais progressistas contra a mercantilização da arte, da ciência e da cultura é baseada na premissa de que as massas e os intelectuais que se vendem não sabem quais são os seus interesses. Mas as massas têm menos interesses estéticos que interesses políticos e por isso a sugestão de Schiller, de fazer da questão estética (científica, cultural) uma questão política, nunca foi tão necessária como hoje. É preciso entender que o mau gosto das massas está mais profundamente enraizado na realidade que o bom gosto dos intelectuais, pois o gosto do público é expressão de interesses sociais e não mudará por meio de melhores filmes, mas pela mudança das circunstâncias que determinam o nível desses filmes.

Por outro lado, os que acreditam que o fato de ser mercadoria não afeta um filme não têm idéia do poder modificador da mercadoria. Só os que fecham os olhos para o enorme poder revolucionário que tudo arrasta para a circulação de mercadorias, sem deixar nada de fora, podem supor que obras de arte, de qualquer gênero, ficariam excluídas. Há muito tempo o próprio processo de comunicação nada mais é que ligar tudo e todos na forma de mercadorias.

A chamada crítica cinematográfica inventou uma fórmula funcional para colocar o pior tipo de lixo no mercado. Ela reza que um filme pode ser regressivo no conteúdo e progressista na forma. Pois bem: a referência à qualidade independente do significado é regressiva . Marx já disse que a forma só é boa quando é a forma do conteúdo. Em seu fetichismo tecnológico, a propaganda do cinema (o verdadeiro nome do que passa por crítica) confunde a habilidade de mostrar as coisas de maneira apetitosa com desenvolvimento tecnológico. Há uma dialética do desenvolvimento tecnológico – com perdas e danos incalculáveis – que passa despercebida porque ninguém se pergunta se é verdade que os filmes precisam continuar fazendo a mesma coisa que o romance e o teatro faziam no século XIX. A síntese desta relação com a tecnologia é a idéia de que tudo pode ser perdoado se for "bem feito" (critério forjado pelos empresários do teatro francês do início do século XIX ).

A tecnologia do cinema serve para criar alguma coisa a partir do nada. Por nada, entenda-se um monte de idéias triviais, observações imprecisas, proposições inexatas e asserções indemonstráveis. Nem sempre este nada foi nada; nasceu de alguma coisa. Por exemplo, de romances que continham uma série de observações precisas, afirmações exatas e proposições demonstráveis. A começar pela receita americana de roteirização (baseada na receita da "peça-bem-feita"), que foi definida em meados dos anos de 1910, quando começaram a ser feitos os filmes de longa metragem, a tecnologia cinematográfica necessária para criar alguma coisa a partir de nada primeiro foi obrigada a criar esse nada a partir de alguma coisa. Este é o segredo da adaptação de uma obra literária . Esta é uma prática da qual a tecnologia não pode ser afastada: ela não pode ser útil para criar alguma coisa a partir de alguma coisa. É, portanto, a tecnologia que realiza os truques, porque não é arte e sim truque transformar uma porção de lixo em sobremesa apetitosa. Mas, quando mudar a função social do cinema, todas as grandes realizações da "técnica" serão jogadas no aterro sanitário.



À margem da vida real

Assim como foi feito com o Processo de três vinténs, da experiência do filme Kuhle Wampe serão destacadas algumas observações gerais, a começar pela tentativa de, através da produção independente, assegurar a liberdade artística. Com as lições do primeiro processo, agora os produtores trataram de garantir a sua condição de proprietários dos direitos autorais em sentido legal. Isto lhes custou o direito à remuneração habitual, mas foram conquistadas liberdades que de outra forma não seriam factíveis. O grupo dos produtores era formado por dois roteiristas, um diretor, um compositor, um administrador e um advogado. A primeira lição, que custou muito trabalho, foi a de que a organização é parte essencial da obra de arte. Esta organização só foi possível porque a obra como um todo era política e por isso contou com o apoio militante de outras organizações políticas, inclusive um grupo de teatro de agitprop.

Terminado o filme (o que não se deu sem enormes percalços), seus produtores descobriram mais alguns critérios de mercado. Primeiro, que filmes artisticamente válidos são comercialmente perniciosos porque estragam o gosto do público, aprimorando-o. De qualquer modo, eles não são mesmo comerciais e, se o fossem, o distribuidor capitalista assumiria o risco desse perigoso aprimoramento do gosto por motivos ligados à concorrência – do mesmo modo que se arrisca ao comercializar propaganda comunista. O segundo critério, o da relação entre novidade e valor comercial, revelou que um filme comunista não tem mais valor comercial porque o comunismo não é mais uma ameaça ao público burguês. Ele não desperta mais interesse . O terceiro, ainda mais relevante: uma empresa só se dispôs a comercializar Kuhle Wampe depois que atores, roteiristas, produtores e diretor abriram mão de seus cachês (leia-se: a mercadoria foi doada ao distribuidor). Fim de romance: o filme teve exibição restrita em Berlim, Paris e Moscou e, com o advento do regime nazista, não se falou mais no assunto. 

O fato de investidores do mercado cinematográfico não acreditarem mais na ameaça comunista não correspondia necessariamente à opinião dos administradores do Estado alemão, sobretudo os funcionários da polícia. Submetido à censura, o filme foi proibido, basicamente por dois problemas. Primeiro, porque mostra como certos grupos da classe trabalhadora se acomodam e seguem passivamente para o brejo. O censor entendeu este ponto como um ataque à social-democracia, o que era proibido por lei, assim como ataques à igreja e a qualquer instituição que apoiasse o Estado. O segundo diz respeito à trajetória de um jovem desempregado que, vítima dos cortes nos programas de assistência aos jovens, comete suicídio logo no início do filme. O censor entendeu este tópico como um ataque ao presidente que recentemente assinara alguns decretos emergenciais e vinha sendo acusado de insuficiente preocupação com o bem estar dos trabalhadores.

Como os produtores recorreram da decisão, foi-lhes concedida uma audiência, na qual o censor apresentou, entre outros, o seguinte argumento instrutivo: o problema é o modo como vocês mostram o suicídio desse trabalhador desempregado. Esse modo não está de acordo com o interesse geral que eu defendo por dever de ofício. Lamento, mas tenho que fazer uma censura de caráter estético: este trabalho não é inteiramente humano. Vocês não criaram uma pessoa, mas um tipo. Seu desempregado não é um indivíduo real, uma pessoa de carne e osso, distinta de qualquer outra, com suas preocupações particulares, alegrias particulares, seu destino particular. Ele é apresentado de modo muito superficial. Sabe-se muito pouco a respeito dele e, no entanto, as consequências são de natureza política, o que me obriga a ser contra a liberação do filme. Ele está afirmando que o suicídio é típico, que não é simplesmente a ação deste ou daquele indivíduo com disposição patológica, mas o destino de toda uma classe social. Seu ponto de vista é o de que a sociedade induz os jovens ao suicídio negando-lhes a possibilidade de trabalhar. Para agravar o mal feito, vocês ainda indicam o que devem fazer os desempregados para mudar a situação, não se comportando como artistas. Ninguém os impediria de mostrar o destino chocante de um indivíduo. Mas este suicídio nem ao menos é um gesto impulsivo. O público não terá o desejo de impedi-lo, o que seria uma reação adequada a uma apresentação artística, humana, compassiva. O personagem se mata como quem demonstra o jeito de descascar um pepino!

