O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

"A crise do documentário" por Ian F. Svenonius

Relia uma antiga edição da revista √ice "edição de filme" e encontrei este ótimo texto de Ian F. Svenonius,  e ilustrações* de Jim Krewson.

Matéria original: http://www.viceland.com/br/v1n4/htdocs/documentary-crisis-125.php?page=2

A pintura a óleo é praticada há cerca de 600 anos. A serigrafia foi desenvolvida na China, durante a dinastia Song no século X, ou melhor, há uns 1.000 anos. Talvez o poema mais antigo de que se tenha notícia seja A Epopeia de Gilgamesh, redigido em escrita cuneiforme no século III a.C., o que faz a poesia escrita ter uns 5.000 anos de idade. A música provavelmente surgiu junto com o homo sapiens na África como um elemento intrínseco à cultura humana, há 160 mil anos. Em comparação, o cinema tem o equivalente ao tempo de vida de uma tartaruga: aproximadamente 124 anos. Mas, apesar de ainda ser um bebê na escala de tempo das artes, enfrenta hoje uma crise existencial.

Saudado por Lênin como “a forma de arte mais importante”, o cinema que, mesmo em plena infância, fascinou o mundo até uma geração atrás, hoje luta pela sobrevivência, relevância, público e até mesmo para voltar a ser objeto de análise e debate. Considerando que o cinema nasceu do capitalismo industrial desordenado, essa condição de crise não é tão estranha. Na verdade, já que a característica principal do capitalismo é a crise perpétua, faz sentido que o cinema—uma lasca do grande bloco—seja marcado pela mesma histeria fabricada típica do sistema que o gerou.

Quando passou a ser mais do que uma simples novidade, o cinema era uma extensão do teatro, uma forma de contar histórias sobre o mundo. Mas, ao contrário do teatro, o cinema foi a contribuição da era industrial para o mundo das artes e assim—diferente de outros meios mais antigos—inevitavelmente lembrava as novas indústrias, como a siderúrgica e petrolífera, com as mesmas divisões de trabalho estratificadas, sindicatos, greves, contratos traiçoeiros, exploração impiedosa e uma elite proprietária de mentalidade monopolista.

Como a propriedade dos meios de produção é a questão central em tais indústrias, as grandes empresas do ramo cinematográfico—Warner Bros. e MGM—garantiram controle total sobre filmes, processos, suprimentos, trabalhadores (atores e diretores eram comprados e presos a contratos) e distribuição a fim de sufocar, destruir ou desencorajar a concorrência.

Assim como o rock em sua fase “clássica”, o cinema nos Estados Unidos era, quase desde o início, uma empreitada cujos custos apenas os estúdios de Hollywood conseguiam bancar, com um punhado de “autores” ilustres responsáveis por oferecer suas novas dádivas a cada temporada. A humanidade foi hipnotizada pelas fábulas que lhes contavam nos cinemas hermeticamente fechados que se encontravam a cada esquina. Tornar-se um participante do “cinema” era um sonho glorioso. Aspirantes a atrizes se jogavam contra o megalito de Hollywood como alimentos sacrificiais, e tornar-se diretor era uma ambição fantasiosa, ridícula, comparável a querer ser presidente ou rei do Universo.

Quando a tecnologia de vídeo proliferou, no início dos anos 80, ela foi, como todas as novas parafernálias da cultura de consumo, saudada como uma revolução para o homem comum. O vídeo era barato e portátil, e não estava sob o monopólio que a indústria cinematográfica mantinha sobre os meios de produção. Agora, qualquer pessoa que tivesse cabeça e ambição podia fazer um filme, e não mais apenas aqueles com conexão no showbiz, vínculos familiares ou disposição para um teste do sofá. Como a maioria dos supostos triunfos do “povo”, era na verdade o resultado do processo de imposição de uma indústria (a indústria eletrônica japonesa) sobre outra (a indústria cinematográfica de Hollywood).

O único problema com o vídeo era sua crueza e feiura. A imagem era tosca, e não tinha a mesma sensibilidade mágica que os espectadores viam na película. Assim, apesar da proliferação em massa quase imediata de câmeras de vídeo, poucos filmes dignos de nota foram produzidos com o novo equipamento. Em vez disso, as hoje onipresentes filmadoras foram relegadas a shows de rock underground até que outro uso—o registro de atos sexuais—fosse descoberto.

