O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Show de Lançamento - Revista e CD da Cia Antropofágica




SHOW DE LANÇAMENTO
Revista Bucho Ruminante nº0 e CD de Repertório dos 10 Anos de Antropofágica

Amanhã, terça-feira, 29 de janeiro, às 21h

Como parte da Mostra de 10 Anos do grupo, a Antropofágica convida a todos para o Show de Lançamento do CD de Repertório e da Revista Bucho Ruminante nº0, que traz além de artigos e entrevistas com colaboradores, um Dossiê com a trajetória do grupo.
O Show acontecerá no Espaço Pyndorama nesta terça-feira, 29 de Janeiro de 2013, às 21h.

Para ouvir duas amostras das músicas do CD:
https://soundcloud.com/antropofagica/maquinas
https://soundcloud.com/antropofagica/vejamvoces

Espaço Pyndorama 
Rua Turiassú, 481, Perdizes, São Paulo (Próximo ao metrô Barra Funda)
Reservas e informações: 11 3871-0373
Email: contato@pyndorama.com

sábado, 19 de janeiro de 2013

Os Mortos - Ferreira Gullar

os mortos vêem o mundo
pelos olhos dos vivos

eventualmente ouvem,
com nossos ouvidos,
certas sinfonias
algum bater de portas,
ventanias

Ausentes
de corpo e alma
misturam o seu ao nosso riso
se de fato
quando vivos
acharam a mesma graça

 Ferreira Gullar

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

10 anos de Antropofágica – Mostra de Repertório – Janeiro/2013











Como atividade comemorativa dos 10 anos de grupo, a Antropofágica realiza mostra com alguns de seus trabalhos.

Para ver o arquivo de divulgação da mostra, clique aqui.

Sábado, 19 de janeiro
15h – Terror e Miséria no Novo Mundo – Parte I: Estação Paraíso
17h – Entre a Coroa e o Vampiro – Terror e Miséria no Novo Mundo – Parte II: O Império
20h – Terror e Miséria no Novo Mundo – Parte III: A República

Terça-feira, 22 de janeiro, às 20h
Via Crucys à Brazyleira

Quarta-feira, 23 de janeiro, às 20h
Zumbi or not Zumby

Quinta-feira, 24 de janeiro, às 21h
A Tragédia de João e Maria: Teatro da Deformação

Sexta-feira, 25 de janeiro, às 21h
Kabaré Antropofágico

Espaço Pyndorama
Rua Turiassú, 481, Perdizes, São Paulo (Próximo ao metrô Barra Funda)
Reservas e informações: (11) 3871-0373. Estacionamento conveniado no local.
Email: contato@pyndorama.com
Todas as apresentações são gratuitas e fazem parte do projeto Liberdade em Pi(y)ndorama, contemplado pela Lei Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

FRANZ KAFKA (em carta a Oskar Pollak)



“No fim das contas, penso que devemos ler somente livros que nos mordam e piquem. Se o livro que estamos lendo não nos sacode e acorda como um golpe no crânio, por que nos darmos o trabalho de lê-lo? Para que nos faça feliz, como diz você? Seríamos felizes da mesma forma se não tivéssemos livros. Livros que nos façam felizes, em caso de necessidade, poderíamos escrevê-los nós mesmos. Precisamos é de livros que nos atinjam como o pior dos infortúnios, como a morte de alguém que amamos mais do que a nós mesmos, que nos façam sentir como se tivéssemos sido banidos para a floresta, longe de qualquer presença humana, como um suicídio. É nisso que acredito.”

