O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

José Padilha troca o violento Rio de Janeiro pelo miserável agreste nordestino

Texto enviado pelo colega Itamar Cardin e publicado na Revista Paradoxo


Filmar a fome não é dos mais nobres ou tranqüilos desafios. Primeiro, há um problema de ordem quase técnica: como materializar em imagens uma questão tão universalmente debatida sem ao mesmo tempo recair em um didatismo televisivo, em um pieguismo adocicado, em um reducionismo ligeiro do próprio problema da fome? E, da própria opção em se filmar a fome, decorre uma segunda questão: é ainda legítimo fazer cinema político?  

Antes de se aventurar no premiado e polêmico Tropa de Elite, e após ser alçado ao estrelato por Ônibus 174, o cineasta José Padilha filmou um documentário sobre a fome. Garapa, que somente agora estreará em circuito, filma o dia-a-dia de três famílias cearenses miseráveis, e que sofrem com o problema da fome. As peculiaridades de cada uma, presentes logo no começo do filme, ajudam identificá-las com distinção. 

Duas dessas famílias vivem no sertão, ambas possuem muitos filhos. Em uma delas, no entanto, onde as crianças sempre aparecem brincando, a conversa com Padilha é mais fluente; na outra, a fala pausada dos pais geralmente é cortada pelo choro das crianças. De Fortaleza, a terceira é atormentada pela loucura do pai, que passa o dia profetizando e ameaçando trocar a comida da casa por bebida.  

Padilha faz claras opções na condução do filme. Os princípios do cinema direto - gênero de documentário onde se busca a captação direta da realidade, sem intervenção - são seu cerne principal. Poucas perguntas são feitas e a rotina das famílias corre livremente aos olhos do espectador. Também não há a utilização de cor [é inevitável pensar na semelhança com o Cinema Novo], trilha sonora e zoom, o que, nas palavras de Padilha, foi uma tentativa de representar ao espectador o vazio deixado pela fome. 

Não necessariamente pela falta de cor ou de som, mas é exatamente este vazio que sempre predomina. As três famílias parecem viver em uma realidade à parte, em um nó obtuso onde o sistema de políticas públicas jamais conseguirá chegar ou entender. Não se trata apenas de passar fome. O que se vê é um buraco desconhecido, que por desconhecido pouco pode ser preenchido.

Em uma das intervenções de Padilha, ele pergunta ao pai dos brincalhões quanto tempo dura a cesta enviada mensalmente pelo Fome Zero. O patriarca, consultando a mulher, responde que mais ou menos doze dias. O diretor quer então saber o que é feito no resto do mês. Ninguém responde. Em outra cena, a mãe de Fortaleza leva a filha a uma assistente social, para verificar como anda a subnutrição da pequena. A disponível funcionária ouve, dá recomendações sobre a vida conjugal, critica o marido louco, pergunta sobre a escola. Por fim, orienta sobre como alimentar melhor a menina e contornar os danos da fome. A mãe responde que o alimento solicitado não existe em casa. A funcionária tenta a segunda e a terceira opção. Nada. “Você não tem nada do que peço. Assim, não poderei te ajudar”, conclui.

Cenas que parecem meio surreais, quase inverossímeis ou produzidas, mas que ganham força pela opção de Padilha. Começa aí o grande acerto do filme: a opção quase naturalista ao se falar da fome. Há pouco a ser dramatizado ou acrescentado quando a realidade é irrefutável. O filme transcorre quase como que em uma exposição, árida e agreste, tentando canalizar a força da imagem para representar um problema de proporções históricas e devastadoras.

Ao longo dessa exposição, nota-se também um notável trabalho de montagem. A passagem de uma cena para outra muitas vezes parece linear, como se as famílias fossem as mesmas, como se os problemas enfrentados por indivíduos tão distintos fossem sempre os mesmos.
A tônica é a mesma no início, no meio e no fim, como um pêndulo, em imagens que vão e voltam sempre. Repetição que acaba criando um mapeamento abrangente e universal da fome e da miséria: desemprego, falta de chuva, alcoolismo, homens omissos, mulheres batalhadoras, crianças doentes, falta de planejamento, desesperança.

É, aliás, nessa desesperança das famílias que reside uma das sensações mais angustiantes do filme. Os dias, salvo provavelmente quando aparecem os serviços temporários, parecem idênticas, cansativas repetições um dos outros. Não há novos desejos, novos futuros, novos medos. É sempre a fome.

Longe da violência carioca, que marcou seus dois grandes sucessos, Padilha faz aqui seu filme mais necessário. Obra que universaliza e materializa um problema tão complexo, que tem a força devida para reavaliar certos fantasmas nem tão mortos assim. A fome, afinal, é um pêndulo. Um moto-contínuo.

2 comentários:

  1. 20/11 Cine Afro Sembene Apresenta: "Zumbi Somos Nós" e "Orikí". Compareça e ajude a divulgar: http://tamboresfalantes.blogspot.com/2010/11/20-de-novembro-de-2010-cine-afro.html

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  2. Caro Oubi,

    Estamos divulgando no blog o Cine Afro Sembene e estarei lá amanhã.

    um abraço

    Bruno

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