Ainda assim, Hollywood respondeu à ameaça da democracia do vídeo, tornando seus meios de produção ainda mais inacessíveis. Os filmes passaram a ser dirigidos por supercelebridades e os efeitos especiais se tornaram cada vez mais sofisticados. A narrativa deixou de ser prioridade em favor das maquiagens dos monstros, das explosões interestelares e das mega-estrelas. Uma vez que a TV a cabo e a locação de vídeos continuava a estraçalhar os lucros das salas de cinema, o desejo de produzir espetáculos se tornou cada vez mais e mais a principal preocupação dos estúdios. Para que um filme fosse lançado no circuito, deveria parecer um passeio de montanha-russa com todos as suas excitações nauseabundas. Cortes de quebrar o pescoço, enquadramentos nervosos, volume de som insuportável e violência explícita e bizarra fizeram muitos filmes, ironicamente, serem inassistíveis. Uma vez ou outra, por descuido, nos vemos em uma sala de cinema, seduzidos por uma enxurrada de propaganda, convencidos de que assistir a um determinado filme é indispensável para a continuidade da nossa educação cultural. Então, humilhados, degradados, insultados e R$ 20 mais pobres, juramos nunca mais cair nessa. Essa lição de vida é aprendida, em média, uma vez por ano. Na verdade, assistir a filmes no cinema é geralmente uma forma de nostalgia.

Esse declínio já vem acontecendo há algum tempo. Jean-Luc Godard afirmou memoravelmente em uma entrevista que, quando descobriu o cinema nos anos 50, este “já estava acabado”. Realmente, nos Estados Unidos de 1946, com uma população de 141 milhões de habitantes, vendia-se 100 milhões de ingressos de cinema por semana—um total de 36,5 bilhões de ingressos no ano. Hoje, com o dobro de habitantes, vendeu-se apenas 1,4 bilhão de ingressos em 2007 em toda a América do Norte (incluindo o Canadá).

Claro, as pessoas ainda assistem passivamente às peças moralistas dos seus mestres, mas agora em casa, na televisão, e a qualidade da imagem já não é mais tão importante. Pressentindo uma oportunidade, os videomakers—pessoas não necessariamente consagradas pelos estúdios—tentaram explorar o enorme potencial de desenvolvimento de uma indústria cinematográfica descentralizada formada por autores de verdade e entusiastas, similar à cena descentralizada dos músicos, artistas plásticos e poetas. Mas a vocação inicial da câmera de vídeo como uma ferramenta documental nunca foi abalada. Tampouco o desdém generalizado por algo que podia filmar qualquer um e que estava ao alcance financeiro de todos. Em uma sociedade cujo desprezo pelos pobres é institucionalizado, o próprio fato de o vídeo ser barato era considerado um defeito.

Por causa das suas raízes no registro de shows e pornografia, o vídeo era considerado uma “verdade”. Por isso, a nova geração de diretores, excluídos do uso de película pelos altos custos, se ocuparam em fazer “documentários” em vez de dramas com suas câmeras de vídeo. Hoje, produz-se documentários em uma escala inacreditável. São, em geral, perfis de alguma pessoa incomum, como um arqueiro sem braços ou um vegetariano que pratica a caça ou uma crítica política sobre alguma guerra ou uma pesquisa histórica em homenagem a uma banda de rock qualquer com direito a testemu-nhos de pessoas que estavam “lá” ou que foram profundamente influenciadas por ela. É relativamente fácil conseguir fundos para a produção de documentários, e não faltam festivais para exibi-los.

Apesar de parte desses documentários feitos em vídeo ser interessante, o que é realmente fascinante é o volume em que são produzidos, se comparado com as narrativas ficcionais tradicionais. O que isso revela a respeito de uma geração que não parece capaz de escrever uma história com personagens ou com uma trama bem estruturada? Enquanto a música se tornou completamente fantasiosa (repleta de compositores e cantores de folk psicodélico cantarolando canções sobre magia e duendes, compositores de música eletrônica propondo sexo com robôs e cantores românticos alternativos lamentando o fim de algum mundo imaginário), os novos diretores estão obcecados em apresentar um retrato da “realidade”. Eles têm uma preocupação apocalíptica de mostrar sua época como a vêm, já que não participam do diálogo oficial surreal que está sendo registrado pela mídia imperialista corrupta.