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Sem ligar para convenções

 Matéria Original: http://www.brasildefato.com.br/node/11595

 Sem ligar para convenções


“Nós nos apropriamos de produtos da indústria cultural, mas sem nos apropriarmos positivamente da ideologia que eles carregam. Trata-se de uma apropriação crítica”
16/01/2013

Eduardo Campos Lima,
de São Paulo (SP)

Historicamente, até que os trabalhadores pudessem reivindicar como válidas as formas artísticas que desenvolveram para tratar dos assuntos de seu interesse, todas as obras eram avaliadas com base em critérios estabelecidos pela burguesia. No teatro, as peças tinham que se fundamentar unicamente no diálogo entre personagens que viviam em um universo totalmente autônomo. Diante do público, desenrolava-se uma história com começo, meio e fim, na qual as personagens – dotadas de profundidade psicológica – colocavam em conflito suas vontades e decisões. Quando uma encenação não conseguia obedecer a todas essas exigências, porque tratava de assuntos que extrapolavam a esfera das decisões individuais, por exemplo, não era considerada bom teatro. Nada disso tem valor hoje em dia, uma vez que trabalhadores e artistas consequentes lutaram duramente para conquistar o direito de tratar de política no teatro. Mas muitos críticos e produtores continuam pautando-se por esses conceitos.
    
“Colocamos Maiakovski e Chaves dentro do mesmo espetáculo”,
aponta a atriz Ruth Melchior - Foto: Reprodução
       

A Cia. Antropofágica, que fica em cartaz até 27 de janeiro com Terror e Miséria no Novo Mundo Parte III, rejeita até as últimas consequências as convenções da burguesia para a arte. A exigência de unidade de estilo é a mais desrespeitada pelo grupo, que lança mão de inúmeras linguagens para debater temas ligados à vida política brasileira, de 1889 para cá.

Última parte da trilogia Liberdade em Pi(y)ndorama, iniciada em 2008 – que abordou em seus dois segmentos iniciais o período colonial e o Império –, a peça tem como assunto a luta de classes no Brasil republicano e seus desdobramentos no sistema político, na sociabilidade e na cultura. “A peça é dividida em quadros: cada um remete a diferentes linguagens e exige um tipo diferente de interpretação. Não há um ator principal nem uma fábula única”, explica o diretor Thiago Vasconcelos.

Três eixos

A encenação tem três eixos principais, que se interpenetram a todo instante. O primeiro procura reconstituir os fundamentos da teoria contrarrevolucionária brasileira. O procedimento escolhido para materializar a ideologia da elite é a autópsia: médicos eugenistas promovem um exame do corpo da República, identificando nele células cancerígenas que precisam ser extirpadas – os movimentos sociais. “Por meio da terminologia médica, abordamos o projeto da elite de eliminação dos levantes populares”, aponta Vasconcelos. As teorias científicas racistas do começo do século 20 são relacionadas às políticas higienistas praticadas hoje em dia.

Outra camada da peça aborda as relações entre a construção da República brasileira e o campo da disputa simbólica, dominado pela indústria cultural. “São quadros que, ao mesmo tempo em que falam sobre a situação histórica do Brasil a partir de alegorias, fazem crítica à pasteurização operada pela indústria cultural”, afirma o diretor. Um recurso frequente é a paródia, cujos alvos podem ser desfiles de escola de samba ou filmes de faroeste.

Por fim, há o eixo das alegorias – como o Vampiro, que personifica o próprio capital –, as quais perpassam todos os quadros, de maneira a comentá-los, criticá-los ou relacioná-los à totalidade social. Em todos eles, há o uso de diferentes linguagens. “Usamos de expedientes como delírios poéticos, documentário, teatro de revista, rapsódia e texto autoral, que pode ser tanto diálogo como textos poéticos, produzidos por nós ou montados a partir da obra de Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Maiakovski”, enumera Vasconcelos.

Maiakovski e Seu Madruga

Como o grupo não acata a normatização tradicional do teatro, também repudia as barreiras entre arte erudita e cultura popular, tradicionalmente estabelecidas pelas elites para desqualificar as linguagens artísticas dos trabalhadores. Recusa-se ainda a dialogar apenas com acadêmicos, de modo que toma emprestados gêneros e elementos midiáticos. “Optamos por não cortar o fio das referências populares, as quais hoje vêm da indústria cultural. Dialogamos com o filme Matrix e o seriado Os Simpsons, mas também com a obra de Schoenberg”, argumenta Vasconcelos.

