Reproduzo aqui a coluna de Rubem Alves, publicada hoje (domingo, 08 de agosto), no jornal de Campinas "Correio Popular". Rubem Alves é um dos fundadores da chamada "teologia da libertação" e nessa coluna ele transcreve um texto do filósofo Pascal Mercier (pseudônimo de Peter Bieri). Independentemente de qualquer espécie de religão, há grande beleza na catedral de Bieri. Além disso, complementa o post do Danilo Santos, abaixo, sobre o plebiscito da propriedade de terra.
A CATEDRAL - Por Rubem Alves
“A terra!
Esse grande templo abandonado pelos deuses,
a obrigação do homem é povoá-lo de ídolos à sua imagem,
indizíveis, rostos de amor e
pés de barro.”
(A. Camus)
Por vezes eu me defronto com textos de
tanta beleza e profundidade que sinto vontade de silenciar minhas
palavras para que apenas a beleza e a profundidade sejam sentidas. Hoje
não resisti. Resolvi me calar. A primeira frase me chegou como uma onda
vinda de funduras marinhas e estremeceu minha alma. Vinícius se sentiu
como “um círio numa catedral em ruínas”. Luto para manter de pé a minha
catedral, torres, vitrais, sinos, órgão, espaços silenciosos... Essa
catedral é a minha alma... Transcrevo o texto de Pascal Mercier, do
livro Trem noturno para Lisboa.
“Não quero viver em um mundo sem catedrais.Preciso de sua beleza e da sua
transcendência. Preciso delas contra a vulgaridade do mundo. Quero
erguer o meu olhar para seus vitrais brilhantes e me deixar cegar pelas
cores etéreas. Preciso de seu esplendor. Preciso dele contra a suja
uniformidade das fardas. Quero cobrir-me com o frescor
seco das igrejas. Preciso de seu silencio imperioso. Preciso dele contra
a gritaria no pátio da caserna e a conversa frívola dos oportunistas. Quero escutar o som oceânico do
órgão, essa inundação de sons sobrenaturais. Preciso dele contra a
estridência ridícula das marchas.
Amo as pessoas que rezam. Preciso de sua imagem. Preciso dela contra o veneno traiçoeiro do supérfluo e da negligencia. Quero ler as poderosas palavras
da Bíblia. Preciso da força irreal de as poesias. Preciso dela contra o
abandono da linguagem e a ditadura das palavras de ordem. Um mundo sem essas coisas seria um mundo no qual eu não gostaria de viver.
Mas existe ainda um outro mundo no qual eu não quero viver: Um mundo em que se demoniza o corpo e o
pensamento independente e onde as melhores coisas que podemos
experimentar são estigmatizadas e consideradas pecado. O mundo em que nos é exigido
amar os tiranos, os opressores e assassinos, mesmo quando seus brutais
passos marciais ecoam atordoantes pelas vielas ou quando se esgueiram,
silenciosos e felinos, como sombras covardes pelas ruas e travessas para
enterrar, por trás, o aço faiscante no coração de suas vítimas.
Entre todas as afrontas que se
lançaram do alto dos púlpitos as pessoas, uma das mais absurdas é, sem
duvida, a exigência de perdoar e ate de amar essas criaturas. Mesmo se
alguém o conseguisse isso significaria uma falsidade sem igual e um
esforço de abnegação desumano que teria que ser pago com a mais completa
atrofia. Esse mandamento, esse desvairado e absurdo mandamento do amor
para com o inimigo, serve apenas para quebrar as pessoas, para lhes
roubar toda a coragem e toda a autoconfiança e para torná-las maleáveis
nas mãos dos tiranos, para que não consigam encontrar forças para se
levantar contra eles, se necessário, com armas.
Não quero viver em um mundo sem
catedrais. Preciso do brilho de seus vitrais, de sua calma gelada, de
seu silencio imperioso. Preciso das marés sonoras do órgão e do sagrado
ritual das pessoas em oração. Preciso da santidade das palavras, da
elevação da grande poesia. Preciso de tudo isso. Mas não menos necessito
da liberdade e do combate a toda a crueldade. Pois uma coisa não é nada
sem a outra. E que ninguém me obrigue a escolher.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário