O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Rubem Alves e a Catedral

Reproduzo aqui a coluna de Rubem Alves, publicada hoje (domingo, 08 de agosto), no jornal de Campinas "Correio Popular". Rubem Alves é um dos fundadores da chamada "teologia da libertação" e nessa coluna ele transcreve um texto do filósofo Pascal Mercier (pseudônimo de Peter Bieri). Independentemente de qualquer espécie de religão, há grande beleza na catedral de Bieri. Além disso, complementa o post do Danilo Santos, abaixo, sobre o plebiscito da propriedade de terra.


A CATEDRAL - Por Rubem Alves

“A terra!
Esse grande templo abandonado pelos deuses,
 a obrigação do homem é povoá-lo de ídolos à sua imagem,
indizíveis, rostos de amor e
pés de barro.”
(A. Camus)
Por vezes eu me defronto com textos de tanta beleza e profundidade que sinto vontade de silenciar minhas palavras para que apenas a beleza e a profundidade sejam sentidas. Hoje não resisti. Resolvi me calar. A primeira frase me chegou como uma onda vinda de funduras marinhas e estremeceu minha alma. Vinícius se sentiu como “um círio numa catedral em ruínas”. Luto para manter de pé a minha catedral, torres, vitrais, sinos, órgão, espaços silenciosos... Essa catedral é a minha alma... Transcrevo o texto de Pascal Mercier, do livro Trem noturno para Lisboa.

“Não quero viver em um mundo sem catedrais.Preciso de sua beleza e da sua transcendência. Preciso delas contra a vulgaridade do mundo. Quero erguer o meu olhar para seus vitrais brilhantes e me deixar cegar pelas cores etéreas. Preciso de seu esplendor. Preciso dele contra a suja uniformidade das fardas. Quero cobrir-me com o frescor seco das igrejas. Preciso de seu silencio imperioso. Preciso dele contra a gritaria no pátio da caserna e a conversa frívola dos oportunistas. Quero escutar o som oceânico do órgão, essa inundação de sons sobrenaturais. Preciso dele contra a estridência ridícula das marchas.

Amo as pessoas que rezam. Preciso de sua imagem. Preciso dela contra o veneno traiçoeiro do supérfluo e da negligencia. Quero ler as poderosas palavras da Bíblia. Preciso da força irreal de as poesias. Preciso dela contra o abandono da linguagem e a ditadura das palavras de ordem. Um mundo sem essas coisas seria um mundo no qual eu não gostaria de viver.

Mas existe ainda um outro mundo no qual eu não quero viver: Um mundo em que se demoniza o corpo e o pensamento independente e onde as melhores coisas que podemos experimentar são estigmatizadas e consideradas pecado. O mundo em que nos é exigido amar os tiranos, os opressores e assassinos, mesmo quando seus brutais passos marciais ecoam atordoantes pelas vielas ou quando se esgueiram, silenciosos e felinos, como sombras covardes pelas ruas e travessas para enterrar, por trás, o aço faiscante no coração de suas vítimas.

Entre todas as afrontas que se lançaram do alto dos púlpitos as pessoas, uma das mais absurdas é, sem duvida, a exigência de perdoar e ate de amar essas criaturas. Mesmo se alguém o conseguisse isso significaria uma falsidade sem igual e um esforço de abnegação desumano que teria que ser pago com a mais completa atrofia. Esse mandamento, esse desvairado e absurdo mandamento do amor para com o inimigo, serve apenas para quebrar as pessoas, para lhes roubar toda a coragem e toda a autoconfiança e para torná-las maleáveis nas mãos dos tiranos, para que não consigam encontrar forças para se levantar contra eles, se necessário, com armas.

Não quero viver em um mundo sem catedrais. Preciso do brilho de seus vitrais, de sua calma gelada, de seu silencio imperioso. Preciso das marés sonoras do órgão e do sagrado ritual das pessoas em oração. Preciso da santidade das palavras, da elevação da grande poesia. Preciso de tudo isso. Mas não menos necessito da liberdade e do combate a toda a crueldade. Pois uma coisa não é nada sem a outra. E que ninguém me obrigue a escolher.”

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