“Colocamos Maiakovski e Chaves dentro do mesmo espetáculo”, aponta a atriz Ruth Melchior. As personagens do seriado Chaves aparecem em um quadro sobre gentrificação. “É uma cena em que a vila do Chaves é destruída para a construção de um condomínio de luxo – um tema da pauta política contemporânea”, explica o diretor Vasconcelos. Enquanto Seu Madruga e os outros moradores do cortiço são despejados, são projetadas em um telão imagens de programas televisivos em que tropas de polícia pacificadora e atores de novela aparecem lado a lado.

Também a alegoria do capital, o Vampiro, vincula-se a elementos da indústria cultural. “Não se trata de uma escolha gratuita colocar um vampiro na peça. Marx diz que o capital é como um vampiro que suga os trabalhadores. Mas essa é uma referência da atualidade, ao mesmo tempo. Os jovens estão acompanhando histórias de vampiros no cinema e na televisão. Queremos dialogar com as pessoas que estão em contato com isso”, analisa Vasconcelos. O grupo opta, dessa forma, por brincar com referências canônicas e não canônicas, com obras que são consideradas artísticas e com produções tidas como lixo cultural. “Nós nos apropriamos de produtos da indústria cultural, mas sem nos apropriarmos positivamente da ideologia que eles carregam. Trata-se de uma apropriação crítica”, completa o ator Danilo Santos.

Construção coletiva
A encenação foi inteiramente construída de forma coletiva. “Por mais que, às vezes, apareça um texto de um ator ou do diretor, tem sempre algo que foi construído por todos. A presença do ator em cena se faz continuamente”, afirma Ruth Melchior.

Os quadros finais têm esse aspecto exacerbado. “É quando o grupo toma partido e demonstra sua posição, por meio do que chamamos de epifanias revolucionárias”, explica Thiago Vasconcelos. A peça termina com uma Santa Ceia, da qual tomam parte todos os monstros alegóricos e as diversas personificações da burguesia, que degustam o corpo da República. “É aí que mostramos desejos e imagens de como o mundo poderia ser”, conta. Tem início uma longa e festiva montagem de versos de Maiakovski, Oswald de Andrade e da Internacional, selecionados e encadeados por todos os membros do grupo. “A Cia. Antropofágica é um grupo de esquerda – de diversas variantes de esquerda. A composição exige que procuremos contemplar a todos, portanto sempre buscamos textos que tenham um caráter anticapitalista, porque o anticapitalismo é consenso entre nós. A discussão parte daí”, conclui Vasconcelos.

A diversidade na formação do grupo talvez seja uma causa da riqueza de formas que a Cia. Antropofágica emprega em suas encenações. O grupo não se contenta com a tradição do teatro político da esquerda – procura, ao contrário, refuncionalizar todos os elementos de que lança mão, de modo a dar-lhes sempre o sentido político que julga necessário.

Serviço
Terror e Miséria no Novo Mundo Parte III
(Liberdade em Pi(y)dorama – A República)
Direção: Thiago Vasconcelos
De 12 a 27 de Janeiro, sábados às 20h e domingos às 19h
Ingressos gratuitos
Espaço Cultural Pyndorama – 40 lugares
Rua Turiassú, 481, Perdizes – São Paulo (SP) – próximo ao metrô Barra Funda.
Contato: (11) 3871-0373 – contato@pyndorama.com

