O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

domingo, 20 de março de 2011

Realismo do Grotesco em ‘Almas Mortas’ de Gógol.

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“Todos nós saímos de Gógol”.

(Dostoievski)

O conhecimento da vida cotidiana da Rússia no séc. XIX, em seu mais remoto e variado matiz, só a literatura pode fornecer. Mas, no caso de Gógol, por exemplo, sem um conhecimento histórico mínimo de fundo, acharíamos, talvez, menos graça na caracterização mordaz de seus personagens: sempre abusivos e despóticos. Aos gatunos tudo se perdoa frente à “ingenuidade” de seus métodos, fingindo-se ignorar, inclusive, a natureza pouco angelical de seus propósitos. Nesses termos, como não pensar no Brasil: a essência da lei é a infração da lei.

Reconhecemos pegadas machadianas na ironia de Gógol, ou mais propriamente o contrário. Talvez seja maior o acabamento na construção dos romances de Machado, em que a elaboração formal desvela de forma sutil, quase sem pretender, mecanismos psicológicos de classe. Já em Gógol há uma “pretensão edificante”; uma espécie de “ auto-comiseração” do narrador, ausente na narrativa machadiana. Em Gógol o narrador jura não sentir a menor vergonha frente a “fraqueza” de seus personagens, apesar de ser inútil o chamado à redenção moral após a exposição de um quadro tão decadente. Nas últimas páginas de “Almas Mortas”, por exemplo, o narrador torna-se “sério” e cobra responsabilidade cívica dos leitores; mas, vale dizer, é tarde demais: a qualidade do próprio romance já não admite a seriedade.

Há muitos outros traços das “Almas Mortas”, tais como a lógica da mercadoria mediando as relações humanas, quando, por exemplo, compara-se os personagens com coisas inanimadas e animais - pedras, casas, empadas de frango, cavalos, etc. Também a realidade externa, o nível espacial da narrativa, em que as diferentes localidades refletem o caráter de seus proprietários; irradiando-se inclusive como elemento definidor de personagens menores, principalmente camponeses (mujiques), que gravitam à sombra de seus donos, os “grandes”; etc.

“Almas Mortas”, em suma, é a trajetória do personagem Tchitchikov, senhor proprietário de muitas almas de camponeses, “Consultor Civil do Estado”, que passa pela casa de diversos outros proprietários com um interesse comercial um tanto mórbido e obsessivo: comprar almas de camponeses mortos; para constar numericamente, ou por sandice de “colecionador” – só ao fim do romance sabemos seu real interesse.

Apresento alguns trechos da obra, que talvez façam sentir a força da ironia desse grande realista.

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O narrador nos apresenta Nosdriov, figura que o herói conheceu em sua jornada:

“De certo modo, Nosdriov era uma personagem histórica. Nenhuma reunião de que ele participasse acabava sem uma história qualquer, tanto que ele, ou acabava a reunião de “braços dados” com a polícia, ou os próprios companheiros eram forçados a empurrá-lo para fora. Ou embebedava-se até ficar reduzido a um riso ininterrupto, ou então acabava com vergonha das próprias mentiras. E mentia sem a menor necessidade: de repente, contava que tinha um cavalo de pelo azul ou cor-de-rosa, a ponto dos ouvintes acabarem por se afastar dele, dizendo: “Eh, meu velho, estás passando da conta” (p. 85)

Assim era Nosdriov! Quem sabe dirão que ele é um tipo superado, que Nosdriov não existe mais hoje em dia. Infelizmente, não terão razão os que assim falarem. Nosdriov ainda permanecerá por muito tempo nesse mundo, e não será fácil exterminá-lo. Ele está entre nós por toda parte e, quiçá, apenas traja uma casaca diferente; mas os seres humanos são superficiais e pouco perspicazes, e um homem de roupa diferente, lhes parece um outro homem”. (p. 86-7)

Já aqui, o narrador descreve uma “agregada” do Sr. Sobakêvitch, proprietário ao qual Tchitchikov está em visita com o objetivo de arrematar mais algumas “alminhas” de camponeses mortos:

“Para o quarto lugar na mesa logo surgiu uma, é difícil definir com segurança, senhora ou senhorita, parenta, governanta, ou simplesmente uma agregada da casa. Há certos indivíduos que existem no mundo não como um objeto, mas como pintinhas ou manchinhas sobre um objeto. Sentam-se sempre no mesmo lugar, mantêm a cabeça na mesma posição, são quase tomados por peças de mobiliário; e no entanto, em algum recanto, principalmente na despensa ou na cozinha, descobre-se que... oh meu deus, oh!”. (p. 115)

O narrador descreve agora o anfitrião Sobakêvitch:

“Parecia que naquele corpo gigante não existia alma nenhuma, ou, se existia, situava-se não no lugar devido, mas, como um bruxo, a alma está envôlta numa casca tão grossa que como quer que se movesse no fundo daquele corpo não conseguia produzir qualquer comoção na superfície...”. (p. 116)

Por fim, o próprio Tchitchikov, tão mesurado e simpático com Sobakêvitch, formula “mentalmente” sua opinião a respeito do mesmo, vendo-o “pelas costas”, por assim dizer:

“Quando olhou para aquele costado que ia na sua frente, amplo como o lombo de um cavalo, e para suas pernas que pareciam os postes de São Petersburgo, não pôde deixar de exclamar mentalmente: ‘Será que já nasceste assim, urso, ou ficaste ursificado com a vida neste buraco distante, amofinando seus mujiques com sua avareza, e por causa de tudo isso te transformaste no que se costuma chamar de unha-de-fome”. (p. 120)

(Nicolai Vassílievitch Gógol, Almas Mortas, Abril Cultural, 1972)

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Um comentário:

  1. João,

    Belo análise... me fez lembrar de como foi divertido e instigante pra mim ler "O Nariz" e "Capote". Gógol se tornou, desde então, um dos meus contistas preferidos. Não conheço "Almas Mortas", mas vou procurar!

    abraços

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