A repórter Manuela Azenha esteve recentemente em Eldorado dos Carajás, no Pará, para uma série de reportagens sobre a herança deixada por um dos incidentes mais brutais da disputa pela terra no Brasil. A seguir, o primeiro de uma série de relatos:
Era semana de festa no assentamento 17 de abril. Ainda que para homenagear as vítimas do massacre de Eldorado dos Carajás, um dos episódios mais trágicos na história do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), o clima era de confraternização e os convidados, recebidos com alegria.
O assentamento leva o nome da data do massacre, que ocorreu a 21 quilômetros dali, quinze anos atrás. Em marcha rumo a Belém, mais de mil sem-terra reivindicavam a desapropriação do complexo Macaxeira, terreno que hoje o assentamento ocupa. O ato culminou na morte de 19 camponeses, executados pela Polícia Militar em operação ordenada pelo governador Almir Gabriel (PSDB) e reforçada pelo secretário de Segurança Pública, Paulo Sette Câmara, que autorizou o uso da força policial para retirar os manifestantes da rodovia.
Os sem-terra reagiram às bombas de gás lacrimogêneo com paus e pedras, ao que a PM respondeu disparando tiros. Segundo a perícia, no entanto, a maior parte das mortes ocorreu instantes depois do enfrentamento, quando os manifestantes já estavam rendidos. Fora os mortos, cerca de 70 manifestantes foram gravemente feridos e mutilados por armas brancas utilizadas pela polícia. Dos 154 policias denunciados pelo Ministério Público, apenas dois foram condenados: o coronel Mario Collares Pantoja e o major José Maria Pereira. Ambos aguardam em liberdade o fim do processo.
Desde então, o mês da tragédia é chamado de abril vermelho e tornou-se principal período de lutas e ocupações do MST.
Durante os dias da semana do 17 de abril, foram organizadas oficinas de artes, plenárias e debates. Na praça central do assentamento, houve shows de música todas as noites. Foi inaugurada a biblioteca José Saramago, com fotos de Sebastião Salgado decorando as paredes. Saramago fazia parte da grande rede informal de apoiadores do MST no mundo, que inclui de Chico Buarque ao grupo Rage Against the Machine, do fotógrafo Salgado ao linguista Noam Chomsky.
No dia seguinte à inauguração da biblioteca foi lançado o livro de poesias de Diva Lopes, militante do movimento.
A programação encerrou-se no domingo, 17, dia em que centenas de sem-terra refizeram a marcha pela rodovia PA-150, até a curva do “S”, local do massacre. Quase todos jovens militantes, caminharam por aproximadamente três horas sob o sol, entoando palavras de ordem e cantorias.
O palanque na curva do “S”, onde os convidados fizeram seus discursos e dois shows foram apresentados, foi montado diante do monumento que marca o lugar da tragédia. Ali ficam dezenove troncos de castanheiras queimados, um para cada vítima fatal do massacre.
Para abrir o ato foi celebrada missa pelo bispo diocesano de Marabá, dom José Foralosso. Em seguida, diversos políticos discursaram, entre eles a senadora Marinor Brito (PSOL-PA), a deputada estadual Bernadete ten Caten (PT)e o prefeito de Eldorado dos Carajás, Genival Diniz Gonçalves.
“Na história de luta dos povos, foram se consolidando lugares sagrados. Lugares até os quais se caminha para abastecer-se de energia e continuar a luta. Esse é um lugar sagrado, junto a essas castanheiras. Lembramos do momento em que mataram à queima roupa nossos companheiros. Não podemos esquecer, não vamos descansar. Se nos calarmos, até as pedras gritarão!”, declarou João Pedro Stédile, da direção nacional do MST.
José Sebastião de Oliveira é um dos muitos sobreviventes que vivem no assentamento 17 de abril. No dia do massacre, foi ferido na perna.
“Achava que eles estavam de brincadeira, só querendo nos assustar dando tiros para o alto. Foi quando vi meu colega deitado no chão, com a boca aberta. Foi o primeiro a cair e era do meu grupo”, conta. José não gosta de falar no assunto.
