O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

"O Tao do Marxismo"



(Resenha de Sergio de Carvalho publicada na Folha de São Paulo, 27.02.2000, Caderno Mais, p.5-24, quando do lançamento do livro.)

Certos pensamentos são como os burocratas, teriam que possibilitar a produção, mas, ao invés disso, eles a dificultam. Essa observação de Brecht se refere a tudo o que “O Método Brecht”, de Fredric Jameson, não faz: não se serve de generalidades, não proclama empecilhos, não foge do problema, não hiperestima o estágio atual do capitalismo.

É um trabalho realmente útil porque consegue dar respostas afirmativas à pergunta sobre a utilidade contemporânea de Brecht (1898-1956) e sobretudo porque desmascara um certo comportamento paralisante da crítica de arte atual, presente tanto na despolitização diversiforme dos pós-modernistas multiculturalistas (que, no fundo, escrevem a serviço de uma visão política) como também presente no rigorismo de outros críticos mais lúcidos, que, no compasso da dialética negativa, parecem andar mais interessados no tema do esvaziamento da esquerda do que em realizar a passagem disso para o projeto de um caminho possível para uma sociedade melhor.

O ensaio de Jameson é útil porque examina o procedimento artístico de Brecht do ponto de vista de sua praticabilidade. Filia-se assim ao melhor da tradição crítica brechtiana, não a dos parafraseadores de aspectos isolados, mas a daqueles que tentam reconhecer na obra do poeta alemão um grande processo – o que Jameson chama de “método” – em que cada ato artístico é uma operação concreta que se dá em relação de interlocução momentânea e projetiva e sem que a análise deixe de assumir que ela própria também se inscreve num momento histórico.

Foi nesse sentido que Walter Benjamin desenvolveu o conceito de “produtor” e que Bernard Dort falou em um “sistema” e que José Antonio Pasta Jr. discutiu a classicidade antiburguesa de Brecht como um “trabalho”, operação em que teoria e prática se sintetizam, num estudo, diga-se de passagem, excelente e que chega a observações muito semelhantes às de Fredric Jameson.

O “método” brechtiano não se desenvolve, portanto, do lado de fora da obra, mas sim a organizando e sendo organizado pela materialidade dinâmica da dramaturgia, dos escritos teóricos e da atitude artística em relação aos meios de produção. Numa passagem, Jameson compara o “método” a um manual de mecânica popular, imagem que sugere tanto o antiformalismo dos procedimentos como seu intuito de uma pedagogia destinada a produtores (e não a consumidores) que concebe os espectadores como “atores” no sentido mais original do termo.

O mais inesperado, no entanto, é o modo como apresenta o específico da dialética brechtiana, que, sem abrir mão das categorias tradicionais do materialismo histórico, parece ser movida por uma espécie de “metafísica” chinesa, resultando num “Tao marxista” que atua a partir de contradições não só históricas, mas poéticas, em que o primado do social e do compromisso político se sintetiza em uma ética produtiva.

Com fragmentos do “Me-Ti/Livro das Reviravoltas”, de Brecht, Fredric Jameson demonstra a “operação” brechtiana em três planos: na linguagem, nos modelos narrativos e no modo de pensamento. Estuda o provérbio como padrão de linguagem, entendido como forma portadora da luta de classe, como síntese de experiência dos explorados, visão próxima à dos modos de produção agrários, a que Brecht conjugará os ritmos de tecnologias modernas, como o rádio.

Estuda também o gosto brechtiano pelas formas narrativas que exigem juízos sobre contradições, como a parábola e o “caso” jurídico, concebidas como “gestus” na medida em que concretizam processos sociais característicos. Jameson estuda, em última instância, uma doutrina do estranhamento possibilitadora de uma práxis.

Para quem tomou ao pé da letra a opinião de que o “estranhamento” brechtiano perdeu a eficácia nas atuais circunstâncias históricas porque seu alinhamento automático com o socialismo se tornou ideologia, Jameson propõe um olhar revitalizador. O estranhamento, como técnica de objetualização das formas, é des-objetualizador quando instaura um processo de aprendizagem da história, quando propicia a intervenção conceitual nos acontecimentos.

O crucial desse processo não é oferecer uma teoria positiva das consequências (o melhor do teatro brechtiano está no desvendamento cômico do que não devia ser essa sociedade), mas é sobretudo não evitá-las. Evitar as consequências transformadoras é que se constitui em ideologia. E sem uma meta – que continua a ser a construção do socialismo – o “método” Brecht não faz sentido, e a arte política está confinada à moralidade e ao desespero. Numa época em que a atividade consequente não está na ordem do dia e “o destino parece novamente desconectado da história”, a ativação brechtiana propõe a retomada de um trabalho coletivo, no mínimo o de superar a “idéia de uma situação global que não pode ser mudada”.

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