É bom lembrar que a mesma censura havia liberado, uma semana antes, um filme nazista chamado Mudança de destino, que certamente devia ser em grau máximo uma apresentação artística, humana e compassiva. Mais importante do que este registro en passant, entretanto, é a aproximação que Brecht faz entre os argumentos do censor e os dos críticos de cinema, inclusive os comunistas (o periódico Rote Fahne, por exemplo, criticou a "representação equivocada" do proletariado, além de reclamar da ausência de palavras de ordem).

Por sua impressionante atualidade, vale a pena encerrar este levantamento de tópicos com as observações de Brecht sobre a prática mais ampla da censura que passa por crítica. Para entender como ela funciona, diz nosso autor, deve-se concebê-la como um processo esquizofrênico pequeno burguês com a seguinte estrutura: eu me digo que eu preciso me reprimir. O pequeno burguês sabe que não pode digerir tudo o que come. Os que censuram filmes por razões de gosto pertencem a estratos sociais que ignoram seus próprios interesses políticos. Vivem uma situação impossível porque teriam que ser capazes de desejar a arte política, não por razões artísticas, mas por razões políticas, pois não há argumentos estéticos contra a censura política. Para começar, eles teriam que estar em condições de apreender criticamente a situação político-cultural dos consumidores de arte, que é a deles próprios, ao invés de criticar apenas o gosto sintomático "dessa gente" , pois sabem que é quase impossível situar-se acima da pequena burguesia, para a qual essencialmente os filmes são feitos.

Estes pequenos burgueses lamentam o rumo que as coisas da "cultura" tomaram. Melhor do que lamentar, é entender como funciona a realidade e compreender no que já aconteceu quais são as tendências revolucionárias e quais as reacionárias. Para isso, é preciso assumir uma perspectiva ativa e participante, de parte interessada num campo de forças opostas, pois o sistema social é radicalmente antagonístico e não se dá a conhecer aos que adotam a perspectiva "objetiva" e "desinteressada", cara à imprensa liberal .


Proletarização dos artistas e intelectuais

Com vistas às consequências políticas destes experimentos, que já estão mais ou menos indicadas, é útil lembrar, de preferência por extenso, o que Marx dizia na Ideologia alemã: os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas, os pensamentos dominantes, ou seja, a classe que tem o poder material dominante numa dada sociedade é também o poder espiritual dominante. A classe que dispõe dos meios de produção material dispõe igualmente dos meios de produção intelectual, de modo que o pensamento daqueles a quem são recusados os meios de produção intelectual está submetido igualmente à classe dominante. [...] Os indivíduos que constituem a classe dominante possuem entre outras coisas uma consciência e é em consequência disso que pensam; na medida em que dominam enquanto classe e determinam uma época histórica em toda a sua extensão, é lógico que esses indivíduos dominem em todos os sentidos, que tenham, entre outras, uma posição dominante como seres pensantes, como produtores de idéias, que regulamentem a produção e a distribuição dos pensamentos da sua época; as suas idéias são, portanto, as idéias dominantes da sua época .

Para o que nos interessa, os experimentos de Brecht são da ordem do trabalho coletivo, do qual seria preciso tirar as consequências teóricas, o que não fazem os intelectuais, como seria do seu dever, porque estão submetidos às exigências da produção espiritual determinada pela classe dominante e desprovidos dos meios de produção espiritual. Para começar, porque não se dão conta de que participam de um coletivo. O crítico de jornal, por exemplo, compartilha as opiniões dos demais jornalistas e participa do desenvolvimento da opinião como um todo. Aqui funciona um coletivo que torna irreconhecível a opinião individual. O cinema, como todo mundo sabe, só existe enquanto trabalho coletivo. Mas na indústria cinematográfica, ao contrário da produção independente, "coletivo" não é o que habitualmente se supõe. Sempre há quem define, quem decide. A engrenagem funciona como uma espécie de caricatura da divisão do conhecimento: um técnico filma porque o diretor não tem a menor idéia de como operar uma câmera, outro faz a montagem porque o operador da câmera não tem idéia do filme como um todo e alguém escreve o roteiro porque o público tem preguiça de fazê-lo. É por isso que interessa tornar irreconhecível a contribuição individual. No capitalismo a idéia de coletivo exclui o público e a partir dele é criado um falso coletivo.

Um filme é produzido coletivamente e no entanto é percebido como obra de arte antes que o conceito de arte tenha incorporado o conceito de trabalho coletivo. Uma economia planificada – a da ditadura do mercado – já se estabeleceu na produção da arte sem que o conceito de arte tenha se livrado do valor que a ideologia dominante atribui a personalidade, liberdade individual e superstições conexas. O cinema como trabalho coletivo permite que se percebam essas inconsistências ideológicas: a cultura burguesa não é o que ela pensa sobre as práticas burguesas, e a distância que separa esta cultura de suas práticas pode ser calculada pela espessura de um fio de cabelo.

Não será cultivando o que Walter Benjamin chamou "teologia da arte" – a doutrina da arte pura – que artistas e intelectuais encontrarão respostas às perguntas por seu papel e o da arte na sociedade capitalista. Estas serão encontradas na luta por um lugar na produção, o que equivale a dizer na luta pela libertação das forças produtivas (porque artistas e intelectuais desempregados, como todas as demais categorias de trabalhadores, também configuram desperdício de forças produtivas).

O papel da produção ou, mais exatamente, o constante crescimento deste papel, é decisivo em grau máximo porque ele revoluciona todo comportamento e todas as idéias. Justiça, liberdade, personagem, tudo se tornou função da produção; são suas variáveis. Nenhum ato cognitivo é mais possível fora do processo de produção. É preciso produzir para conhecer e produção significa estar no processo de produção. Até o lugar do revolucionário e o da revolução é o processo de produção. Um exemplo simples (do filme Kuhle Wampe) ilustra este teorema elementar: na revolução o desempregado tem um papel surpreendentemente pequeno, mas deste papel menor emerge imediatamente um papel de protagonista quando o desemprego começa a ameaçar seriamente a produção.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Enquanto isso, num apartamento na Vila Madá...(Ideia para um filme)

Em um apartamento, num bairro pequeno burguês de São Paulo capital, dois jovens artistas(ambos músicos, atores e dramatugos),  do tipo bem vila madalena, semelhantemente frustrados sobre as confusões existenciais impostas pelo mundo que os circundam discutem:

DESESPERADO
Não dá mais...

ASPIRANTE AO MARXISMO
Não dá mais o que, camarada?

DESESPERADO
Essa sujeira toda...

ASPIRANTE AO MARXISMO
A do governo?