Além da peça, que fica em cartaz até o fim do mês, a Cia. Antropofágica dá início, no dia 19 (sábado), a uma mostra de seu repertório, comemorando 10 anos de atividades.
Programação
Sábado, 19 de janeiro:
15h – Terror e Miséria no Novo Mundo – Parte I: Estação Paraíso
17h – Entre a Coroa e o Vampiro – Terror e Miséria no Novo Mundo – Parte II: O Império
20h – Terror e Miséria no Novo Mundo – Parte III: A República
Terça-feira, 22 de janeiro, às 20h: Via Crucys à Brazyleira
Quarta-feira, 23 de janeiro, às 20h: Zumbi or not Zumby
Quinta-feira, 24 de janeiro, às 21h: A Tragédia de João e Maria: Teatro da Deformação
Sexta-feira, 25 de janeiro, às 21h: Kabaré Antropofágico

Interferência (Ferrez) - Entrevista (Eduardo - Facção Central)






sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

A PALAVRA DOS MORTOS

texto de Jean Wyllys, publicado originalmente em http://www.brasil247.com/+9o5k2


Diz-se que uma imagem vale mais que mil palavras, mas há palavras que mil imagens não traduzem: preconceito é uma delas. Ao contrário: as imagens, sejam quantas forem, podem reforçar aquilo a que se refere a palavra preconceito. Esta palavra também não pode ser traduzida por números nem estatísticas. Estes, porém, sempre atraem ou despertam palavras.

Ontem, por exemplo, no rastro da divulgação, nos principais portais de notícias, das estatísticas do Grupo Gay da Bahia acerca dos homicídios motivados por homofobia (o conjunto dos atos – inclusive dos atos linguísticos - apoiados no preconceito social anti-homossexual, um dos muitos preconceitos socialmente partilhados), vieram muitas palavras: a palavra dos leitores da notícia expressa em comentários publicados logo abaixo da mesma; a palavra dos intelectuais conservadores; as palavras dos políticos reacionários à esquerda e, principalmente, à direita; a palavra dos fundamentalistas cristãos católicos e evangélicos; e até a palavra de um famoso humorista que se diz "politicamente incorreto", mas que, ao fim e ao cabo, apenas põe seu "humor" a serviço da correção e da ortopedia moral que há séculos constrangem e estigmatizam, com violência verbal e/ou física, aqueles "desviantes" da ordem do macho-adulto-branco-heterossexual-e-cristão (ou seja, as mulheres, os negros, os judeus, os indígenas, o povo-de-santo, os gays, as lésbicas, as travestis e transexuais e as pessoas com deficiências; principalmente os mais pobres dentre esses).

Pode-se dizer que as palavras deles (dos leitores da notícia, dos intelectuais conservadores, dos políticos reacionários, dos fundamentalistas cristãos e do humorista) são quase as mesmas - com variações que dependem do grau de instrução e da posição social que cada um ocupa – e têm o mesmo objetivo: silenciar LGBTs e reprimir sua organização política por meio de interpretações deliberadamente equivocadas das estatísticas divulgadas e da conseguinte desqualificação das mesmas.

Não repetirei aqui todos "argumentos" dessa gente – até porque seu preconceito ou má fé não precisa de mais espaço do que já tem! – mas vou destacar um que é recorrente: a estatística de 336 homicídios em 2012 motivados por homofobia (numa proporção de um homossexual morto a cada 26 horas) seria irrelevante já que, no mesmo período, a taxa de homicídios em geral é de mais 50 mil. Ora, os porta-vozes desse "argumento" se não agem de má fé são limitados mesmo. As estatísticas não dizem apenas que 336 homossexuais morreram ano passado. As estatísticas dizem que 336 homicídios motivados por homofobia foram perpetrados em 2012 (o que representa um aumento de 26% em relação a 2011). Ou seja, 336 seres humanos foram assassinados em decorrência de sua orientação sexual ou identidade de gênero; foram mortos apenas porque eram gays, lésbicas, travestis e transexuais ou em circunstâncias em que sua orientação sexual e/ou identidade de gênero contribuiu/contribuíram decisivamente para o homicídio. Esses crimes não podem, portanto, ser dissolvidos nas taxas de homicídios em geral cujas motivações não são a orientação sexual nem a identidade de gênero.

