O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Flores ao burguês..."Lixão", Cia do Latão - Canções de Cena II

"Sobra de garrafa fresca
resto de patês azuis
caco de carniça velha
flores ao burguês" 


"Lixão", Cia do Latão - Canções de Cena II from Danilo J. Santos on Vimeo.

CEROL



Curta metragem do Coletivo Cinefusão, realizado em 2009.


Pedro é um empregado do setor de informática de uma empresa decadente. Ao tentar tomar a frente em problemas de seu setor, acaba sendo responsabilizado pelos mesmos. A partir daí, são desencadeados outros conflitos em sua vida.

Elenco
Paulo César Pereio (Ralph)
Diego Tresca (Pedro)
Sulivam Sena (RH)
Luciana Caruso (mulher de Pedro)
Rafael Graciola (homem alto)
Sylvia Pradro (secretária)
Gabriel Nunes (menino)
Rogério Lima (funcionário)
Ruth Melchior (funcionária)
Aurélio Dias (funcionário)
Palhaço Jovem Senhor (funcionário)
Vera Reis (funcionária)
Heber de Souza (funcionário)


Roteiro e Direção: Bruno Mello Castanho
Direção de fotografia: Rogério Che e Heber de Souza
Direção de arte: Mayara Pattoli
Montagem: Caetano Grippo
Produção: Cláudia Capelini e Luciana Coelho
Assistência de direção: Danilo Santos e Erick Martorelli
Edição de som: Rogério Che
Som direto: J. E. Velludo
Colaboração no roteiro: Adriana Beatriz Barbosa
Finalização: Rogério Che
Montagem adicional: Bruno Mello Castanho e Rogério Che
Produção de elenco: Renato Jabor
Assistência de arte: Adriana Beatriz Barbosa e Roberta Reis
Assistência de produção: Valdir Frota
Assistência de câmera: Alice Andrade Drummond
Fotografia Still: Carina Herrera e Márcio Gonçalves
Making of: Alice Andrade Drummond e Roberta Reis
Consultoria de pipa: Gabriel Nunes


Música - "Diz aí, Moleque!", de Guilherme Rampazo (Sombaguá)

"Aos que virão depois de nós"




É verdade, eu vivo num tempo sombrio!
Uma palavra sem malícia é sinal de tolice.
Uma testa sem rugas é sinal de indiferença.
Aquele que ri
Ainda não recebeu a terrível notícia.

Que tempos são esses, quando
Falar sobre árvores é quase um crime
Pois significa silenciar sobre tanta injustiça?
Aquele que atravessa a rua tranquilo
Já está inacessível aos amigos
Que passam necessidades?

É verdade: eu ainda ganho bastante para viver.
Mas acreditem: é por acaso.
Nada do que faço
Me dá o direito de comer quando tenho fome.
Estou sendo poupado por acaso.
(Se a minha sorte me deixa, estou perdido.)

Me dizem: come e bebe!
Fica feliz por teres o que tens!
Mas como é que eu posso comer e beber
Se a comida que como, tiro de quem tem fome?
Se a água que bebo, faz falta a quem tem sede?
Mas mesmo assim, eu como e bebo.

Eu queria ser um sábio.
Nos livros antigos está escrito o que é a sabedoria:
Se manter afastado dos conflitos do mundo
E passar sem medo
O curto tempo que se tem para viver;
Seguir seu caminho sem violência;
Pagar o mal com o bem;
Não satisfazer os desejos, mas esquecê-los.
Sabedoria é isso!
Mas eu não consigo agir assim!
É verdade, eu vivo num tempo sombrio!

Eu vim para a cidade no tempo da desordem
Quando a fome reinava.
Eu vim para o convívio dos homens no tempo da revolta
E me revoltei ao lado deles.
Assim se passou o tempo
Que me foi dado viver sobre a Terra.

Eu comi o meu pão no meio das batalhas.
Para dormir, eu me deitei entre os assassinos.
Fiz amor sem muita atenção
E não tive paciência com a Natureza.
Assim se passou o tempo
Que me foi dado viver sobre a Terra.

No meu tempo as ruas conduziam ao lodo,
E as palavras me denunciavam ao carrasco.
Eu podia muito pouco, mas o poder dos patrões
Era mais seguro sem mim, espero.
Assim se passou o tempo
Que me foi dado viver sobre a Terra.

As forças eram limitadas.
O objetivo permanecia a uma longa distância.
Era nitidamente visível, mas para mim
Quase fora do alcance.
Assim se passou o tempo
Que me foi dado viver sobre a Terra.

Vocês, que vão emergir
Das ondas em que nos afogamos.
Pensem, quando falarem das nossas fraquezas,
Dos tempos sombrios de que tiveram a sorte de escapar.
Nós existíamos através das lutas de classes,
Mudando mais de país do que de sapatos,
Desesperados quando só havia injustiça
E não havia revolta.

Nós sabemos:
O ódio contra a baixeza
Também endurece o rosto;
A cólera contra a injustiça
Também faz a voz ficar rouca.
Infelizmente nós,
Que queríamos preparar o terreno para a amizade,
Não pudemos ser, nós mesmos, bons amigos.