DESESPERADO
Não, a do apartamento! A gente não consegue
mais dar conta sozinho.

 ASPIRANTE AO MARXISMO
Certo! E o que você sugere?

DESESPERADO
Precisamos de uma diarista?

ASPIRANTE AO MARXISMO
De jeito nenhum, camarada!
Não me permitiria ir tão fundo na raizes
de meu espirito determinado pelo capitalismo.

DESESPERADO
Mas e o porteiro? O lixeiro?
O garçom? O cara dos esgoto?

ASPIRANTE AO MARXISMO
Há alguns momentos na vida, dentro desse sistema,
que vivemos, e que temos algumas pequenas escolhas, 
ainda que ridículas, mas que nos permitem manter o único
suspiro de dignidade vivo.

DESESPERADO
O fato é que precisamos criar! E não temos tempo!
Pois temos que trabalhar, limpar, cozinhar, e só daí
trabalharmos nos que queremos, que muitas vezes não
acumula nem sete horas na semana.

ASPIRANTE AO MARXISMO
O que você não quer admitir é que o patrão que tira o 
seu tempo, e não a empregada que vai de devolver ele.
continua...

sábado, 22 de outubro de 2011

Nota: A necessidade da revolução,


Contra as tentativas de “descafeinar” (Zizek) os levantes populares na Europa e nos EUA.

Não se trata do que este ou aquele proletariado, ou mesmo todo o proletariado, imagina em dado momento como fim. Trata-se do que ele é e do que, de acordo com esse ser, será historicamente coagido a fazer

Karl Marx, Die Heilige Familie, [A sagrada família]

A teoria que apreende as condições que tornam possível a superação do capitalismo é conhecida como materialismo histórico. Tal teoria não enxerga a revolução como um mero desdobramento lógico desta apreensão. O motivo de sua profunda imanência reside, antes, no próprio conteúdo apreendido: as condições reais de vida dos trabalhadores. Tratam-se das mesmas condições que, historicamente, tornaram possível nossa vigência teórica enquanto materialistas (exercício de auto-historicização).

Tais condições que permitem à classe encarnar a compreensão acabada do capitalismo (práxis), vale lembrar, mais uma vez e sempre: não são eternas! Já estavam contidas virtualmente no processo histórico de surgimento da classe. Assim, a efetivação (necessariamente prática) dessa compreensãoisto é, a destruição do capitalismo, manifesta-se sob a forma de continuidade necessária da própria reprodução do trabalho (assalariado) - seu negativo. 

A “função histórica” (Lukács) da teoria consiste em penetrar e revelar justamente a essência processual desta superação, ou, contrariamente, a necessidade de superação no interior deste processo (atualmente isto significa: compreender a origem estrutural da crise).

Nesse sentido, os termos que empregamos - entre eles revolução necessária e permanente – são a expressão, em forma de conceito, do caráter histórico da luta final contra o capitalismo, engendrada pelo próprio capitalismo (e  que despertem os seus coveiros!). Noutras palavras, devemos organizar conceitualmente nossa consciência, de cima a baixo, único modo possível de sentirmos com profundidade a possibilidade histórica da revolução – sem desvios ideológicos que se perdem em pessimismos ou otimismos desparafusados.

Retorno:

Revolução, em Marx, não significa, portanto, um impulso voluntarioso ou moral, mas a simples “expressão pensada” (Lukács) de uma necessidade que, naturalmente, não é uma invenção da nossa cabeça, mas sim uma necessidade produzida pelas contradições reais e históricas do regime capitalista. Não podemos nos furtar a evidência de que os levantes da Europa e dos EUA são o sintoma de uma possibilidade renovada da revolução, ou de uma necessidade agônica de superação de uma sociedade em agonia, sob pena de largarmos o futuro da humanidade (mais uma vez, e talvez a última) na garganta da indústria bélica, sedenta por destruição.

O surgimento da classe capaz de superar a própria luta de classes corresponde à época em que esta possibilidade ganha expressão teórica – e devemos ser os porta-vozes desta teoria, pois entendemos que ela é insuperável em sua essência enquanto a superação da luta de classes se mantiver na forma de potência não-efetivada, isto é, existência reproduzida da exploração. 

Tal teoria, por conseguinte, não enxerga a si apenas como contemporânea do período histórico (modernidade) em que se fez possível a superação da luta de classes, mas, exatamente por isso, compreende e realiza sua “função histórica” de aceleradora dos combates finais. Para isso a crítica anticapitalista precisa recuperar sua integridade de princípios, e só pode fazê-lo, conforme nos diz Marx, mediante uma crítica de ... “tudo quanto existe, doa e quem doer”. 

Último final de semana do "Homem Cavalo & Sociedade Anônima"




sexta-feira, 21 de outubro de 2011

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Artigo de Gilberto Maringoni

link original: http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=5244


Rafinha não dançou por machismo, mas por mexer com gente rica

O integrante do CQC, que fez piada de péssimo gosto com Wanessa Camargo, já falara coisas piores. Agora mexeu com esposa de milionário, que ameaçou tirar anúncios da TV Bandeirantes. Ninguém classificou caso como atentado à liberdade de expressão. Já quando ministra condena comercial de lingerie machista, o coro é um só: “Censura”!

Gilberto Maringoni

Qual é o problema com a suposta piada de Rafinha Bastos? Ele antes já exibira todas as cores de seu mau gosto e nada acontecera. 

Todos conhecem a pérola, não? O apresentador aproveitou-se de uma bola levantada pelo chefe da cena do programa Custe o que Custar (CQC), Marcelo Tas, sobre a gravidez da cantora Wanessa Camargo, e cortou ligeiro: “Eu comeria ela e o bebê, não tô nem aí”. Foi logo acompanhado por risos e caretas de seus colegas de vídeo, Tas e Marco Luque . 

A grosseria foi ao ar dia 19 de setembro. A TV Bandeirantes, que exibe o programa, levou duas semanas para decidir o que fazer. Em 3 de outubro, o apresentador foi suspenso da bancada. Não se sabe se voltará.

Não foi a primeira vez que Rafinha exerceu sua – digamos - sutileza. Em entrevista à revista Rolling Stone, em maio de 2011, ele saiu-se com esta: “Mulheres feias deveriam agradecer caso fossem estupradas, afinal os estupradores estavam lhes fazendo um favor, uma caridade”.

A gracinha com as feias não rendeu ao gaúcho de dois metros de altura nada além de protestos de movimentos femininos. Mas a liberdade com a cantora custou-lhe até agora, além do posto no programa, o cancelamento de shows e o rompimento de alguns contratos de publicidade. Rafinha perdeu grana com a brincadeira.

Pensamento vivo
Repetindo: qual o problema com as tiradas do rapaz de 34 anos, num universo midiático em que o mau gosto, a boçalidade e o “politicamente incorreto” passaram a ser valores em si?