Não conheço até o momento nenhum caso de homem que tenha sido cruelmente assassinado porque era heterossexual, ou seja, apenas pelo fato de que gostava de "comer mulher"; tampouco conheço um caso em que um homem tenha sido morto a pauladas por estar "vestido como homem". Mas posso citar centenas de casos de homens e mulheres que foram mortos apenas pelo fato de gostarem de transar com pessoas do mesmo sexo; e posso citar milhares de caso de pessoas que foram mortas apenas porque estavam vestidas de acordo com sua identidade de gênero. Esses crimes são considerados crimes de ódio porque vitima toda a comunidade à que pertence suas vítimas. Aliás, o fato de se pertencer a essa comunidade é a razão última do crime. Ora, será preciso desenhar para que essa gente entenda o que querem dizer as estatísticas?! Se uma imagem vale mais que mil palavras, talvez eu tente me aventurar pelo desenho pra ver se consigo sensibilizar esses caras (na hipótese de algum deles ser apenas equivocado e não estar agindo de má fé)...

E, por falar em imagem, a que ilustra este texto quer valer mais que as mil palavras não ditas pelo morto retratado. Perdoem-me os mais sensíveis, mas, numa sociedade devota da imagem como a nossa, "educada" pela televisão e pela publicidade, a foto chocante de um homicídio brutal motivado por homofobia talvez sensibilize mais as pessoas do que todas as palavras já ditas até aqui...

Travesti assassinada em Simões Filho, Bahia


Por mais que eu me esforce, não conseguirei expressar as palavras não ditas pelos mortos... Aquelas palavras que sucumbem aos números frios das estatísticas e à tagarelice dos canalhas insensíveis à desgraça alheia; palavras que expressariam o horror diante da crueldade que põe fim às vidas e a dor insuportável dos que perderam seus entes queridos para a violência.

Quem sabe se com essa imagem principalmente o humorista "politicamente incorreto" e sua claque cruel e sem pensamento mas de riso frouxo não percebam que não se pode fazer piada da dor dos outros? Sou um homem esperançado! Mas sou também um ativista: não fico apenas à espera de dias melhores, atuo para que eles cheguem logo; por isso mesmo, questionei e questiono os insensíveis e opressores, mesmo que isso implique em insultos impublicáveis e em injunções ao silêncio do tipo "você tem que trabalhar para o povo brasileiro e não para a sua classe" – injunções que nada mais são do que frutos da ignorância sobre o meu trabalho como parlamentar; da preguiça de se informar mais e melhor; da despolitização em geral e da falta de raciocínio lógico, uma vez que a minha "classe" pertence ao povo brasileiro.

De mais a mais, não vejo ninguém reclamar dos parlamentares ruralistas nem dos evangélicos por defenderem apenas seus interesses em casas legislativas; logo, ainda que eu atuasse para defender só os interesses de LGBTs (o que não é verdade; qualquer pesquisa básica mostrará isso), ainda assim eu estaria honrando o mandato que conquistei no jogo democrático. Não há insulto ou injunção ao silêncio que me detenha ou que me impeça de trazer, à luz, a palavra dos mortos!



segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Tímidos, Recatados, Panfletários [...]