Mas vocês, quando chegar o tempo
Em que o Homem seja amigo do Homem,
Pensem em nós
Com simpatia.


Brecht

Oficina do Ator Antropofágico


“Tornou-se bastante comum o teatro ser apontado enquanto valioso aliado da educação, a freqüentação a espetáculos ser indicada, recomendada como relevante experiência pedagógica. (…) Que outras respostas vêm sendo concebidas na tentativa de compreender a experiência proposta ao espectador enquanto atividade educacional? Seria possível à arte teatral desempenhar tal tarefa sem apagar ou esmaecer a sua chama artística? O teatro pode ser, de fato, educador enquanto arte?” Flávio Desgranges
Parte fundamental, tanto no processo de pesquisa da Antropofágica quanto na formação artística e social do coletivo, a Oficina do Ator Antropofágico representa a comunhão entre a Antropofágica e novos indivíduos participantes. A oficina representa o diálogo constante entre o já constituído e o devir, ou seja, uma garantia de que as idéias, os conceitos e os princípios sejam constantemente revistos, debatidos, repensados. Trata-se de uma renovação celular cara aos organismos para que não adoeçam, não se tornem caquéticos, nem se estagnem no tempo e no espaço.

Sabendo que o teatro constitui importante dispositivo sócio-educacional, seja atendendo à necessidade simbólica inerente ao ser humano, seja operando reflexões e propiciando experiências de ordem filosófica, estética ou política no plano da atuação e da criação efetivas, entendemos que compartilhar enriquece todo o fazer teatral. Para os que chegam, a oportunidade de tomar conhecimento e se alimentar dos exercícios, dos jogos teatrais, das músicas, dos rituais, dos textos, da criação. Para os que já estão, a doação, o alimento renovado e revisitado, a simbiose, a devoração.

Partindo do pressuposto que aquele que assiste a um “espetáculo” não necessariamente seja apenas um espectador (sujeito passivo), mas sim um agente participativo que preenche lacunas, que se vê tomado por novas sensações – e a partir delas pode sofrer e realizar transformações – que reflete e reage perante aquilo que vê e sente ao longo de uma peça, acreditamos que haja um “alargamento” de tais percepções quando o indivíduo está a par do material subjacente à obra. E esse envolvimento do sujeito na atividade teatral, não só no produto, mas no processo, parece-nos um elemento-chave para a “dessacralização” e democratização do teatro.

No Brasil Império, eram os tropeiros, os homens livres na ordem escravocrata. Na contemporaneidade nosso olhar se volta para os carroceiros. E na correlação entre as épocas, no nosso processo, surgem os “antropotropeiros”, livres em medida restrita, na tentativa de construção de uma liberdade coletiva. Na construção e na confecção das nossas Karroças Kantorianas e Brechtianas. O arroz carreteiro e o feijão tropeiro no encontro histórico de lutas e de sonhos.

Considerando que o teatro deva ser compartilhado com indivíduos das mais diferentes esferas socio-econômicas e de diferentes graus de formação e referenciais culturais distintos, a realização de oficinas nos espaços públicos surge como possibilidade de inserir o indivíduo no âmbito do processo (e não somente do produto) teatral, permitindo que ele tenha contato com as leituras, os jogos e exercícios, os conceitos teóricos, a dinâmica das cenas e os contextos históricos e políticos que, por vezes, podem passar despercebidos quando se tem acesso apenas ao espetáculo pronto.
As oficinas serão realizadas em pontos distintos, todas em locais públicos.

Objetivos

  • Propiciar o contato com os princípios teórico-estéticos que compõem o processo de pesquisa da Antropofágica (núcleo ATP, núcleo de música e Projeto Y);
  • Ampliar o contato com o teatro para além do espetáculo, formação de público, ênfase no processo de criação e de pesquisa coletivas;
  • Buscar elementos ao longo das oficinas que contribuam no processo de pesquisa e elaboração do espetáculo.

Metodologia e estrutura

As oficinas serão ministradas por integrantes da Antropofágica nos seguintes locais: Espaço Cultural Tendal da Lapa, Escola Estadual Almirante Marquês de Tamandaré, Escola de Samba Rosas de Ouro.

As oficinas apresentam elementos comuns que serão trabalhados respectivamente por seus responsáveis durante o período determinado. No entanto, tais pontos comuns apresentam-se apenas como possibilidades que serão adaptadas conforme as necessidades e anseios de cada grupo em formação. Dependendo dos objetivos e das experiências vivenciadas em cada comunidade, tais proposições sofrerão alterações, de acordo com as exigências do processo coletivo.

Os pontos iniciais em comum são: exercícios corporais, jogos teatrais, proposições artísticas da Antropofágica, treinamentos musicais e estudos teóricos.

Leituras

Referencial teórico “básico” da Antropofágica (manifestos e peças de Oswald de Andrade; textos e obras de Bertolt Brecht); trechos de textos da pesquisa sobre o Brasil Império, tanto históricos como os de cunho estético (Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda, Celso Furtado, Tadeusz Kantor etc.); textos e obras que surgirem como propostas das oficinas.