Rafinha vive num tempo em que as demonstrações de preconceito, como as do apresentador de outro programa de entretenimento da mesma emissora, Boris Casoy, não têm consequências maiores. Todos se recordam da fineza do jornalista ao desqualificar dois garis que apareceram em seu programa para desejar boas festas, no final de 2009. Sem saber que os microfones estavam abertos, ele foi ao ponto: "Que merda: dois lixeiros desejando felicidades do alto da suas vassouras. O mais baixo na escala do trabalho".

O artista do CQC também sabe que o pensamento vivo de gente como o deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ) recebe destacada acolhida em grandes meios de comunicação. Sua entrevista à revista Playboy, em junho último, é pródiga em preciosidades. Segue um exemplo: “Moro num condomínio, de repente vai um casal homossexual morar do meu lado. Isso vai desvalorizar minha casa!”. 

Outro luminar da intelectualidade midiática, o ex-compositor Lobão, por sua vez, exibiu os músculos cerebrais em um festival de cultura em São Francisco Xavier (São José dos Campos, SP), também em junho. Após demonstrar criteriosamente que toda a música popular brasileira não tem nenhum valor, ele sentenciou: “A gente tinha que repensar a ditadura militar. Essa Comissão da Verdade que tem agora. (…) Que loucura que é isso? Aí tem que ter anistia pros caras de esquerda que sequestraram o embaixador, e pros caras que torturavam, arrancavam umas unhazinhas, não?”. 

Os exemplos são infindáveis. Rafinha provavelmente é leitor de Reinaldo Azevedo, o blogueiro de Veja, que, em março de 2010, durante uma palestra no afamado Instituto Millenium, em São Paulo, externou sua particular concepção de liberdade de expressão: “A imprensa tem que acabar com o isentismo e o outroladismo, essa história de dar o mesmo espaço a todos”. Na mesma oportunidade, o cineasta aposentado Arnaldo Jabor lançou o desafio de “impedir politicamente o pensamento de uma velha esquerda que não deveria mais existir no mundo”. Impedir o pensamento... muito bom!

A baixaria televisiva contaminou até mesmo as campanhas eleitorais. Continuam na memória de todos os ataques da campanha de José Serra à Dilma Rousseff, em 2010, sobre o tema do aborto. Em Nova Iguaçu (RJ), Monica Serra, esposa do então candidato tucano, disse o seguinte sobre a petista: "Ela é a favor de matar as criancinhas".

Dois anos antes, a campanha de Marta Suplicy (PT) à prefeitura de São Paulo já havia colocado em dúvida a sexualidade de seu oponente, ao dizer: “Você sabe mesmo quem é o Kassab? Sabe de onde ele veio? Qual a história do seu partido?” Em seguida, aparece a foto do prefeito: “Sabe se ele é casado? Tem filhos?”

Bem acompanhado
Rafinha está em boa companhia. Deve se sentir incentivado para exercer seu rosário de preconceitos. Provavelmente pensa estar “quebrando paradigmas”, investindo contra o estabelecido e externando uma rebeldia adolescente, que lhe granjeia grande popularidade e bons cachês. 

Ridicularizar e humilhar quem tem poucas chances de se defender, em uma sociedade com desigualdades abissais como a brasileira, é um grande negócio. Prova isso a lista de clientes dos shows do moço, que constam de sua página na internet. São elas Votorantim, Bosch, Agroceres, LG, HP, Ernst & Young, IBM, Banco Real, Vivo, Springer Carrier, Cargil, Unilever, Motorola, Chevrolet, Sherwin Williams, Valor Econômico, Bunge, GNT (Globosat), Jornal O Estado de S. Paulo, Coca-Cola, Bradesco, ESPM etc. Segundo a Veja, ele foi visto em mais de 730 comerciais somente neste ano.

Rafinha faz parte de uma tendência do humor televisivo, que se abriu após a chegada dos humoristas do Casseta e Planeta ao vídeo. A linhagem envolve também o programa Panico (da Rede TV!) e outros imitadores, além do Zorra Total, da Globo. Todos se dizem distantes da política, independentes e praticantes de um humor anárquico e sem freios. Nem mesmo a participação de Marcelo Tas como palestrante em um encontro da juventude do DEM ,em novembro de 2008, ou de Marcelo Madureira nas palestras hidrófobas do Instituto Millenium, os comprometem, segundo eles, com idéias que não as próprias.

Acima da cintura
Num panorama desses, repetimos: qual o problema de Rafinha Bastos?

O problema é que o garoto bateu acima da cintura. 

Tudo bem desancar garis, a esquerda que foi à luta nos anos da ditadura, exaltar a parcialidade da imprensa e atacar homossexuais e outros grupos vulneráveis.

Não pode é investir contra o topo da pirâmide social. 

Rafinha cometeu esse pecado. Wanessa Camargo é casada com Marcus Buaiz, 31 anos, herdeiro de um dos maiores conglomerados empresariais do Espírito Santo, o Grupo Buaiz, que completa 70 anos em 2012. O grupo é formado pela TV Vitória (afiliada da Rede Record), por duas rádios, pelo Nova Cidade Shopping Center, por várias empresas de alimentação (Café Número Um, Moinho Três Rios e Moinho Vitória), pela Buaiz Importação e Exportação, pela incorporadora Meca e pela Automóbile Comércio de Veículos, entre outras. 

Marcus Buaiz transferiu-se para São Paulo, onde é proprietário de casas noturnas e restaurantes, além de uma empresa de marketing esportivo, a 9INE, em parceria com o ex-jogador Ronaldo Fenômeno. Segundo o jornal A Gazeta, de Vitória, o empresário e seu sócio teriam ameaçado tirar anúncios do programa, após a performance de Rafinha Bastos. “Um comercial de 30 segundos no CQC custa 130 mil reais. Já um merchandising pode custar de 240 mil a dois milhões e 400 mil reais, sem incluir cachês”, diz a publicação.

Com tudo isso, a Bandeirantes podou Rafinha Bastos de sua programação.

Dois pesos
O curioso da história é que intenção semelhante, de retirada de um comercial de lingerie do ar, por parte da ministra da Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres, Iriny Lopes (PT), foi classificada como censura por colunistas de imprensa e até por colegas seus na Esplanada dos Ministérios. 

Na peça, em três versões, Gisele Bündchen faz as vezes de uma esposa prestes a dar uma péssima notícia ao marido: estourou o limite do cartão de crédito, bateu o carro ou informa que sua mãe virá morar com eles. É um machismo digno dos anos 1950. Os publicitários da agência Giovanni+DraftFCB devem ter achado o máximo a própria criação. No clima de boçalidade modernosa, não há problema na mulher bonita, mas dependente do marido provedor, invocar seus atributos eróticos para conseguir o que quer. 

Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, a representante governista assim se manifestou: “A propaganda caracteriza como correto a mulher dar uma notícia ruim apenas de lingerie e errado estar vestida normalmente. Essa definição de certo e errado caracteriza um sexismo atrasado e superado”.

A ação da ministra está a quilômetros de distância das ameaças que teriam sido feitas pelo marido de Wanessa Camargo ou pela ação da Bandeirantes, que sem mais tirou Rafinha do ar. Iriny apenas solicitou ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) a suspensão da peça publicitária. 

