O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

O Soldado de La Ciotat (Bertold Brecht)

Depois da primeira guerra mundial, vimos na pequena cidade portuária de La Ciotat, no sul da França, junto a uma feira realizada para celebrar o lançamento à água de um navio, em uma praça pública, a estátua em bronze de um soldado do exército francês, ao redor da qual se aglomerava a multidão. Nós nos aproximamos e descobrimos se tratar de um homem vivo que estava ali de pé, imóvel, vestindo um capote marrom-terra, o capacete de aço na cabeça, uma baioneta nos braços, sob o sol quente de junho, sobre um pedestal de pedra. O rosto e as mãos dele tinham sido pintados de uma cor bronze. Ele não mexia nenhum músculo, nem mesmo pestanejava. A seus pés, junto ao pedestal, apoiava-se um pedaço de papelão, sobre o qual podia-se ler o seguinte texto: 

O Homem Estátua 
(Homme Statue)

Eu, Charles Louis Franchard, soldado do ...° Regimento, adquiri, como consequência de ter sido enterrado vivo em Verdun, a invulgar capacidade de permanecer totalmente imóvel e de comportar-me, durante o tempo que for desejado, como uma estátua. Essa minha habilidade foi investigada por muitos docentes e descrita como uma doença inexplicável. Por favor, faça uma pequena caridade a um pai de família sem trabalho! 

Nós jogamos uma moeda no prato que estava ao lado desse cartaz e, a balançar a cabeça, continuamos caminhando.

Eis que, pensamos nós, aqui está ele, armado até os dentes, o soldado indestrutível de muitos milênios, ele, com o qual se fez história, ele, que tornou possíveis todos esses grandes feitos de Alexandre, César, Napoleão sobre os quais lemos nos livros didáticos. Isso é ele. Não pestaneja. Esse é o arqueiro de Ciro, o condutor de bigas de Cambises, que a areia do deserto não conseguiu enterrar por definitivo, o legionário de César, o lanceiro de Gengis Khan, o membro da Guarda Suíça de Luís XIV, e o granadeiro de Napoleão I. Possui a capacidade, no fim das contas nem tão rara assim, de passar desapercebido quando todas as ferramentas de destruição imagináveis são testadas nele. Ele permaneceria como uma pedra, impassível (diz ele), quando enviado para a morte. Varado por lanças das mais diferentes épocas, de pedra, de bronze, de ferro, abalroado por veículos de guerra, os de Artaxerxes e os do general Ludendorff, pisoteado pelos elefantes de Aníbal e pelos cavaleiros de Átila, destroçado por pedaços de metal volantes das cada vez mais perfeitas peças de artilharia de séculos a fio, mas também pelas pedras volantes das catapultas, dilacerado por balas, grandes como ovos de pomba e pequenas como abelhas, ele continua de pé, indestrutível, de novo e de novo, a receber ordens em diversas línguas, mas sempre ignorando por quê e para que. As terras por ele conquistadas, não coube a ele possuí-las, da mesma forma como o pedreiro não mora na casa que construiu. Tampouco lhe pertencia a terra que defendeu. Nem mesmo sua arma ou seus equipamentos lhe pertencem. Mas continua de pé, sobre ele a chuva mortal dos aviões e o betume ardente das muralhas da cidade, sob ele minas e armadilhas, ao redor dele peste e gás mostarda, isca de carne e osso para lanças e flechas, ponto de mira, lama de tanques, fogareiro a gás, diante dele o inimigo, atrás dele o general! 

Incontáveis as mãos que lhe costuraram o gibão, lhe martelaram o arnês, lhe talharam as botas! Incontáveis os bolsos que se encheram por meio dele! Incomensurável o brado em todas as línguas do mundo que o encorajou! Nenhum deus que a ele não abençoasse! A ele que está acometido da terrível lepra da paciência, tornado oco pela incurável doença da impassibilidade!

Que tipo de enterro, imaginamos nós, é esse a que ele deve essa doença, essa terrível, monstruosa, tão contagiosa doença? 

Ela não deveria ser curável?

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