Música e antropofagia (em cada oficina haverá algumas aulas ministradas especificamente pelo núcleo de música da Antropofágica); roda de conversas (reflexões, trocas, debate e embate de idéias antes e depois das atividades práticas e teóricas).

Além dos responsáveis pelas atividades e das intervenções do núcleo de música, haverá um integrante responsável pela documentação audiovisual das aulas (Haroldo Stein). Todas as oficinas terão acompanhamento e orientação pedagógica dos coordenadores Thiago Reis Vasconcelos e Mei Hua Soares.

Informações adicionais

Espaço Pyndorama
Horário: Segunda-feira às 19h
Endereço: Rua Turiaçu, 481 – Barra Funda
Inscrições: 3871-0373
Faixa etária: Acima de 16 anos.

Espaço Cultural Tendal da Lapa
Horário: Terça-feira às 14h
Endereço: Rua Guaicurus, 1100 – Lapa
Inscrições: 3862-1837 ou 3871-0373
Faixa etária: Acima de 14 anos.

Escola Estadual Almirante Marquês de Tamandaré
Horário: Terça-feira às 14h
Endereço: Rua Jacaré-copaíba, 33 – Freguesia do Ó
Inscrições: 3871-0373
Faixa etária: Acima de 14 anos.

Escola Estadual Professor Cândido Gonçalves Gomide
Horário: Terça-feira às 14h
Endereço: Rua Avelino Zanetti, 50 – Pirituba
Inscrições: 3871-0373
Faixa etária: Acima de 14 anos.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

São Bernardo (Morro Velho)



“A literatura confirma e nega, propõe e denuncia,
apóia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos
dialeticamente os problemas. (...) mas convém lembrar que ela
não é uma experiência inofensiva, mas uma aventura
que pode causar problemas psíquicos e morais, como acontece
com a própria vida, da qual é imagem e transfiguração”

(Antonio Candido – O Direito à Literatura)


São Bernardo (1934), de Graciliano Ramos, nas palavras de João Luiz Lafetá, “tem a força de uma tragédia rural brasileira”. Não precisaríamos da literatura para saber que o meio rural, no Brasil, constitui-se inteiramente sob o signo da tragédia. Mas a consciência longínqua da devastação não permite avaliar o alcance de suas raízes subjetivas. Nesse sentido, o livro de Graciliano Ramos escava, escarafuncha terreno fértil.
 
Trata-se de “corporificar” (1) a brutalidade. O corpo, no caso, tem nome: Paulo Honório - personagem principal da trama. Podemos, então, conhecer as profundezas sombrias de um homem, sobrevivendo num meio historicamente delimitado. Força expressiva que revela o império da força bruta. Ou ainda nas palavras definitivas de Lafetá: “a objetividade do estilo [que] desvela o mundo reificado”.

Não raro, o estilo apurado de Graciliano Ramos sugere uma espécie de recessão criativa. A clareza da linguagem, entretanto, não é valor abstrato. Trata-se de uma visão amadurecida da vida que se traduz em técnica narrativa (2). De outro lado não podemos confundir com a velha “linguagem das coisas”: não se trata de puro mimetismo. Se assim fosse, exigiríamos o fim da criação artística – a imitação “pura”, como sabemos, é anticriativa.

Expressividade do estilo que, por conseguinte, não contradiz a economia verbal. Dizer, também, que se completam, ainda é pouco. Trata-se da mesma coisa: o estilo apurado em Graciliano é resultado nítido do labor incansável da criação, à maneira de Machado. Conquista da clareza ideal, portanto, é aqui sinônimo inequívoco de amadurecimento literário.

A título de exemplo, assinalo um mecanismo no mínimo interessante: o prazer da leitura aumenta na medida em que o conteúdo do romance se torna mais brutal. Do mesmo modo, correlato, quanto mais Paulo Honório se tranca e afunda em contradição, mais solta corre a narrativa – alargando suas virtualidades. Podemos dizer, nesse sentido - e para todas as medidas - que brutalidade, no caso, é eufemismo.

Assim, a prosa de São Bernardo vence o leitor por nocaute. É Paulo Honório, esmigalhando seus “adversários”. Tudo, desde as palavras eleitas, até a brutalidade sempre renovada e inesperada dos diálogos, parece lucidamente tensionado no sentido de expor a monstruosidade humana (3). Os personagens, a começar por Paulo Honório, revelam-se figuras sensíveis, numa prosa com raro poder de humanização. 

A violência perpetuada

O procedimento estilístico é a chave dos segredos envolvidos na construção do romance. A habilidade do escritor chega até nós pela violência de Paulo Honório. Onde estamos? Quais os segredos literários do feito? Sua fatura... A chave, no entanto, está ao alcance da mão: é pelo conteúdo da obra que se manifesta a força do estilo.

Foram dadas indicações parciais. De todo modo, podemos dizer: São Bernardo é uma sucessão esmagadora de fatos. Em ritmo acelerado, vemos passar toda a vida de Paulo Honório sob nossos olhos, narrada e rememorada por ele mesmo. Ascensão e queda: trabalhador braçal; fazendeiro rico; solidão e loucura. Tudo, por assim dizer, em linha reta.