Cada texto publicado, cada debate realizado, cada questão ou pensamento levantado, em nosso tempo - falo do fim do século 20 até os tempos de hoje -, enquanto substância crítica ao mundo (capitalista) que vivemos, mas que ainda se dedicam ao debate das partes, são recorrentes. Mas esta tal recorrência se justifica não pela diversidade, e pluralidade sadia de pontos de vista, mas primeiro porque essas partes do todo são elementos determinantes para o funcionamento dele  -  nascidas e possíveis apenas a partir do universal, de sua superestrutura; por conseguinte, essas partes, na sociedade capitalista são absolutamente fragmentadas, sem perder sua relação de determinação com seu deus ex machina; deste modo, são colocados como problemas mais isolados. No entanto, os mais astutos, entendem que não passa de farsa. No atualíssimo momento, vemos este movimento, no Brasil - não confundimos então que tal movimento não é histórico e universal, enquanto característica matriz do capitalismo -, acontecendo como uma legitimação das lutas individuais, ou de grupos ultra-setorizados, cujo o motor está na ideia de "participação do cidadão nas decisões de sua pátria". Isto só  é possível a partir do momento em que o governo federal é "liderado pelo PT", que, diga-se de passagem,  na luta das partes - e de classes - desapropriou menos terras, e deu passos muito menores, que Sarney, e FHC, por exemplo:

Abre parênteses:

" CC: A reforma agrária é uma prioridade do governo Lula? Anos se passaram sem a atualização dos índices de produtividade da terra (agora, finalmente, minimamente modificados), ainda há pouco se assinou a MP 458, batizada de "MP da Grilagem" etc. etc. Não tem ficado cada dia mais claro que há uma postura evidente de comprometimento com o agronegócio?
 
MS: Temos clareza de que a reforma agrária, no governo Lula, ficou para trás atropelada pelo agronegócio, e nós percebemos isso por uma série de coisas, começando pelo avanço nos últimos anos das transnacionais no país. Elas não se apropriam só da terra, tomam conta de toda a linha de produção do campo, da terra, mas também das sementes, da água, toda a cadeia produtiva do campo. Sem contar os investimentos que essas empresas e os fazendeiros mais atrasados, do latifúndio, têm recebido do governo federal, através do BNDES e de vários programas nos últimos anos. O agronegócio produz 120 bilhões de reais, mas o governo injeta 97 bilhões para isso, em especial pelo BNDES. Então, o que o agronegócio produz para a sociedade?
 
Além disso, o agronegócio usa agrotóxicos, venenos e ainda faz propaganda disso, como se fosse algo bom. Hoje o Brasil é campeão de consumo de veneno no mundo, essa indústria movimenta 7 bilhões de reais por ano. Não há preocupação ambiental, com as derrubadas das florestas, com a apropriação da biodiversidade, e isso tudo durante o governo Lula. 
Há também os transgênicos, estão trabalhando pra empurrá-los. E é uma política patrocinada pelo governo. Então, não há espaço para a reforma agrária.
 
Lula tem falado que fez a maior reforma agrária, mas o que ele fez foi regulamentação fundiária - que tem que ser feita também, mas não se trata de reforma agrária, porque não descentraliza a terra, não mexe na estrutura fundiária. Essa política de reforma agrária é só para evitar os conflitos. O governo federal quer fazer reforma agrária sem conflito, mas isso não existe, uma política de reforma agrária no Brasil, país que mais concentra terra no mundo, tem que ter ofensiva, tem que ter disputa pela terra. Isso que o governo faz é política paliativa, assistencialista, que não destrói o latifúndio, não democratiza, não descentraliza."

(Coordenadora nacional do MST Marina dos Santos em entrevista para o Correio cidadania, após a morte de mais um militante do Movimento de Trabalhadores Sem Terra. Assassinado pela polícia militar do Estado)

Fecha parênteses.

Este lugar, comumente chamado de "cidadania" pelos reformistas e traidores da classe trabalhadora, tem como principal característica a cooptação como força motriz do capitalismo atual, motivada não mais pelo grande capitalista do começo do século 20, mas por  títeres - por diversos momentos ventríloquo - da própria classe trabalhadora. O que por sua vez, dá origem a uma nova camada da eterna volta ao debate das partes: aqueles que teoricamente deveriam se organizar enquanto classe combatente divergem sobre os mais específicos pontos, cabe entender até onde são pontos determinantes de um "racha, ou se não passam de "perfumaria".