Enquanto esse impulso em apresentar a própria época aos herdeiros da terra ecoa uma necessidade humana antiga, vista desde as pinturas rupestres, a falta de qualidade artística do vídeo precisa ser enfrentada. Esses filmes são, em geral, relatos propagandísticos de eventos, feios, sem nuances. O trabalho de câmera é quase sempre execrável, a estrutura é simplística, o método narrativo é normalmente uma paródia de programas de televisão; parecem trabalhos de escola. Enquanto a utilização desse meio poderoso e a tentativa de expressar um argumento ideológico são admiráveis, as decisões estéticas dos videomakers muitas vezes revelam uma visão de mundo infantilizada, uma concepção artística atrofiada e uma mentalidade linear e empobrecida.

Isso tudo levanta a questão: quem é a audiência de tais produções? São os seus contemporâneos? Isso parece ser pouco provável, uma vez que as repetidas histórias da guerra no Iraque e os mitos do rock que aparecem em tais filmes são velhos conhecidos de seus espectadores. Se a intenção é a mera repetição de um folclore, é até uma boa razão, apesar de as armadilhas do cinema não parecerem necessárias para tal tarefa quando um panfleto ou um artigo de revista poderia fazer o mesmo serviço pelo menos tão bem quanto um vídeo, dispensando toda aquela autopromoção. Ganhar dinheiro não pode ser o objetivo, já que esses projetos representam em geral um risco financeiro.

A resposta óbvia parece ser que os vídeos são produzidos para oferecer uma explicação sobre nós e nossa época a alguma raça alienígena futura. Os esclarecimentos cuidadosos e infantis oferecidos são pensados para serem compreendidos por alguma sensibilidade exótica, e a idiotice em exibição parece falar a uma consciência interestelar à qual não se pode atribuir nenhuma sofisticação, sob perigo de gerar mal-entendidos, e à qual tampouco podemos atribuir o compartilhamento, conosco, de pressupostos culturais. Por que outro motivo um filme como Procedimento Operacional Padrão seria tão burro e simplório? Todos os seres humanos que viram esse filme devem ter ficado chocados com sua postura apologética em relação ao que todos sabem ser uma máquina de matar desprovida de ética, o Exército dos Estado Unidos.

Não faltam documentários sem sentido. No End in Sight, por exemplo, é uma peça de propaganda que sugere que a guerra contra o Iraque foi “mal conduzida”, e então invoca o espectro do Irã no papel de bicho-papão nos comentários finais, deixando as portas abertas para uma sequência espetacular. Uma vez que essas ideias estão por todos os lados, na televisão e nos jornais, quem seria o público alvo para tamanha estupidez? Talvez uma raça futura que vasculhará os detritos de nossa civilização e em relação aos quais os realizadores sentem a responsabilidade de explicar sua ideologia capitalista maldita, o sistema que desencadeou o fim de um planeta tão lascivo. Talvez achem que enquanto os programas de TV se perderão e os jornais serão queimados no holocausto nuclear, os videodocumentários sobreviverão, protegidos por sua capa de plástico resistente. Talvez sua propaganda tenha como intenção diminuir o nojo que os alienígenas sentirão quando testemunharem a insensatez humana, o mesmo sentimento que seria despertado, em uma loja de coisas usadas, por uma grande coleção de discos que foi pisoteada, arranhada e abandonada à própria sorte.

Parece claro que os documentários, e o vídeo em geral, são feitos para alienígenas. Por que, afinal, os DVD têm a forma de OVNIs? Para atrair a atenção de alienígenas. Por que os atores pornôs depi- lam sua genitália? Porque os diretores imaginam que isso agradará os alienígenas para os quais o vídeo pornô é feito—os mesmos alienígenas que são normalmente retratados sem pelos. Quem decidiu que o vídeo seria utilizado dessa maneira? Ninguém em particular. Foi inconsciente. Alguma coisa a respeito do vídeo grita “O Futuro” para as pessoas. Fontes e telas de vídeo sempre aparecem em programas de televisão, discos e filmes futurísticos. Talvez tenhamos feito alguma viagem astral na qual vislumbramos esse ambiente pós-histórico.

Esse impulso de criar explicações sobre nossa época para uma raça ou forma de vida superior é compreensível, claro. Tem sido o ímpeto de muitos escritos esotéricos e religiosos ao longo da História. Mas é um equívoco pressupor que os alienígenas sejam tão esteticamente esnobes que não possam apreciar um pouquinho de arte em sua propaganda. O que esses vídeos estão de fato insinuando para essa raça futura é o quão esteticamente pobre é nossa época. Dos novos edifícios concebidos por uma geração diabólica de arquitetos às calças de sarja dos empregados de escritório, às placas do comércio sem ne-nhum senso artístico feitas com as mesmas fontes de computador, aos carros projetados com o mesmo computador horroroso. A população tem sido alvo de uma imensa defecada estética, e não sabe. Anos e anos de retardamento artístico e de admoestações filistinas contra a arte vindas de todos os lados resultaram em um país kitsch de merda (EUA) e, por meio da influência desmesurada desse país sobre o resto do mundo, em um mundo kitsch também de merda.

Claro, é importante que não sejamos tão duros em nosso julgamento dos autores desses vídeos medíocres. Afinal de contas, eles trabalham sob uma ditadura fascista, com todas suas atribulações psíquicas, uma população idiotizada e conexões asquerosas, fruto da necessidade de financiamento. É bastante difícil produzir qualquer coisa que seja no mundo inteiro quando não há audiência para a obra. A mídia de massa teve sucesso em nos fazer sentir distantes, azarados, loucos, solitários. Com certeza, relativamente pouca arte interessante foi produzida no Chile de Pinochet.

Na famosa entrevista de Bob Dylan no documentário Don’t Look Back, de D. A. Pennebaker, na qual ele fustiga um repórter da Time ao dizer “Não há ideias na revista Time... apenas certos fatos... o artigo que você está escrevendo, pode vir a ser um bom artigo; mas não significa nada”, ele poderia estar falando dessa nova mania de documentários. Quando, ao ser pressionado a dar uma alternativa, ele sugere, “Uma simples foto... uma simples foto de uma, digamos, prostituta vomitando na sarjeta e ao lado uma foto do Sr. Rockefeller”, ele poderia estar falando das colagens de cinejornal de Santiago Alvaréz.

O trabalho de Alvaréz aponta o caminho para uma solução do impasse no qual o mundo do documentário se encontra. Um diretor cubano, a quem Fidel Castro encarregou de produzir cinejornais sobre a bem-sucedida batalha da revolução por poder, criou uma média de um filme a cada duas semanas ao longo de 30 anos. Fez isso com praticamente nenhum material à sua disposição e, mesmo assim, seus trabalhos são evocações fantásticas das circunstâncias nas quais foram feitos. Um alienígena que visse seu trabalho certamente se encantaria com a humanidade que o criou, compreenderia a complexidade de suas criações e as circunstâncias e as contradições em seu caráter que conduziram por fim à destruição do planeta. Seria como se a tal coleção de discos arruinada encontrada na loja de coisas usadas contivesse uma explicação excitante da luta de seu antigo proprietário contra as forças terríveis que criaram a calamidade que resultou em sua destruição.

Um dos filmes de Alvaréz que merece ser visto é LBJ, de 1969. Ali se insinua que LBJ (Lyndon B. Johnson) assassinou MLK, RFK e JFK (L de “Luther”, B de “Bobby” e J de “Jack”), e o faz quase sem palavras ou narrativa. As ferramentas são simples: algumas são recortes das revistas Life e Playboy lentamente filmados. Edição engenhosa. Música enfeitiçante. Esse é um documentário que poderia ser mostrado a falantes de qualquer língua com o mesmo resultado, e que também funciona, mesmo que desligado de seu programa político, como uma bela colagem de nossa época. Música de Carl Orff, Miriam Makeba, Nina Simone, Trashmen, Pablo Milanés, Leo Brouwer e outros seguidos pelo casamento da filha de LBJ até seus atos traiçoeiros. O filme termina com a montagem de imagens do nascimento de seu neto intercaladas com um clipe de uma camponesa vietnamita queimada por napalm. Quase todo o filme é composto de fotos de jornal ou de colunas sociais de revistas. Alvarez é livre para utilizar quaisquer imagens de cinejornais, fotos de revista, imagens encontradas e a música pop, o jazz ou composições clássicas que desejar, das fontes que quiser, uma vez que trabalha para o Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficos da República de Cuba, que estava e ainda está em guerra com o mundo capitalista e, por isso, desdenha as leis do copyright.

Diretores invejosos assistem aos filmes de Alvaréz e gritam “Não é justo!” quando vêem o que isso lhe permite—mas eles deveriam largar mão de seus choramingos e levar o programa adiante. As regras de licenciamento e as leis de propriedade intelectual destruíram a arte e a expressão dos paísescapitalistas. Está na hora de uma rebelião contra as convenções cinematográficas e, sim, contra as leis que resultam na produção cinematográfica medíocre. Santiago Alvaréz, que fez mais de 700 filmes em sua carreira, de 1959 até sua morte em 1998, seria muito mais admirado por quaisquer alienígenas que porventura desembarcassem no nosso planeta do que o lixo cafona e simplório que os diretores de documentários têm despejado ultimamente.




segunda-feira, 28 de novembro de 2011

domingo, 27 de novembro de 2011

"Sujeito Periférico" - Tita reis

sábado, 26 de novembro de 2011

Ideia para um filme...a propósito de uma estética-política... "Aqui o patrão é protagonista"

Rosana, uma mulher de cabelos longos, bem cuidados e corpo magro está sentada à mesa e enquanto morde uma cenoura crua observa a empregada que lava a louça.