A velocidade da ação talvez se explique por se tratar de memórias. Paulo tenta justificar-se nesse sentido. Diz, por exemplo, que reduziu o passado ao mínimo necessário. Essencial, aqui, é sintoma de violência e incompreensão; o próprio narrador admite, em primeiríssima pessoa. Restaria, pois, algo mais a dizer? Haveria algo mais na vida de Paulo Honório que não se confunda com a história de sua propriedade, a fazenda São Bernardo? Difícil. Paulo Honório, no fundo, é São Bernardo.

Nesse sentido, o ritmo acelerado do enredo é efeito da técnica rajada de Graciliano. Narrado em primeira pessoa, como foi dito, a notícia dos efeitos produzidos pela violência de Paulo Honório nos chega pela boca do próprio agressor. É o ímpeto destrutivo que não pode conter-se diante de si mesmo; ao contrário: alimenta-se dos restos humanos que deixa no caminho. Tudo reforçado ao extremo: obsessão, baixa auto-estima, instinto de propriedade, ciúmes, etc., chegando às raias do delírio.

Paulo Honório é um homem engasgado. Consciência, ou bomba-relógio? Bestialógico, sem dúvida, é todo sentimento de propriedade. Como um balão, infla, ao deparar-se com a fragilidade humana de suas vítimas. Não pode suportar que os empregados notem seus equívocos: insatisfeito com si próprio castiga-os severamente. Vejamos, pois, como funciona no romance esse mecanismo psicológico de perpetuação da violência, numa passagem em que Paulo Honório espanca um empregado:

    - Acabei o serviço, seu Paulo, gaguejou Marciano, perfilando-se.
    - Acabou nada!
             - Acabei, senhor, sim. Juro por esta luz que nos alumia.
    - Mentiroso. Os animais estão morrendo de fome, roendo a madeira.

Marciano teve um rompante:

    - Ainda agorinha os cochos estavam cheios. Nunca vi gado comer tanto. E ninguém agüenta mais viver nesta terra. Não se descansa.

Era verdade, mas nenhum empregado me havia ainda falado de semelhante modo.

    - Você está se fazendo de besta, seu corno?

Mandei-lhe o braço ao pé do ouvido e derrubei-o. Levantou-se zonzo, bambeando, recebeu mais uns cinco trompaços e levou outras tantas quedas. A última deixou-o esperneando na poeira. Enfim ergueu-se e saiu de cabeça baixa, trocando os passos e limpando com a manga o nariz, que escorria sangue. Estive uns minutos soprando.

Coisificação Oculta?

Havíamos dito que a história de Paulo Honório não ultrapassa os limites espaciais, e principalmente temporais, de sua propriedade, a fazenda São Bernardo. Ao contrário do que sugere o narrador, os fatos de sua vida encerram-se, efetivamente, num apanhado de socos, ponta-pés e variantes. Mas nem por isso deixam de existir fatos ocultos, acessíveis por dedução, numa rede de violências aludidas que se espalham ao longo da narrativa.

Informações ambíguas, possivelmente dispensáveis ao narrador (mas imprescindíveis à narrativa), chegam à luz em função do mecanismo assinalado de perpetuação da violência. É possível vislumbrar, no acontecido, sua gênese. Podemos deduzir outra infinitude de brutalidades imbricadas no tronco dos fatos narrados por Paulo Honório.

O mecanismo estende-se para o interior da personalidade, revelando-se elemento constitutivo, e ao mesmo tempo autofágico: força que lhe dá forma no presente, mas que o deforma irremediavelmente no futuro. Incontrolável, Paulo Honório é obrigado a reeditar o pacto com a destruição, devido ao caráter irreversível das violências já praticadas. Do contrário, o passado perderia completamente o sentido, pondo em risco o núcleo de sua personalidade, corroída sob o efeito devastador da gratuidade – como ocorre, efetivamente, ao final da obra. 

A lógica da autoridade reiterada, que fornece unidade à personalidade de Paulo Honório, inscreve-se no próprio arranjo verbal de suas memórias. Matéria – passado brutal - que se impõe como fratura exposta: modus operandi do qual não se pode esquivar, sob pena de tornar-se absolutamente inverossímil. O passado é composto de uma dinâmica própria. Noutras palavras, a mesma força que impeliu Paulo Honório a uma vida de excessos, impede-o agora de sonegar ou ignorar os fatos.

Assim é que descobrimos, por exemplo, um “segredo” do narrador, em relação à Rosa, esposa de Marciano, aquele mesmo que fora espancado:

“O Marciano conheceria as minhas relações com a Rosa? Não conhecia. Tive sempre o cuidado de mandá-lo à cidade, a compras, oportunamente. E talvez não quisesse conhecer. Também, se poderia admitir que fosse dotado de pouca penetração”. [grifo meu].
                                   