Esta seria um introdução para o assunto principal - mesmo achando que o texto será menor que esta primeira parte - de como os artistas-militantes engendrados por essa orgia ideológica - muito mais complexa, é  verdade - produzem sentido nos dias de hoje, seja quais forem suas poéticas, e  linguagens.

Acredito que o primeiro ponto seja o mais importante e comum de todos: Até onde a arte efetivamente transforma a realidade? 

Na medida de em que há humanidade, o homem existe em sociedade, cada ser humano, o mais isolado que seja, vive pois a sua volta há frutos, inclusive ele mesmo, da elaboração e transformação da natureza. O artista, por sua vez, nasce modificando a natureza em primeiro momento, depois olhando sua transformação  invertendo pontos-de-vista, expondo relações, materializando a imaginação, as ideias que quando estão, única e simplesmente na cabeça, não existem até que ganhem forma. Para isto este homem, artista, pois ambos são naturalmente a mesma coisa, vive num espaço e num tempo - histórico e material. Seu ponto de vista e sua forma de estar no mundo são determinados por suas relações, seus movimentos, suas escolhas, e ações dentro deste crivo espaço-temporal.

Ao passo que observa o mundo, suas modificações e pelo o que é regido, seu trabalho também se transforma. Produz obra boas, algumas resistentes ao seu tempo, algumas fugitivas ao seu tempo, apenas consideradas  depois da inexistência física-corporal do autor. 

A estética, então, de cada linguagem - independente da diversidade de ferramentas, procedimentos e poéticas que cada linguagem proporciona, mas que, sim, modificam seus objetos a partir de suas escolhas- é produto de como o mundo se encontra configurado em diversas épocas.

O século XXI, se configura de maneira bastante diferente ao anterior. Se olharmos atentamente para o fim do século XX, por exemplo, veremos uma produção cinematográfica, em sua retomada, com uma produção grande de filmes da boca do lixo, por exemplo, além de ícones do cinema novo que, em parte, começariam a enveredar politica-esteticamente, em sua atividade  específica e em sua participação critica como cidadão do mundo, e por sua vez no lugar onde ambas as coisas não mais se separam, "para o outro lado da força"(infelizmente, o mais forte). De qualquer forma,  a diversidade de produção, ainda se dava pela eterna determinação do sistema econômico, e dos recursos e equipamentos "disponíveis" para execução de projetos, e que consequentemente era um divisor de águas no que dizia  respeito ao que cada individuo ou grupo conseguia produzir enquanto conhecimento a partir do tipo/quantidade/qualidade de formação que teve.

Hoje, o lato sensu é o mesmo, a luta de classes continua existindo, continuamos vivendo numa sociedade determinada pelo capitalismo, onde até as coisas resistíveis se tornam mercadoria - não é a toa que, hoje, o que mais se vê nas propagandas e programas mais capitalistas são os "bad (girls)boys", (as)os "poligâmicos(as)", que, por exemplo, podem ser ao mesmo tempo extremamente religiosos, daqueles que vão à igreja todo o fim de semana. Mas apesar desta semelhança, é inegável que a evolução dos mecanismos de venda de tecnologia lançada em mercado, que funcionam a partir da obsolescência programada universal, mas que ficam sempre, assim como todos os outros setores (habitação, saúde, etc) num movimento de chegada primeiro as camadas mais altas da burguesia e na medida em que se tornam lixo ultrapassado chegam sequencialmente as outras camadas abaixo, é determinante para a produção artística atual.

O número de vídeos, curtas, (e seja lá quais nomes devem receber), em suma de produção audiovisual, atualmente, é assustador. Esta quantidade de material audiovisual cresceu na medida em que dispositivos como os celulares passaram a ter acoplados a eles câmeras de vídeo e/ou foto de fácil conexão a um computador, com conexão de banda larga na internet, e, por sua vez, de portais que possibilitassem o upload dos vídeos.