(Trata-se de uma cozinha da alta classe paulista)

A pia é próxima ao fogão.

Rosana se levanta de repente, ainda mascando a cenoura - não tira os olhos da empregada. Se aproxima mais até colar seu quadril na pia e fita a diarista no fundo de seus olhos.

A diarista se assusta e encara - com olhar baixo e trêmulo - Rosana.

DIARISTA
Tudo bem dona Rosana?

ROSANA
(Não desprega os olhos dos da diarista)
Não sei, eu tive uma impressão estranha lá da mesa, sabe?

DIARISTA
É a comida? 

DIARISTA
Porque se for, te garanto que dessa vez prestei muito atenção.
Não tem nem rastro de nada de carne aí.

ROSANA
(sorri abismada, ainda fitando os olhos da diarista)
Não, foi algo mais estranho, quase mágica.
Ela coloca a mão carinhosamente sobre o maxilar da diarista e sente a pele da moça.

ROSANA
Sei lá, de lá de onde eu tava, a gente parecia ter alguma coisa
semelhante, sabe? Quase igual mesmo? Como se fôssemos de um
mesmo lugar, de uma mesma origem, sabe?

ROSANA
Inclusive, sabe o que eu tô vendo em volta de ti?

A diarista atônita, mas tentando conter o sinais, gesticula que não com a cabeça, sem emitir um único som.
ROSANA
 (sorri simpaticamente)
Não?

ROSANA
(Passando a mão sobre o rosto da diarista)
Uma chama azul!

ROSANA
Mas não sei ainda te dizer o que é. E nem como veio
essa ideia de semelhança. 

ROSANA
(Coloca a outra mão com a cenoura no rosto da diarista)
Mas...enquanto penso, lava o banheiro?(sorri)

Rosana sai em direção ao quarto ainda com a cenoura em mãos e expressão de extrema tranquilidade junto a um encantamento que a faz olhar para o alto, para as paredes, (etc..).

A diarista volta a trabalhar e se assusta.
Seu avental começa a pegar fogo pela chama azul que vinda do fogão.
DIARISTA
Burra. burra, burra!
DIARISTA
Mais um desconto...

continua...

Curta-metragem "Uma Carta Para Tio Boonmee" (2009)

Por ora, legendas só inglês..

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Cotidiano / Baioque / Você vai me seguir - Chico Buarque

Apoio de grupos de teatro de SP ao ato dos estudantes da USP



Cia Ocamorana se apresenta na USP

Excepcionalmente hoje, dia 25/11, a Cia Ocamorana apresenta o seu espetáculo "Ruptura: Um Processo Revolucionário", na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP. A apresentação é as 20h, com entrada gratuita, no vão do prédio da FAU (piso caramelo). A temporada segue normalmente até o dia 04/12, no Teatro Coletivo.

Calle 13 - Latinoamérica

Seminário público - Teatro no século XXI - a criação teatral - políticas públicas e privadas


quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Simbólico encontro entre Pato Donald e Zé Carioca

Eis a descoberta do Brasil do samba e de Carmem Miranda - Tio Sam cria o Zé Carioca e o coloca em uma gaiola de grossas grades.

domingo, 20 de novembro de 2011

Sergio Mendes & Brasil 77 - Pra Dizer Adeus, To Say Goodbye 1974


É esquerdismo burro, imediatismo daqueles que criticam a ação dos atores globais em relação a Belo Monte?

Para todos aqueles que compartilharam o vídeo de atores globais sobre a usina de Belo Monte - contra a construção da usina, o que, também, obviamente, compartilho da posição -, algumas críticas feitas ao vídeo causaram certo desconforto .

E como se fundamenta esta crítica? Puro imediatismo, esquerdismo burro de nossa parte?  Digo "nossa", pois faço parte dos críticos.