Tem-se a impressão de uma espécie de personalidade tentacular. Não sendo capaz, a princípio, de vigiar e dominar a multiplicidade de seres e coisas a seu redor, o impulso interior que o move parece suprir a ausência de tentáculos. Era capaz, e o fazia conscientemente, de aniquilar a existência alheia por todos os lados, cercando-a, e adiantando-se a prováveis formas de resistência.

Outro exemplo é Padilha, ex-proprietário da fazenda São Bernardo. Atuando em partes sensíveis de seu caráter – vícios, mulheres, bebidas, etc. - Paulo Honório envolve-o aos poucos, e, num piscar de olhos, toma-lhe fazenda e cuecas. Quando o leitor dá conta, na metade do romance, a imagem de Padilha impressiona: o antigo proprietário tornou-se simples agregado, semi-escravizado, vivendo à sombra de um gigante espezinhador.

São personagens que ficam no caminho, aniquiladas, enquanto aumenta a sensação de trote, pois somos obrigados a deixá-los, também nós leitores: o protagonista é o condutor, tornando-nos íntimos dos arrancos de sua sensibilidade embotada.        
                                           
Lirismo, termo de comparação?   
                                      
É ainda no domínio das implicações profundas derivadas do narrador em primeira pessoa que tentarei estabelecer a comparação com uma canção de Milton Nascimento, “Morro Velho”. De fato, num romance de cunho social tão latente e corrosivo, pareceria absurdo falar em lirismo. (Nas palavras de Otto Maria Carpoux, todos os romances de Graciliano são verdadeiras “tentativas de destruição”).

É importante dizer, no entanto: lirismo, aqui, não se confunde com moral. O romance de Mestra Graça (como era chamado Graciliano entre amigos) é magistral como realização literária – único ponto que interessa.  O equilíbrio interno - vida palpitante da forma - é a beleza regeneradora do conteúdo. Sem dúvida, há qualquer coisa de beleza monumental na capacidade de expor artisticamente o sumo profundo do real.

A questão que se coloca é a seguinte: haveria lirismo em São Bernardo enquanto exaltação de aspectos humanos da realidade exposta? À luz da canção de Milton Nascimento poderíamos vislumbrar, talvez, essa dimensão de apelo em São Bernardo. Adianto: embora conduzido em primeira pessoa, o leitor não fica completamente indiferente aos sofrimentos gerados por Paulo Honório. O distanciamento agressivo não cancela a identificação. Ao contrário, o ponto de vista das vítimas retorna com força, situando-se no ponto menos esperado: na própria consciência de Paulo Honório.

Assim, o aniquilamento total do outro é, dialeticamente, sua afirmação suprema na carne do agressor. Não se trata de relativizar o jogo da dominação (afinal de contas, a morte não é virtual). Por outro lado, aceitar simplesmente a hipótese do esmagamento absoluto, sem resíduos que indiquem probabilidade mínima de uma restituição do outro, além de incompreensão dos mecanismos de reprodução da violência, pode resultar em identificação sádica com o ponto de vista do agressor.

Cobrança que, de qualquer modo, inexiste. Ecoa suspensa, porém ensurdecedora, na própria construção do romance, a voz dos oprimidos. O procedimento é relativamente simples: o artista observa e analisa as formas sociais pela qual se revela o ímpeto destrutivo de aniquilamento do outro. Compreendido em profundidade, os anseios, as palavras, os gestos, etc., são absorvidos pelo processo criativo, a ponto de fundamentar a técnica do autor.

Logo se vê: não se trata de um simples manejo de fatos, isto é, criação ou reprodução simples da violência banalizada. Há o elemento subjetivo, aspecto mediador da ação objetiva, como na própria realidade: a violência existe muito antes de manifestar-se objetivamente. Ou, noutras palavras: é continua, porquanto nem sempre objetiva.  O forte em São Bernardo não são os atos e palavras de Paulo Honório, mas o “pensamento” e as obsessões íntimas que o sufocam, tornando a violência absolutamente irreprimível.

Razões, justificativas e argumentos repetitivos, impulsos cegos, etc., irradiadores da morte, engendram-se desde o interior mais fundo da alma. É no diálogo de Paulo Honório consigo mesmo que observamos a impossibilidade última de supressão definitiva do outro. Referência negativa, os demais seres humanos a seu redor não podem desaparecer de seu horizonte consciente, ao contrário: crescem como gigantes perturbadores à medida que tenta convencer-se de sua insignificância.

É o ponto de inflexão da história, quando as vítimas revelam-se virtuais protagonistas. Existiria São Bernardo sem o braço dos trabalhadores? Paulo Honório não os pode remover do espaço, tanto quanto de sua consciência, sob pena de falir nos negócios, pondo em risco sua sanidade.

***

A bela canção de Milton Nascimento exemplifica o argumento. Narrada em terceira pessoa, conta a história da amizade entre dois garotos (“filho de branco, e do preto”). Distancia pela qual o narrador pode expor o conjunto dos aspectos que constituem a relação. Ora no branco, ora no preto, o narrador se identifica incessantemente com o ponto de vista dos personagens da canção:

No sertão da minha terra
Fazenda é o camarada que ao chão se deu
Fez a obrigação com força
Parece até que tudo aquilo li é seu.