O mundo desabou sobre sua cabeça, com insinuações sobre estética feminina e inveja da modelo.

O caso Rafinha Bastos é pedagógico. No Brasil, além das mulheres, qualquer minoria pode ser atacada. Menos uma: a minoria dos endinheirados.


Gilberto Maringoni, jornalista e cartunista, é doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de “A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez” (Editora Fundação Perseu Abramo).

Série OLHAR estreia em janeiro no Canal Brasil

Para quem gosta de cinema já é de um valor inestimável o belíssimo teaser da série "Olhar", dirigida pelo grande cineasta pernambucano Camilo Cavalcante, como sempre refletindo forma e conteúdo.

 

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

A ETERNIDADE E UM DIA


Publico essa nota com o título de um, entre centenas, de filmes que me marcaram na Mostra de Cinema idealizada por Leon Cakoff, um guerreiro cinematográfico nascido na Síria, que vem  para o Brasil aos oito anos de idade, para nos impregnar de cinema. Preparo-me para a Mostra de SP e fico sabendo que seu mentor faleceu há pouco. Patrono do cinema como arte, Leon Cakoff é daqueles personagens que negociam com a eternidade para ficar sempre pelas suas realizações. De certa forma, devo muito a você, Leon, por alguns caminhos que trilhei. "A Eternidade e um Dia", do cineasta grego Theo Angelopoulos, seja talvez emblemático para noticiar essa perda. 

NOTA DE FALECIMENTO (Enviada pela Assessoria de Imprensa da 35ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo)

Um dos maiores nomes da resistência cultural no Brasil durante a ditadura, LeonCakoff, fundador da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, morreu hoje, sexta-feira dia 14 outubro, às 13 horas, por conta de complicações decorrentes de um melanoma – câncer que atinge o tecido epitelial. Ele estava internado há duas semanas no Hospital São José, em São Paulo. O corpo será velado no Museu da Imagem e do Som - MIS de São Paulo, (Av. Europa, 158 - Jardim Europa), a partir das 17 horas de hoje até às 12 horas de sábado (15). O corpo seguirá para o Memorial Parque Paulista (R. Dr. Jorge Balduzzi, Nº 520, Jd. Das Oliveiras - Embu Das Artes), onde será cremado. 

Leon Cakoff nasceu Leon Chadarevian em Alepo, na Síria, em 12 de junho de 1948. Veio para o Brasil com a família aos oito anos de idade e formou-se pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Por problemas com o regime militar, adotou o pseudônimo Cakoff, que nunca mais abandonou.

Leon foi casado durante 22 anos com Renata de Almeida, atual diretora da Mostra. Ela dirige a Mostra a seu lado desde a 13ª edição do evento, em 1989. Deixa dois filhos com ela, Jonas e Thiago, além de dois filhos anteriores do primeiro casamento, Pedro e Laura.

Ele começou a carreira em 1969 como jornalista e depois crítico de cinema nos Diários Associados. A partir de 1974, dirigiu o Departamento de Cinema do Museu deArte de São Paulo (Masp) e iniciou a programação de mostras e ciclos no museu.

Em 1977, para comemorar os 30 anos do Masp, Leon criou a 1ª Mostra Internacional de Cinema, com 16 longas e 7 curtas brasileiros e internacionais. Logo no primeiro ano, foi criada uma das maiores marcas do festival, o prêmio com o voto do público, que na primeira edição foi para Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia, de Hector Babenco. Um artigo do Jornal do Brasil registra que “a Mostra é o único lugar onde se pode votar no país”.

Desde a primeira edição, Leon travou uma luta ferrenha contra a censura imposta pelo regime militar, trazendo filmes até por meio de malas diplomáticas de embaixadas e consulados. Foi assim que a Mostra exibiu filmes inéditos vindos da China, Cuba, União Soviética, França e dos mais distantes países.

A partir de 1984, Leon desligou-se do Masp e carregou consigo o evento. A 8ª Mostra foi marcada por alguns dos maiores embates contra a censura. É o ano da histórica sessão de O Estado das Coisas de Wim Wenders no Cine Metrópole, ao fim da qual ele subiu ao palco para anunciar a ordem federal de fechamento do cinema e interrupção do festival. O fato repercutiu em diversos jornais no exterior. Leon conseguiu retomar as projeções quatro dias depois.

Grandes cineastas
Ao longo dos 35 anos de Mostra, Leon introduziu no Brasil o cinema de grandes autores que de outra forma não teriam chegado ao público nacional. Todos esses diretores tornaram-se também seus amigos pessoais. É o caso do português Manoel de Oliveira, o cineasta mais velho do mundo em atividade, hoje com 102 anos, de quem a Mostra apresentou regularmente os filmes a partir de Amor de Perdição (1979, na 3ª Mostra); o iraniano Abbas Kiarostami, diretor de Gosto de Cereja e Cópia Fiel; e o israelense AmosGitai, diretor de Kadosh e Alila. Todos vieram inúmeras vezes a São Paulo como convidados ou membros do Júri internacional da Mostra.

Outros grandes diretores que passaram pela Mostra foram o americano Quentin Tarantino com seu primeiro filme, Cãesde Aluguel (1992, 16ª Mostra); oespanhol Pedro Almodóvar, que abriu a 19ª Mostra em 1995 com A Flor do Meu Segredo; o americano Dennis Hopper, que veio a São Paulo em 1984 apresentar O Último Filme; o alemão Wim Wenders, que veio a SãoPaulo na 32ª e na 34ª Mostra; o diretor de fotografia mexicano Gabriel Figueroa, que trabalhou com John Huston e Luís Buñuel, convidado da 19ª Mostra em 1995; o iraniano JafarPanahi, hoje mantido em prisão domiciliar pelo governo do Irã; o sérvio Emir Kusturica e o finlandês Aki Kaurismaki, entre tantos outros.

Produtor,diretor e escritor

Leon Cakoff também foi o produtor de importantes projetos que reuniram grandes diretores. Em 2004, ele organizou elançou na 28ª Mostra o filme Bem-Vindo a São Paulo, reunião de curtas sobre a cidade dirigidos por 12 cineastas, entre eles Caetano Veloso, Phillip Noyce, Maria de Medeiros, Daniela Thomas, Amos Gitai e Tsai Ming-Liang. Foi também o produtor de O Mundo Invisível, filme inédito que reúne curtas de Manoel de Oliveira, Wim Wenders e Atom Egoyan, que terá exibição na 35ªMostra.

Leon dirigiu ainda os curtas Volte Sempre Abbas (1999) e Natureza-Morta (2004), ambos em parceria com Renata de Almeida, e EsperandoAbbas (2004). Ele escreveu os livros Gabriel Figueroa – O Mestre do Olhar, grande entrevista com o mexicano; Ainda Temos Tempo, com crônicas de viagem ligadas a cinema; Cinema Sem Fim, com a história dos 30 anos da Mostra; e Manoel de Oliveira, uma grande entrevista sua com o cineasta português.