Segundo ele, recordar é sofrer duas vezes. Reclama que já falou muito a jornalistas, que insistem em contar a história com erros factuais. “Já vi jornal dizendo que o tiroteio começou à noite. Foi às cinco da tarde! Estava claro! Mas eles continuam dizendo isso…”
Quando perguntei a José sua idade, ele respondeu incerto. Seriam 53 ou 54 anos. Ao conferir com a esposa, ao lado, foi corrigido: na verdade, são 63. Ele reluta, mas relembra. As vítimas que conseguiram alguma indenização receberam menos do que tinham direito. O tratamento médico oferecido pelo governo também é considerado insuficiente.
Ao longo dos anos, cinco vítimas morreram entre um consulta e outra, em decorrência dos ferimentos recebidos no dia do massacre. Mas os danos mais graves muitas vezes são psicológicos. E persistem.
José diz que vai vai trabalhar esperando o dia em que os policiais voltarão para matá-lo. “Eram pistoleiros vestidos de policiais. Eu sei, olhei bem nos olhos deles, assim de pertinho! Outro dia encontrei um e voltei a olhar nos olhos dele. Como que não tem vergonha? Ele acha que eu não vou lembrar?”, se pergunta, emocionado.
“A escravidão nunca acabou, se não é no pão de cada dia, é no tratamento. Os fazendeiros continuam aí empregando trabalho escravo. Falo mesmo, a gente é tratado feito lixo”, esbraveja.
Josimar Pereira de Freitas preside há quatro anos a associação dos mutilados do massacre de Eldorado dos Carajás. Estava presente no dia 17 de abril e levou um tiro que lhe custou a perna direita.
Três levantamentos foram feitos para averiguar o número de mutilados. O Ministério Público chegou a 69, a Comissão Pastoral da Terra, da Igreja Catíolica, contou 75. Mas, segundo os cálculos do MST, são mais de cem.
Entre as vítimas, vinte receberam uma indenização que varia de 25 a 93 mil reais. Essas pessoas foram cadastradas e seus pedidos encaminhados à Justiça. Com o passar do tempo, mais vítimas procuraram ajuda financeira, mas o prazo para que a Justiça analisasse os casos já tinha expirado.
“A gente nunca achou que isso pudesse acontecer: o próprio Estado partir para cima do povo. Também não acreditamos que depois conseguiríamos alguma coisa de indenização, por isso as pessoas foram se organizando aos poucos”, explica Josimar.
A governadora Ana Júlia Carepa, do Pará, reabriu o caso por decreto e mais 30 pessoas puderam receber indenização de 20 mil reais, valor acordado com a Justiça. Todas as vítimas devem receber também uma pensão vitalícia de 308 reais.
Ainda restam desaparecidos. Para Josimar existem duas hipóteses: os corpos foram esquartejados e escondidos por policiais ou as pessoas que faziam parte da manifestação fugiram da região para sempre. “Nesses dias, como 17 de abril ou 7 de setembro, sempre aparece alguma mãe procurando um filho ou um filho em busca da mãe”, conta.
Josimar tira o sustento do lote de terra que cultiva no assentamento. Cria porcos, galinhas e bezerros. Cultiva milho, cana, arroz, entre outros produtos. Sem a perna, diz que sente terríveis dores nas costas.
“Imagina quando eu tenho de carregar um saco de 70 quilos de terra. Uma perna é falsa, então apóio todo o peso na outra e aí atrapalha o corpo inteiro. Como as minhas costas, por exemplo. A sequela física é horrível e vai piorando com os anos, mas a psicológica é muito maior”.
No assentamento 17 de abril vivem hoje 45 mutilados. “Muitos espalharam-se pela região, tiveram medo de voltar para cá. Eu não tenho medo. Para mim, foi aí que a luta começou”, declara Josimar.
Como diria o Silvio Tendler, quando a barbárie esmaga a utopia...
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