O afastamento do ponto de vista de ambos - franca abertura para o lirismo – ocorre, sobretudo, para exaltar-se aspectos naturais do meio:

Só poder sentar no morro
E ver tudo verdinho
Lindo a crescer

Mas, logo adiante, contrastando com o sentimento de igualdade suscitado pelas imagens do meio, descobre-se, aos olhos do ouvinte, a lei do privilégio (branco):

Orgulhoso camarada
De viola em vês de enxada

Contraposição evidente de planos: de um lado a amizade e a beleza da terra (igualdade); de outro, direito, a diferença de classe, que é (des) privilégio de gozo (desigualdade). Em certo momento, então, a ilusão - chave-mestra, quem sabe, da canção:

Pela plantação adentro
Correndo os dois meninos
Sempre pequeninos

O lado direito vence. A construção da música, desde a melodia (violão de abertura), que traduz perfeitamente o ponto de vista dramático do trabalhador – e da amizade destruída pela lei da desigualdade combinada -, até a letra, alimentada pela tensão da dominação alternada, comove e faz sentir, liricamente, a derrota do lírico.   

Trata-se de uma oposição - no romance de Graciliano a voz que narra é a do privilégio. Aproximação rasa. O interesse reside na apreensão dos mecanismos de perpetuação da desigualdade, acessíveis pela forma artística que os penetra - elemento construtivo própria obra.

Em ambos os casos, enfim, observa-se nos elementos formais (posição do narrador; escolha das palavras; entonação dos diálogos; melodia; ritmo da narrativa; etc.) quando bem articulados, permitem conhecimento profundo – muitas vezes intuitivo - da realidade histórica.


Notas:

1 – “Paulo Honório é modalidade de uma força que o transcende e em função da qual vive: o sentimento de propriedade (...) S. Bernardo é centralizado pela irrupção duma personalidade forte, e esta, a seu turno, pela tirania de um sentimento dominante. Como um herói de Balzac, Paulo Honório corporifica uma paixão, de que tudo mais (...) não passa de variante”. (Antonio Candido, Ficção e Confissão. Rio, José Olympio, 1956, p. 25 e 30).

2 - Bakhitn, refletindo sobre a relação do autor com sua personagem (herói) define do seguinte modo o amadurecimento da visão de mundo: “a reação global ao herói [por parte do autor] é assinalada por uma posição de princípio, produtiva e criadora”. E generaliza, a seguir: “De uma maneira geral, uma relação assinalada por uma posição de princípio é produtiva e criadora”.  

3 – Antonio Candido, comentando os romances em primeira pessoa de Graciliano Ramos, diz: “a série de romances escritos em primeira pessoa – Caetés, S. Bernardo, Angústia – constituem essencialmente uma pesquisa progressiva da alma humana, no sentido de descobrir o que vai de mais recôndito no homem, sob as aparências da vida superficial. Poderíamos dizer, usando linguagem dostoievskiana, que essa pesquisa tenta descobrir o homem subterrâneo, a nossa parte reprimida, que opõe a sua irredutível, por vezes tenebrosa singularidade, ao equilíbrio padronizado do ser social”. (Antonio Candido, Os Bichos do Subterrâneo, Tese e Antítese. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1967, p. 97).

João .

Ciclo de dramaturgia: "A luta de classes não existe"

Numa roda de dramaturgia, onde se debatia o texto "Bella Ciao" de Luís Alberto de Abreu, percebia de maneira muito clara, o quanto somos tomados muitas vezes não só pela aparente calamaria dos ventos plurais da pós-modernidade, mas também por uma espécie de prazer pela barbárie, traduzida algumas vezes como neutralidade.

Claro, não posso dizer que, por vezes, não pareço tomado, pela posição politica que acredito e analiso como coerente no mundo em que vivemos - Até porque não conseguir analisar, no caso, uma obra de arte por conta do ponto de vista  ideológico, não é reafirmar sua posição, mas apenas mostrar sua incapacidade de analisar, simples assim.

Nos resta, é claro, o pensamento crítico - distanciamento, análise, argumento, tese, aproximação e posicionamento.

Ainda temos um medo danado do tal "posicionamento". Tema muito discutido inclusive nesta roda, onde muitos ainda insistem que a neutralidade de um dos personagens não é um posiocionamento, e se agarram nela, sob a equivocada ideia de "não estarem levantando bandeiras" e isso "é bom".

O problema é politico: ideológico, medo que assumo ter de me ver tomado cegamente pelo que analiso como coerente politicamente e perder a capacidade, inclusive crítica, de analisar conjunturas que se operam por outras chaves que não "as minhas", mas que naqueles que se dizem neutros, o mesmo problema aparece, contudo, sob a ideia de que suas concepções, muitas vezes, criadas em suas mentes, partindo de intuições e concepções ultra-individuais, são corretas, menos panfletárias, e mais "humanas".