No que me cabe, posso dizer que, para mim - bem redundante mesmo -, o mundo funciona semelhante a uma boa obra de arte, seja em qual âmbito for, forma e conteúdo dialogam intrinsecamente, dialeticamente, quando não, muito provavelmente, a obra é no minimo confusa - no sentido ruim da palavra.

Digo isso, pelo seguinte: a "consciência social", para muitos, vai até onde começa suas cercas elétricas.  A usina, por exemplo, não é patrocinadora direta da novela, ou nenhum dos atores é garoto propaganda dela; sem contar o fato primordial na discussão que é o sistema que continua operando que garante que senão este, milhões de micro e macro -absurdos aconteçam a cada segundo; mas o que mais me intriga nisto tudo é que - e grande parte da esquerda compartilhou tal vídeo - por que aqueles mesmos atores, sempre criticados, não necessariamente enquanto indivíduos, mas sujeitos que são operados por este sistema que possibilita essas atrocidades, e que ao mesmo tempo são coniventes a ele, e se mostram não tão desconfortáveis assim em manter suas posições, são agora tidos como grandes revolucionários? Os mesmos que criticávamos por serem também "responsáveis" (operados e coniventes ao sistema) pela imbecilização do ser humano pelas obras "de arte" mas toscas possíveis (de wolf maya e cia), agora são vangloriados porque a mesma popularidade, o mesmo mainstream que emburrece, vai atingir um grande público e conscientizá-los?

Isso vai de encontro a um sério problema, e que a esquerda não pode se esquivar, sem acabar de vez com ele  -  e ainda vai levar tempo para resolver o caso e darmos um salto qualitativo - que é o tão criticado fetiche criado pelo mercado, mas que por muitas vezes reproduzimos, mesmo nos opondo a ele. Se uma grande celebridade, criada pelo e para o mercado, que talvez de humano não lhe tenha restado nada, diz que apoia uma movimento social de esquerda, a esquerda faz questão de compartilhar a notícia tão vigorosamente quanto é feito num propaganda no mac donalds. O que há? Estamos reproduzindo a mesma imbecilização, mesma forma, mesmo humano, que dizemos tanto que perde seu status de ser humano, que se torna mercadoria? Basta então mudarmos o conteúdo, sem que haja mudança significativa na  forma?

Ser crítico aquilo que não fazemos é um pouco menos complicado que aquilo que fazemos e mais, ao que nos garante o pão, o brioche, o shopping, Paris.

Talvez isso funcione, quando os mesmos atores - nós todos - criticarem e se mostrarem dispostos o bastante para romper definitivamente, inclusive, com aquilo que, infelizmente, se tornou condição de nossa sensação de existência -: o mercado.

sábado, 19 de novembro de 2011

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Sobre gadús, diogos, morenos, moleques, travessos...

Quanto mais escuto, ou simplesmente vejo os novos artistas lançados ao mainstream, mais volto aos antigos.

Num mundo onde tudo se vende, o que vale é ter atitude. E dessa mesma tal atitude nasce o álibi para toda e qualquer cagada. Que leva, inclusive, pseudo-subversivos a serem aceitos de forma tão acolhedora  e semelhante a um bom moço.

O que aconteceu com os rebeldes ?

Ora orgulhosos de exporem seus preconceitos, e ideologias mais reacionárias  sob o manto do humor, ora tocando suas músicas que exaltam culturas orpimidas, antigos miltantes, lutadores, guerreiros , guerrilheiros, em reality shows; comportados, assimilados por tudo aquilo que em certo momento haviam, ainda que por bem pouco, parecido ser diferentes... 




quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Uma galinha (Clarice Lispector - 1961)

Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.

Parecia calma. desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.
Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou – o tempo da cozinheira dar um grito – e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou o telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão de rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais intima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.
Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre.
Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.
Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou. Entre gritos e penas, ela foi presa. em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos.
Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:

– Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o nosso bem!
Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:

– Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!
– Eu também! jurou a menina com ardor.
A mãe, cansada, deu de ombros.
Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: "E dizer que a obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a da apatia e a do sobressalto.
Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado.
Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho – era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos.
Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.

