O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

O analgésico e a ilusão da cura


 
Uma das principais atrações do 14º É Tudo Verdade 2009, o mais recente documentário de José Padilha, “Garapa”, teve sua estreia internacional no Festival de Berlim do mesmo ano, na mostra “Panorama”, com sala lotada. Na capital alemã, o público recebeu o filme em silêncio profundo e isso não foi diferente durante o curto período em que o filme esteve em cartaz em poucas salas brasileiras. “Garapa” mostra o cotidiano de três famílias cearenses – duas delas do sertão e uma da periferia de Fortaleza -, vítimas da fome e que vivem numa situação de miséria difícil de ser imaginada.

Essa recepção emudecida reflete, talvez, o modo como Padilha compõe a sua visão documental, impedindo que o espectador tenha qualquer margem para imaginar algo, pois não há, num primeiro momento, qualquer tipo de intelectualização. Por isso, o diretor optou por retirar tudo o que não fosse essencial a essa maneira de filmar. A fotografia é em preto e branco, bastante granulada, obtida com um câmera super 16mm, quase sempre utilizada na mão. Além disso, o som é direto, não há música nem efeitos digitais.

Todo essa aridez visual e sonora força o espectador a ter uma experiência imersiva de contato com esses seres humanos e remete principalmente ao “Vidas Secas”, de Nelson Pereira dos Santos, que também tem semelhanças temáticas com “Garapa”. Além de contribuir para uma questão estética do filme, a ausência de cores parece ter sido uma opção narrativa de Padilha, na medida em que não há cor possível, num ambiente tão miserável e sombrio. Da mesma forma, não há como musicar as situações mostradas.

O título “Garapa” se refere à mistura de água e açúcar que as mães dão aos filhos, em substituição ao leite e outros alimentos para mascarar a fome e dar energia durante o dia. Não há comida, mas também não há higiene, não há saúde e não há condições para uma vida digna. O filme se resume a brutalidade dos fatos e são eles que denunciam a miséria social dessas famílias. A aproximação se dá no âmbito emocional e o espectador compartilha a sensação terrível de sentir fome, que é repetida à exaustão. “Garapa” não é um filme leve ou agradável e, igualmente, viver as situações mostradas passa ao longe de ser agradável.

 


Apesar de não ser nenhuma novidade o que está colocado na tela, mostrar de maneira enfática e atirar a pobreza na cara das pessoas representa, talvez, uma revolta de Padilha com a atitude de distanciamento que mantemos em relação a esses problemas. O documentário nos força a abandonar a inércia filosófica e sentir quase que fisicamente a intensidade dessa indigência. Assim, a câmera de Padilha chega a ser cruel ao mostrar detalhes que impedem qualquer tipo de glamourização da miséria.

É impressionante também como as três famílias aceitam viver normalmente na presença da câmera. Claro que há encenações, como em qualquer outra filmagem com proposta documental, mas os personagens de “Garapa” sentem-se à vontade para serem observados e até brigam entre si, em determinado momento do filme. Assim como o Sandro, de “Ônibus 174” (primeiro documentário de José Padilha), essas pessoas encaram as câmeras, talvez, como uma possibilidade de abandonarem a invisibilidade, com a qual sempre conviveram, nem que seja por apenas algumas horas. 

Indo ao encontro da proposta do filme, José Padilha faz algumas intervenções pouco elaboradas, mas eficazes ao questionar a obviedade de alguns fatos como, por exemplo, a insistência dessas famílias em terem filhos, sendo que o aumento da prole é diretamente proporcional ao aumento das dificuldades de vida. Em outra situação, o diretor revela que influenciou diretamente à realidade filmada ao dar um analgésico a determinado garoto que sofria com dores nos dentes e, em seguida, vem uma tentativa do diretor de explicar ao pai do menino que a dor melhorava com o remédio, mas o problema dentário continuava.  

São essas interferências que denunciam que a miséria não é somente social, mas também intelectual, pois não há como existir um discernimento mental correto em condições tão adversas de sobrevivência. As poucas alternativas que essas pessoas têm para combater a pobreza – os programas governamentais como, por exemplo, o “Fome Zero”, que apenas uma das três famílias recebe – são vistas como dádivas por aqueles que as usufruem. Porém, além de não se estenderem a todos que necessitam, funcionam exatamente como o analgésico que Padilha se esforça para explicar: melhoram os sintomas, mas não curam. Uma metáfora simples, mas que tem força e, talvez, explique a clara intervenção do diretor.

Enfim, “Garapa” não propõe soluções, mas demonstra, da maneira mais simples possível, o quão urgente algo precisa ser feito. Em tempos de Big Brother, Padilha faz o seu próprio “reality show”, este sim fiel à realidade, pois, em “Garapa”, ninguém pode, por exemplo, pular amarelinha ou participar de gincanas para ganhar a sua comida. Simplesmente não há alimento. Que bom seria se esse “reality show” tivesse tanto público como o Big Brother ou se “Garapa” fosse tão discutido e tão assistido como “Tropa de Elite 1 e 2”, do mesmo José Padilha.

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