Bella Ciao, assim como várias outras grandes obras de uma arte materialista, entende o mundo como dividido em classes sociais, e o estetiza, e em momento algum aponta para uma ideia de comunhão, ou de conflitos internos e inevitáveis dos personagens.

Me parece que por termos perdido a noção não só de humanidade, mas de perdermos também a capacidade de entender que a politica - todos os procedimentos relativos à pólis - é um campo vasto de exploração, reflexão e ação artistica, humana, nem um pouco menor do que outro - quiçá seu exato oposto -, mas que para trabalhar nela, sobre ela - e o que julgo de maior valor no tempo em que vivemos - é necessário estar nela.

Talvez, o problema ainda seja que a possibilidade de criarmos um mundo numa folha de papel branca seja exatamente tão prazerosa e eficaz quanto um analgésico.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Um dia, no livro "Textos Andinos", escrevia Gabriel García Márquez:

"O cinema pelo cinema

O temor de que o cinema se converta definitivamente numa arte tributária da literatura se agravou no atual mês por sucessivas e  às vezes simultâneas apresentações de filmes baseados em peças literárias. Vários exemplos: A um passo da eternidade, México de meus amores, O Disfarce da solidão, versões cinematográficas dos romances: Ingênua até certo ponto, Leito nupcial, Julio César, baseados em peças teatrais. Isto sem mencionar a reestréia de Electra de Eugene O`Neill, e as projeções privadas de Senhorita Júlia, com base na conhecida peça teatral em um ato de Strindberg, e Las tres prefectas casadas, que é uma adaptaçãoda peça de Alejandro Casona, feita sem muito esforço nem originalidade por Mauricio Magdalenoe José Revueltas.

A conclusão parece evidente: dia a dia se restringe a originalidade  temática do cinema e se fortalece ampla e lamentavelmente sua dependência de outros gêneros com os quais o verdadeiro cinema, o cinema puro, e autêntico, pode ter elementos e até interesses comuns, mas aos quais não deve sacrificar seus elementos próprios.

A crise de roteiros originais - que é realmente uma crise de roteiristas de cinema - só deve ser considerada como uma crise do cinema. Uma crise diante da qual não se conformam os verdadeiros cineastas, mesmo que seja resolvida com algo tão respeitável e tão semelhante ao cinema como o teatro fotografado ou o romance relatado em imagens falantes."

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

"O Tao do Marxismo"



(Resenha de Sergio de Carvalho publicada na Folha de São Paulo, 27.02.2000, Caderno Mais, p.5-24, quando do lançamento do livro.)

Certos pensamentos são como os burocratas, teriam que possibilitar a produção, mas, ao invés disso, eles a dificultam. Essa observação de Brecht se refere a tudo o que “O Método Brecht”, de Fredric Jameson, não faz: não se serve de generalidades, não proclama empecilhos, não foge do problema, não hiperestima o estágio atual do capitalismo.

É um trabalho realmente útil porque consegue dar respostas afirmativas à pergunta sobre a utilidade contemporânea de Brecht (1898-1956) e sobretudo porque desmascara um certo comportamento paralisante da crítica de arte atual, presente tanto na despolitização diversiforme dos pós-modernistas multiculturalistas (que, no fundo, escrevem a serviço de uma visão política) como também presente no rigorismo de outros críticos mais lúcidos, que, no compasso da dialética negativa, parecem andar mais interessados no tema do esvaziamento da esquerda do que em realizar a passagem disso para o projeto de um caminho possível para uma sociedade melhor.

O ensaio de Jameson é útil porque examina o procedimento artístico de Brecht do ponto de vista de sua praticabilidade. Filia-se assim ao melhor da tradição crítica brechtiana, não a dos parafraseadores de aspectos isolados, mas a daqueles que tentam reconhecer na obra do poeta alemão um grande processo – o que Jameson chama de “método” – em que cada ato artístico é uma operação concreta que se dá em relação de interlocução momentânea e projetiva e sem que a análise deixe de assumir que ela própria também se inscreve num momento histórico.

Foi nesse sentido que Walter Benjamin desenvolveu o conceito de “produtor” e que Bernard Dort falou em um “sistema” e que José Antonio Pasta Jr. discutiu a classicidade antiburguesa de Brecht como um “trabalho”, operação em que teoria e prática se sintetizam, num estudo, diga-se de passagem, excelente e que chega a observações muito semelhantes às de Fredric Jameson.

O “método” brechtiano não se desenvolve, portanto, do lado de fora da obra, mas sim a organizando e sendo organizado pela materialidade dinâmica da dramaturgia, dos escritos teóricos e da atitude artística em relação aos meios de produção. Numa passagem, Jameson compara o “método” a um manual de mecânica popular, imagem que sugere tanto o antiformalismo dos procedimentos como seu intuito de uma pedagogia destinada a produtores (e não a consumidores) que concebe os espectadores como “atores” no sentido mais original do termo.

O mais inesperado, no entanto, é o modo como apresenta o específico da dialética brechtiana, que, sem abrir mão das categorias tradicionais do materialismo histórico, parece ser movida por uma espécie de “metafísica” chinesa, resultando num “Tao marxista” que atua a partir de contradições não só históricas, mas poéticas, em que o primado do social e do compromisso político se sintetiza em uma ética produtiva.