domingo, 6 de novembro de 2011

Sobre o Otimismo e o Pessimismo

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(contra ambos)
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É realmente óbvio que o pessimismo é um sentimento pequeno-burguês?  Digo, num sentido obviamente marxista? Para responder a esta pergunta, deve-se formular outra, aparentemente imprópria: Há provérbios suficientes no mundo? Quer dizer: Há no mundo provérbios para tudo?
Falsa questão. O importante é que a resposta já foi colocada aproximadamente na forma de provérbio, quando dizemos, por exemplo: “Pobre não tem depressão”. Afirmação sádica, e, por isso mesmo, suspeita. Seja como for, alguma coisa aí parece verdadeira. Não sei, mas se tivesse o direito de inventar um provérbio, diria, nesse exato momento: “O pessimismo é um luxo de quem pode pensar na vida”.
Um operário, ou um operador de telemarketing, não tem tempo para o pessimismo. Pela mesma razão invertida, ou seja: o trabalhador não tem tempo de pensar na vida. Por isso, o operário que ainda não sabe o que isto significa, responde, ardentemente: “Sou otimista!”.  
Mas a obviedade termina quando descobrimos que o pessimista (necessariamente pequeno-burguês) poderia não ser pessimista, exatamente por que, enquanto pequeno-burguês, instalado numa poltrona desconfortável, pensa.
Noutras palavras: apesar de pequeno-burguês, tem a possibilidade de não pensar como tal – exatamente por sê-lo. Não se trata de um mero jogo de palavras: o pequeno-burguês me entende.
Vejamos. O sentido mais largo da dialética, seu pressuposto generalíssimo, e constante, é aquele segundo o qual tudo é processo (contraditório e mutável). Sob o pano de fundo desse princípio geral, o que responderíamos ao pequeno-burguês caso nos perguntasse: “Qual o problema do pessimismo, se o mundo é realmente péssimo?”. Responderíamos:
- O pessimismo anula o pressuposto mais amplo da dialética: o processo, pelo qual o mundo tornou-se a tragédia que se vê. Ou seja: apesar de trágico, veio a ser como está sendo, ou seja: virá a ser outra coisa.
Ora, pequeníssimo-burguês, não se apavore. Mas pense o quão preocupante é dizer que o mundo “não tem mesmo jeito”. Não se trata, para você, de negar este ou aquele aspecto da luta de classes, mas de negar a própria luta de classes. Um marxista reconhece, evidentemente, que o mundo está péssimo. Ao mesmo tempo, levanta-se imediatamente contra aquele que, ao ouvi-lo falar, conclui que devemos, então, aderir ao pessimismo.
Já se pode ouvir: “Devemos ser otimistas, então?”. De onde vem esta voz? Conclusão inversa, também ela aparentemente óbvia?  Do mesmo núcleo duro, irradiador de desespero: o cérebro empedernido do pequeno-burguês.
O pequeno-burguês é aquele que detesta as réguas, pois, além de centímetros, possuem também os malditos milímetros. Impaciente, não enxerga, por exemplo, os variados matizes de uma mesma cor. Na música, a idéia da pausa entre uma nota e outra o incomoda profundamente. Um poema é um gueto: não vale à pena passar. Não se trata, para ele, de “oito ou oitenta”. Mas de... “oito, ou oitocentos milhões”. Para ser coerente, deveria odiar-se a si mesmo!
Respondemos com o mesmo princípio:
- O otimismo também anula o pressuposto mais amplo da dialética, a idéia de processo. Embora o mundo tenha se tornado a tragédia que se vê como conseqüência de um longo processo histórico, que nos autoriza a enxergar a possibilidade real de uma saída, e nos obriga a abandonar o pessimismo cego (como se pudesse existir... pessimismo lúcido), isto não quer dizer, por outro lado, que este processo de saída é fácil, inevitável e espontâneo. Logo, também o otimismo é equivocado!
A medida do mundo, meu caro pequeníssimo-burguês, meu irmão, meu igual, não é a aparente imutabilidade de sua deprimente condição existencial.
Aliás, nada mais inventado por você mesmo do que sua própria condição. Não me refiro a sua agonia (por que esta é geral), mas à sensação de paralisia que te acomete, como se a paralisia de sua consciência (e de seu coração) fosse o reflexo de um mundo paralisado. Sua parada cardíaca, nobre egoísta, não significa que a vida parou de pulsar.
O maior dos otimistas mantém um pacto de alma – e de classe - com o maior dos pessimistas. Pessimista é derrotado, fraco, obscuro, desesperançado, fatalista...  Não deixa de ser verdade. Já o otimista é o iludido mal intencionado, manipulador de consciências, voluntarioso... Outra verdade.
Mas, ambos, sempre tão zelosos de sua própria posição, que temem profundamente o anúncio de seu contrário. É o mesmo princípio que rege o casamento  entre democracia ocidental, de um lado, e o terrorismo árabe, de outro.
Pessimistas fatalistas, e otimistas voluntaristas, Lukács pensava em vocês quando escreveu:
Fatalismo e voluntarismo são contrários apenas numa perspectiva não-dialética e a-histórica. Para a concepção dialética da história, eles provam serem pólos que se complementam necessariamente, reflexos intelectuais em que o antagonismo da ordem social capitalista e a impossibilidade de resolver seus problemas em seu próprio domínio se exprimem claramente”.  
A crítica dialética precisa ser incansável. É difícil? Claro, e penoso. Não sou eu, nem ninguém que o diz, pequeno-burguês, mas a própria realidade, a mesma, aliás, que dificulta enormemente a tarefa. Isto significa: quanto maior for a dificuldade, maior a necessidade de superá-la (à realidade), e não o contrário. (In) felizmente, é assim.