Distribuidore exibidor
Além de programador e produtor, Leon também atuou nas outras pontas do mercado cinematográfico. Em 2000, junto com Adhemar Oliveira, Patrícia Durães e Renata de Almeida, formou a distribuidora Mais Filmes, especializada em filmes de autor. Nos últimos anos, mantinha, com Renata de Almeida, a Filmes da Mostra, que lança filmes em cinema (como Tio Boonmee..., vencedorda Palma de Ouro em Cannes) e coleções em DVD, em parceria com a Livraria Cultura. 

Com Renata de Almeida, Patricia Durães, Eliane Monteiro e Adhemar Oliveira, criou o  Unibanco Arteplex, primeiro cinema do Brasil a usar o conceito de multiplex para incluir filmes de arte da programação.


FRASES
“A história da Mostra Internacional de São Paulo é o relato de uma batalha constante contra a censura, as leis arbitrárias, o descaso pela cultura. É, finalmente, uma luta pela criação e preservação de uma memória coletiva” – Walter Salles, cineasta de Central do Brasile Diários de Motocicleta

“Admiro as pessoas que têm visão, um sonho, a coragem e a determinação de não apenas realizá-lo, mas também de perseverar, não deixá-lo morrer. É o caso do Leon, que foi o primeiro de nós a viajar para o Festival de Cannes (...), onde nasceu e começou a ser germinada a ideia de realizar um festival de cinema na cidade de São Paulo.” – Rubens Ewald Filho, crítico de cinema

“Atravessam-se continentes e oceanos para perceber que estranhamente, nas profundezas do planeta, um amigo que pertence a uma cultura radicalmente diferente da nossa fala muito mais à vontade a nossa ‘língua’ e a nossa ‘linguagem’ que nossos próprios compatriotas. Na casa do Leon, (...) surpreendo-me de encontrar as paisagens tão familiares de meu próprio país” – Abbas Kiarostami, cineasta iraniano, diretor de Gosto de Cereja e Cópia  Fiel.

"Poderes, poderes" - Caetano Veloso

terça-feira, 11 de outubro de 2011

A tinta vermelha: discurso de Slavoj Žižek aos manifestantes do movimento Occupy Wall Street

FONTE: http://boitempoeditorial.wordpress.com/2011/10/11/a-tinta-vermelha-discurso-de-slavoj-zizek-aos-manifestantes-do-movimento-occupy-wall-street/

Slavoj Žižek visitou a Liberty Plaza, em Nova Iorque, para falar ao acampamento de manifestantes do movimento Occupy Wall Street (Ocupe Wall Street), que vem protestando contra a crise financeira e o poder econômico norte-americano desde o início de setembro deste ano.
O filósofo nos enviou a íntegra de seu discurso para publicarmos em nosso Blog, que segue abaixo em tradução de Rogério Bettoni.
***


Não se apaixonem por si mesmos, nem pelo momento agradável que estamos tendo aqui. Carnavais custam muito pouco – o verdadeiro teste de seu valor é o que permanece no dia seguinte, ou a maneira como nossa vida normal e cotidiana será modificada. Apaixone-se pelo trabalho duro e paciente – somos o início, não o fim. Nossa mensagem básica é: o tabu já foi rompido, não vivemos no melhor mundo possível, temos a permissão e a obrigação de pensar em alternativas. Há um longo caminho pela frente, e em pouco tempo teremos de enfrentar questões realmente difíceis – questões não sobre aquilo que não queremos, mas sobre aquilo que QUEREMOS. Qual organização social pode substituir o capitalismo vigente? De quais tipos de líderes nós precisamos? As alternativas do século XX obviamente não servem.

Então não culpe o povo e suas atitudes: o problema não é a corrupção ou a ganância, mas o sistema que nos incita a sermos corruptos. A solução não é o lema “Main Street, not Wall Street”, mas sim mudar o sistema em que a Main Street não funciona sem o Wall Street. Tenham cuidado não só com os inimigos, mas também com falsos amigos que fingem nos apoiar e já fazem de tudo para diluir nosso protesto. Da mesma maneira que compramos café sem cafeína, cerveja sem álcool e sorvete sem gordura, eles tentarão transformar isto aqui em um protesto moral inofensivo. Mas a razão de estarmos reunidos é o fato de já termos tido o bastante de um mundo onde reciclar latas de Coca-Cola, dar alguns dólares para a caridade ou comprar um cappuccino da Starbucks que tem 1% da renda revertida para problemas do Terceiro Mundo é o suficiente para nos fazer sentir bem. Depois de terceirizar o trabalho, depois de terceirizar a tortura, depois que as agências matrimoniais começaram a terceirizar até nossos encontros, é que percebemos que, há muito tempo, também permitimos que nossos engajamentos políticos sejam terceirizados – mas agora nós os queremos de volta.

Dirão que somos “não americanos”. Mas quando fundamentalistas conservadores nos disserem que os Estados Unidos são uma nação cristã, lembrem-se do que é o Cristianismo: o Espírito Santo, a comunidade livre e igualitária de fiéis unidos pelo amor. Nós, aqui, somos o Espírito Santo, enquanto em Wall Street eles são pagãos que adoram falsos ídolos.

Dirão que somos violentos, que nossa linguagem é violenta, referindo-se à ocupação e assim por diante. Sim, somos violentos, mas somente no mesmo sentido em que Mahatma Gandhi foi violento. Somos violentos porque queremos dar um basta no modo como as coisas andam – mas o que significa essa violência puramente simbólica quando comparada à violência necessária para sustentar o funcionamento constante do sistema capitalista global?

Seremos chamados de perdedores – mas os verdadeiros perdedores não estariam lá em Wall Street, os que se safaram com a ajuda de centenas de bilhões do nosso dinheiro? Vocês são chamados de socialistas, mas nos Estados Unidos já existe o socialismo para os ricos. Eles dirão que vocês não respeitam a propriedade privada, mas as especulações de Wall Street que levaram à queda de 2008 foram mais responsáveis pela extinção de propriedades privadas obtidas a duras penas do que se estivéssemos destruindo-as agora, dia e noite – pense nas centenas de casas hipotecadas…

Nós não somos comunistas, se o comunismo significa o sistema que merecidamente entrou em colapso em 1990 – e lembrem-se de que os comunistas que ainda detêm o poder atualmente governam o mais implacável dos capitalismos (na China). O sucesso do capitalismo chinês liderado pelo comunismo é um sinal abominável de que o casamento entre o capitalismo e a democracia está próximo do divórcio. Nós somos comunistas em um sentido apenas: nós nos importamos com os bens comuns – os da natureza, do conhecimento – que estão ameaçados pelo sistema.