Com fragmentos do “Me-Ti/Livro das Reviravoltas”, de Brecht, Fredric Jameson demonstra a “operação” brechtiana em três planos: na linguagem, nos modelos narrativos e no modo de pensamento. Estuda o provérbio como padrão de linguagem, entendido como forma portadora da luta de classe, como síntese de experiência dos explorados, visão próxima à dos modos de produção agrários, a que Brecht conjugará os ritmos de tecnologias modernas, como o rádio.

Estuda também o gosto brechtiano pelas formas narrativas que exigem juízos sobre contradições, como a parábola e o “caso” jurídico, concebidas como “gestus” na medida em que concretizam processos sociais característicos. Jameson estuda, em última instância, uma doutrina do estranhamento possibilitadora de uma práxis.

Para quem tomou ao pé da letra a opinião de que o “estranhamento” brechtiano perdeu a eficácia nas atuais circunstâncias históricas porque seu alinhamento automático com o socialismo se tornou ideologia, Jameson propõe um olhar revitalizador. O estranhamento, como técnica de objetualização das formas, é des-objetualizador quando instaura um processo de aprendizagem da história, quando propicia a intervenção conceitual nos acontecimentos.

O crucial desse processo não é oferecer uma teoria positiva das consequências (o melhor do teatro brechtiano está no desvendamento cômico do que não devia ser essa sociedade), mas é sobretudo não evitá-las. Evitar as consequências transformadoras é que se constitui em ideologia. E sem uma meta – que continua a ser a construção do socialismo – o “método” Brecht não faz sentido, e a arte política está confinada à moralidade e ao desespero. Numa época em que a atividade consequente não está na ordem do dia e “o destino parece novamente desconectado da história”, a ativação brechtiana propõe a retomada de um trabalho coletivo, no mínimo o de superar a “idéia de uma situação global que não pode ser mudada”.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Nova produção do Coletivo Cinefusão "A mais perfeita União"

Brahms, Stravinsky, Dilma, Kassab, capitalismo, republicanos, pinheirinho, cracolândia e direitos autorais...

Montado/dirgido por Danilo J. Santos
Imagens adicionais de Florêncio Guerra e Danilo J. Santos

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Pinheirinho

                                              Foto de Danilo J. Santos - Coletivo Cinefusão

Acima, Pinheirinho.

Muitos já devem ter lido sobre pessoas que estiveram lá, ou que moravam lá, e talvez tenham se aproximado do que  foi esse massacre, sim, massacre.

Ouvi isso de um dos companheiros do MST, respondendo à uma outra companheira que dizia que aquilo era um cenário de guerra: "Não, companheira, guerra não, massacre!"

Ter estado em Pinheirinho foi com certeza uma das coisas mais horríveis que já passei.

Cada passo que dava, cadernos de criança pelo chão, livros, roupas, sapatos, bonecas, alimentos.

Um homem disse que a primeira coisa que foi destruída era o espaço onde os moradores faziam suas assembleias.

Não trabalhei muito, não consegui.

A sensação de pisar naquele terreno de terra rachada, fumaça preta das coisas que ainda queimavam, os objetos das pessoas que ainda materializam de alguma forma suas presenças no espaço, era como vagar num grande cemitério.

Enquanto andava sozinho, lembrei de uma mulher que discutiu comigo sobre Pinheirinho e disse que nós - "esquerdistas intelectuais de merda" achávamos "que pobre queria ser salvo", e daí me enviou uma reportagem do jornal da record, algo sobre a população de pinheirinho ter problemas com algum tipo de liderança, dentro da própria ocupação.

Claro, não quero, sequer, procurar alguma razão no argumento de alguém que apoia este tipo de ação. O que acho interessante relatar é que quando fui aos alojamentos e vi a situação das pessoas - de fora, não quis entrar - percebi o quanto o nosso grau de desumanidade avança, não só quando apoiamos atitudes como este massacre, mas também quando junto a perda da capacidade de sonhar, amar, aprofundar nossas relações, pensamentos, perdemos também uma capacidade básica de raciocínio, aquela que nos permite entender que em qualquer tipo de aglomerado, coletivos, alguns tipos - e níveis, pois sonhamos que um dia possamos chegar a um grau muito maior de (r)evolução das capacidades humanas - de problema, na organização humanada, serão normais e correntes. Agora, usar uma mídia que é totalmente convivente ao massacre e mantenedora do status quo é burrice, e o mais alto grau de mesquinhosidade.

O cenário é muito pior, obviamente, do que escrevo e jamais conseguiria exprimir o que é aquilo, e nem como me sinto depois de um único dia lá.

Entre outras coisas, umas das coisas que mais me deixaram catatônico foi a reação de parte da classe média de São José dos Campos, durante o ato com mais de 3 mil pessoas, contra o massacre. Enquanto esperavam passar os manifestantes, alguns buzinavam, uma mulher tirava a mão do carro acenando para que saíssem da frente, entre outras coisas.

 Enfim...