"Ruptura: Um Processo revolucionário" estreia no teatro Coletivo


sábado, 5 de novembro de 2011

LABIRINTOS E TRINCHEIRAS


Processo Seletivo Emesp Tom Jobim 2012 - cursos gratuitos


Reestreia "O Auto do Circo", da Cia Estável de teatro


Parteiras tradicionais, e “imateriais”.

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(A miséria carece de símbolos?)

A beleza que resplandece nas manifestações de vida das camadas populares é reveladora de uma ambigüidade perigosa. Trata-se, no limite, de situá-la de um ponto de vista de classe. Mas, como se sabe, a consciência da exploração nem sempre é tranqüilizadora (e deveria?). O belo do feio, no caso a cultura popular, é freqüentemente esquiva ao observador, mascarando os bastidores sombrios de onde se origina. Claro, a consciência que não dorme sempre enxerga, nos mecanismos culturais de conservação do humano, uma forma pura de resistência.

Mas, as formas de resistência não raro se convertem, aos olhos do observador “crítico”, num consolo de consciência. A cultura, então, para todas as medidas, torna-se uma espécie de aspirina do sentimento de culpa. Sim, é preciso dizer: a estética não passa de um repasto mental para o sentimento pequeno-burguês da vida. Logo, desaparece a imensa carga histórica de sofrimentos e desamparo, e o modo característico de resistência da cultura popular, substituídos pelo mero desfrute, fazendo imaginar caretas desprezíveis de gozo sádico.

Tais sintomas de desfrute multiplicam-se atualmente. Movimento de apropriação indébita por parte da ideologia do consumo, claro: “estetização da miséria”. Assim, ficamos sabendo da proposta de tornar as chamadas “parteiras tradicionais” em patrimônio histórico imaterial do Brasil.

Os indignados se levantam. Equivocados, pois não se trata de uma luta simbólica, esta, aliás, também sintomática do desfrute, com feições paternalistas. No outro extremo, não menos simbólico: o regozijo. As mulheres parteiras revestem-se então de fetiche poético, curandeiras de mãos encantadas. Ignora-se a real condição da mulher[1] nas regiões mais pobres do Brasil, já que, como se sabe, trata-se de uma ordem social infinitamente distante do antigo esquema matriarcal. Mais uma vez: os miseráveis, não carecem de símbolos!

Sem dúvida, o trabalho das parteiras é um patrimônio do povo, um saber entre tantos que lhe pertence. De alguma maneira, o tombamento é legítimo pelo reconhecimento de uma prática secular. Mas, a valorização efetiva de toda a sabedoria popular passa necessariamente por uma negação essencial deste mesmo Estado que pretende resguardá-la – vale a pergunta: contra quem? Qual a palavra que traduz a possibilidade do povo recuperar sua memória sem depender de atos institucionais de qualquer espécie? Ou melhor: que ato é este?

Nota:

[1] “Parto (mortal). Entre os astecas, as mulheres mortas de parto reúnem-se aos guerreiros sacrificados ou mortos em combate. Tomam o lugar deles ao meio-dia e acompanham o Sol na segunda metade de seu curso diurno. Com os guerreiros mortos em combate, as mulheres que morrem de parto formam o par dialético: evolução (manhã) / involução (tarde). Revestindo a face descendente dessa dualidade (entardecer), da luz rumo às trevas, as mulheres mortas fazem parte da expressão perigosa do sagrado. (...) A mulher que morre ao botar um filho no mundo assume, em todas as culturas, uma significação sagrada, que se aproxima à do sacrifício humano destinado a assegurar a perenidade, não apenas da vida, mas da tribo, da nação, da família”. (Dicionário de Símbolos – Jean Chevalier, Alain Gheerbrant – Rio de Janeiro: José Olympio, 1989)