Eles dirão que vocês estão sonhando, mas os verdadeiros sonhadores são os que pensam que as coisas podem continuar sendo o que são por um tempo indefinido, assim como ocorre com as mudanças cosméticas. Nós não estamos sonhando; nós acordamos de um sonho que está se transformando em pesadelo. Não estamos destruindo nada; somos apenas testemunhas de como o sistema está gradualmente destruindo a si próprio. Todos nós conhecemos a cena clássica dos desenhos animados: o gato chega à beira do precipício e continua caminhando, ignorando o fato de que não há chão sob suas patas; ele só começa a cair quando olha para baixo e vê o abismo. O que estamos fazendo é simplesmente levar os que estão no poder a olhar para baixo…

Então, a mudança é realmente possível? Hoje, o possível e o impossível são dispostos de maneira estranha. Nos domínios da liberdade pessoal e da tecnologia científica, o impossível está se tornando cada vez mais possível (ou pelo menos é o que nos dizem): “nada é impossível”, podemos ter sexo em suas mais perversas variações; arquivos inteiros de músicas, filmes e seriados de TV estão disponíveis para download; a viagem espacial está à venda para quem tiver dinheiro; podemos melhorar nossas habilidades físicas e psíquicas por meio de intervenções no genoma, e até mesmo realizar o sonho tecnognóstico de atingir a imortalidade transformando nossa identidade em um programa de computador. Por outro lado, no domínio das relações econômicas e sociais, somos bombardeados o tempo todo por um discurso do “você não pode” se envolver em atos políticos coletivos (que necessariamente terminam no terror totalitário), ou aderir ao antigo Estado de bem-estar social (ele nos transforma em não competitivos e leva à crise econômica), ou se isolar do mercado global etc. Quando medidas de austeridade são impostas, dizem-nos repetidas vezes que se trata apenas do que tem de ser feito. Quem sabe não chegou a hora de inverter as coordenadas do que é possível e impossível? Quem sabe não podemos ter mais solidariedade e assistência médica, já que não somos imortais?

Em meados de abril de 2011, a mídia revelou que o governo chinês havia proibido a exibição, em cinemas e na TV, de filmes que falassem de viagens no tempo e histórias paralelas, argumentando que elas trazem frivolidade para questões históricas sérias – até mesmo a fuga fictícia para uma realidade alternativa é considerada perigosa demais. Nós, do mundo Ocidental liberal, não precisamos de uma proibição tão explícita: a ideologia exerce poder material suficiente para evitar que narrativas históricas alternativas sejam interpretadas com o mínimo de seriedade. Para nós é fácil imaginar o fim do mundo – vide os inúmeros filmes apocalípticos –, mas não o fim do capitalismo.

Em uma velha piada da antiga República Democrática Alemã, um trabalhador alemão consegue um emprego na Sibéria; sabendo que todas as suas correspondências serão lidas pelos censores, ele diz para os amigos: “Vamos combinar um código: se vocês receberem uma carta minha escrita com tinta azul, ela é verdadeira; se a tinta for vermelha, é falsa”. Depois de um mês, os amigos receberam a primeira carta, escrita em azul: “Tudo é uma maravilha por aqui: os estoques estão cheios, a comida é abundante, os apartamentos são amplos e aquecidos, os cinemas exibem filmes ocidentais, há mulheres lindas prontas para um romance – a única coisa que não temos é tinta vermelha.” E essa situação, não é a mesma que vivemos até hoje? Temos toda a liberdade que desejamos – a única coisa que falta é a “tinta vermelha”: nós nos “sentimos livres” porque somos desprovidos da linguagem para articular nossa falta de liberdade. O que a falta de tinta vermelha significa é que, hoje, todos os principais termos que usamos para designar o conflito atual – “guerra ao terror”, “democracia e liberdade”, “direitos humanos” etc. etc. – são termos FALSOS que mistificam nossa percepção da situação em vez de permitir que pensemos nela. Você, que está aqui presente, está dando a todos nós tinta vermelha.

domingo, 9 de outubro de 2011

"Terra" - Caetano veloso

entre a vida e a morte, dança com Tânatos sendo Eros



Vejo Queremos tanto viver, não sabemos gozar. queremos morrer. Os humanos ao nascerem e conviverem, se desejam, se entrelaçam nessa avalanche.  Na valsa com um, encontro outro.

Em mim eu soube que a morte me aguardava. Mas não quero fazer pensável essa mata. Me custa percorrer suas trilhas. Me esquivo. Num baile, na correnteza de uma valsa, as máscaras me confundem, danço com a morte e com a vida alternadamente. E a morte se faz vida. E a vida, quando estou certo, é a morte. Nos bastidores me observa a ressurreição, deselegante, me pede pra pedi-la na próxima dança. Posso um pouco mais me divertir com a morte e a vida?

Os humanos se entrelaçam em redes. Entre elas eletriza a vida. Meus sentidos, atravessa a morte. E a vida se mina na sanha assassina que assola essas redes. Veja, eu vejo isso noutro espaço. Onde houver dois ou três reunidos, ali dança a vida, dança a morte. Onde houver um só, sopra a vida, tempestade a morte. Há a ressurreição com sua sedução faz querer de novo a vida. Mas não é assim, de onde vem esse cancro que me assalta quando não penso o parceiro da minha valsa? destino trágico, se sei e se fujo te encontro onde certamente te evitaria.

O sentido que sei sua seiva suas veias e seu sangue serpenteia a morte. Eis-me diante de ti, Vida, eis-me te tratando como Quem me pensa, e se penso deveria eu aceitar Tu me pensas. Posso Vida, posso te convidar pra bailar nesse dia? Posso te pedir pra vestir meu olhar? Posso, se te esquecer, cambiar o próximo passo e te fazeres ressurreição? 



Luiz Carlos Martins
http://lucamartins.blogspot.com/2011/10/entre-vida-e-morte-danca-com-tanatos.html

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

O mundo vai acabar. (Charles Baudelaire)


O mundo vai acabar. A única razão pela qual poderia durar é que ele existe. Que razão fraca, comparada a todas as que anunciam o contrário, particularmente esta: o que tem o mundo que fazer sob o céu? Pois, supondo que continuasse a existir materialmente, seria uma existência digna desse nome, isto é, digna de constar no dicionário histórico? Não digo que o mundo será reduzido à desordem bufona das repúblicas da América do Sul; e também não digo que retornaremos ao estado selvagem, nem que vamos procurar um novo pasto através das ruínas gramadas de nossa civilização, de fuzil na mão. Não; pois esse destino e essas aventuras necessitam ainda de certa energia vital, eco das primeiras eras. Morreremos por aquilo que acreditamos viver.

A mecânica nos terá a tal ponto americanizado, o progresso terá tão bem atrofiado nosso espírito, que nenhum devaneio sanguinário poderá se comparar a seus resultados. Peço a todo homem pensante que me mostre, se for capaz, o que ainda resta da vida. Virá o tempo em que a humanidade, como um bicho-papão vingador, arrancará sua última migalha daqueles que acreditaram serem os herdeiros legítimos da revolução. Ainda assim, não será esse o mal supremo.

Não é particularmente por instituições políticas que se manifestará a ruína universal, ou o progresso universal; pois pouco me importa o nome. Será pelo embrutecimento dos corações. O pouco que restará de política se verá preso nos braços da animalidade geral, e os governos serão forçados, para se manter e para criar uma aparência de ordem, a tomar medidas que fariam estremecer nossa humanidade atual. Então, o filho fugirá da família, não aos dezoito anos, mas aos doze, emancipado por sua precocidade gulosa. Fugirá da família, não para buscar aventuras heróicas, não para libertar uma mocinha aprisionada numa torre, não para tornar-se imortal através de sublimes pensamentos, mas para fundar um comércio, para se enriquecer, e para fazer concorrência a seu infame papai, fundador e acionário de um jornal que espalhará as luzes da razão!

Então, as mulheres errantes, as desclassificadas, as que tiveram alguns amantes, e que chamamos de Anjos quando vemos o brilho da luz de seus olhos, luz do acaso, tais mulheres, na sua existência maligna, não serão nada além do que a cruel sabedoria, sabedoria que condenará tudo, exceto o dinheiro. A justiça, se é que nessa época pode ainda existir justiça, mandará prender os cidadãos que não são capazes de ganhar dinheiro. Tua esposa, tua casta metade guardiã vigilante do seu lar e do seu cofre-forte, não será mais do que uma mulher conservada. Tua filha, inutilidade infantil, sonhará, desde o berço, que se vende por um milhão. E tu, menos poeta ainda do que és hoje, não acharás nada a dizer a respeito; não te arrependerás de nada. Esses tempos estão talvez bem próximos; quem sabe mesmo se já não chegaram, e se a grosseria de nossa natureza não é o único obstáculo que nos impede de apreciar o meio no qual respiramos!

Quanto a mim, que por vezes me sinto um profeta ridículo, perdido nesse mundo vilão, acotovelado pelas multidões, sou como um homem relaxado que só enxerga atrás de si os anos profundos da infância, e adiante, no futuro, uma tempestade que nada de novo contém - nem ensinamento, nem dor. Na noite em que roubei do destino algumas horas de prazer, arrastado em minha digestão lenta, esquecido – tanto quanto possível – do passado, contente do presente e resignado do futuro, embriagado no meu próprio sangue frio, orgulhoso de não ser tão baixo quanto os homens que passam na minha frente, disse a mim mesmo ao contemplar a fumaça do meu cigarro: “Que me importa onde vão essas consciências?”

Creio que acabei de entrar naquilo que as pessoas entendidas chamam de “prato” ou “aperitivo”. Por isso, deixarei estas páginas – porque quero datar minha cólera.


(Baudelaire)

Fonte: Fusées (publicado postumamente em 1897), feuillet 85.


Novo Álbum do Teatro Mágico: "A Sociedade do Espetáculo" - Será?


O novo álbum do Teatro Mágico chama-se: 'A Sociedade do Espetáculo'.

Triste coincidência? Ironia do destino? O mesmo título de um famoso livro, onde somos apresentados a uma sociedade que, saturada de mercadorias, arrebatou, finalmente,  o valor-de-uso dos nossos sentidos, já tão esgotados de não se entenderem entre si... ouve-se uma coisa, enxerga-se outra, apalpa-se uma terceira, e então, onde estamos?  Tivemos nossa percepção das coisas moldada à "imagem e semelhança do fetiche".

Noutras palavras, segundo o autor do livro em questão, já não temos mais certeza sequer sobre a existência efetiva do mundo físico, pois, entre nós e a "coisa", se coloca uma imagem portadora de conotações indefinidas, conteúdo qualquer que nunca vem à luz do dia (conteúdo sem forma), mas que, certamente, não é o conteúdo da coisa mesma - aliás, existiria algo mais anacrônico do que a velha... "coisa em si"?

O que existe, afinal, entre o seu corpo e uma lata de alumínio da coca-cola? Tudo, exceto seu corpo e a lata! Mas pode existir alguma coisa além do meu corpo e da lata que vejo? Aí é que está o problema, ou, mais precisamente, a razão de estarmos falando de um conteúdo sem forma: todo mundo sabe que entre nós e uma lata existe um terceiro elemento qualquer, intruso, que não sabemos bem o nome, mas que, no final das contas, pouco importa, desde que me faça feliz... 

Segundo Guy Debord (este o nome do autor), o "terceiro elemento" consitui-se, essencialmente, numa aparição visual. Noutras palavras, a construção social da imagem da coca-cola estampada no cara da lata é tão potente, mas tão potente, que produz felicidade.

Qual o segredo? Há dois lances: o primeiro é a necessidade de acrescentar valor ao produto, para além dele mesmo, num período em que a "simples" produção de mercadorias já não dá mais conta de satisfazer a necessidade de lucro do Capital. Trata-se de um esgotamernto estrutural, objetivo, que desloca a valorização para o nível simbólico.

Isto para não falar em termos de proporção: a coca-cola é uma entre tantas, que se pense, por exemplo, na produção de automóveis... Ou, noutras palavras: o que significa um esgotamento estrutural da produção de mercadorias a ponto de deslocar a valorização do valor para o nível "simbólico"? Sem meias palavras: significa que a sociedade tornou-se um imenso reservatório de objetos supérfluos. Mesmo assim, tem quem fale em "vida" no interior dessa engrenagem.

O segundo lance é mais ou menos óbvio: como a exploração da subjetividade, do nível "simbólico" conseguiu dar conta do problema? Como é possível a simples construção de um rótulo, com suas cores e tintas, movimentar e direcionar a vicência subjetiva das pessoas? Como se sabe, as necessidades humanas são construídas e desconstruídas, socialmente, no tempo e no espaço. Assim, o "lance" consiste em inundar a sociedade de imagens, por todos os lados.

Com o tempo, o "critério visual", elemento constitutivo dos valores reproduzidos (a "medida do que vale um homem"), naturaliza-se, infiltrando a psique, dirigindo as expectativas, dando forma para os annseios, a tal ponto que nos perguntamos: "existe algum sentimento, algum valor moral, algum conteúdo que não tenha um equivalente numa imagem qualquer?", ou melhor: "quantas são as imagens desprovidas de conteúdo? Mas que andam por aí a dizer o que somos?".

Enfim, tudo isso para dizer que o título do álbum do "Teatro Mágico", por incrível que pareça, segundo os integrantes do grupo, tem relação com a obra de Guy de Debord! Será? Vale a pena perguntar: não seria na verdade a emergência de uma "imagem" qualquer que salta do título? Observem: "sociedade do espetáculo". Assim, desde que funcione bem, trasmitindo a aparência de bem-pensante, não tem a menor importância o conceito que reivindica!

Aliás, é sabido que a obra de Debord foi apropriada acriticamente pela academia, ou seja, reproduziu-se em relação à obra o mesmo mecanismo socia que a obra descreve e revela. Tanto o Derbord quanto os estudiosos de sua obra, prevendo o perigo (por conhecerem muito bem, naturalmente, seu "objeto" de estudo), ressaltam claramente que é inútil falar da reprodução desenfreada de imagens no capitalismo tardio sem que isso implique numa critica radical da sociedade capitalista, ou seja, remetendo às contradições de base dessa ordem econômica. Teatro Mágico... Será? Até segunda ordem, é difícil não ser descrente!