O mais interessante deste panorama atual, é o de como o senso comum passou a definir e pautar o belo, o estético, o bom, o ruim. Não precisamos, voltar a Grécia Clássica e ao culto aos belos corpos e etc. que mantém uma relação específica com seu tempo, mas não livre de questionamentos críticos  aos seus padrões, como fez Sócrates, por exemplo; assim como não precisamos entender necessariamente o porquê no começo do século XX, a mulheres mais "cheinhas" eram as mais atraentes; não, talvez o mais importante seja saber que independente do padrão determinante de conceituação de beleza, tudo é determinando por interesses estruturais de funcionamento da sociedade, e nosso caso do capitalismo - mas também não me nego a considerar que mesmo não vivendo o capitalismo Sócrates foi morto por ser sábio, e também, entre várias outras acusações, de viver num estado que crê em Deus, e ser, supostamente, ateu. Não podemos inclusive culpar rasteiramente o cinema clássico americano, que em muito, contraditoriamente, contribuiu para a linguagem cinematográfica - vide "O Nascimento de uma Nação" (D. W. Griffith, 1915),  ainda que, neste caso, mais em relação ao nascimento e descobrimento de rumos da linguagem, do que necessariamente rotulado de clássico.

O fato é que a gigantesca história e fatos que determinaram a forma com que o senso comum enxerga o belo hoje leva a uma contradição (comum inclusive entre a própria categoria artística que revindica um mundo não-capitalista) : trata-se de revindicar a clareza do  áudio, a limpeza da imagem, o ultra-realismo das câmeras dsrl (em voga), mas ainda sim ficarem horas e horas assistindo o vídeo de um "gato fumando charuto", cujo o som é inaudível, e imagem extremamente pixelizada, mas absorção é deliciosamente rápida e confortante - só não mais que a cocaína.

( Vale lembrar, que estamos falando de fenômenos de uma sociedade cada vez mais doente, violenta, onde seus indivíduos tendem a se explorar e dar cada vez menos importância à vida uns dos outros, e, não de capar a necessidades de  momentos de pura abstração, ou, simplesmente que o individuo precisa se desligar da racionalidade densa das coisas do mundo)

Este último parágrafo acima, me fez lembrar de um vídeo de um grupo de comediantes, curta-metragistas, que respeito muito enquanto fazedores, de humor muito interessante, mas que em alguns momentos, sem deixar este humor de qualidade de lado, fazem um desserviço à linguagem (necessário para que a proposta se realize, mas que não leva em conta outras camadas de atividade de sua produção, e em alguma medida só se utilizam de alguns privilégios conseguidos dentro do mercado, ou de um espacinho onde pode ser críticos) como no vídeo abaixo:


 
Não que o grupo não seja digno-possuidor de uma irresponsabilidade que admiro muito, mas este pequeno curta sintetiza de forma muito clara a contradição do belo, que falei dois parágrafos acima. Uma vez que, por exemplo, uma série de pessoas que adoraram este vídeo, consideram os dois filmes abaixo ruins, mal-feitos, mal-filmados"amadores", em outras palavras não vislumbram outra forma de narrar:




Esta distorção que nos faz incapaz de ver outras milhares de possibilidades de se abrir a novas experiências, a novos tipos de poéticas, é expressada, por exemplo, pela cotidiana ideia enraizada à forceps no sujeito de que câmera não é uma camada narrativa, mas um mero registro, ou a música com restrita à ambientação e intensificação de emoções e não como uma narradora. Como "Via Láctea", de Lina Chamie, expõe de forma incrível:




Trata-se, então de uma produção quase infinita de vídeos feitos todos os dias, de catástrofes  ficcionais, denunciativos, que expõem contradições etc. e, que, teoricamente, deveriam ter o mesmo efeito que um panfleto rodado nos tempos de ditadura. Mas, artisticamente a elaboração é inexistente, fica mais a sensação de conseguir uma imagem e uma cena limpa semelhante a um filme de grande porte, do que necessariamente a criação a transformação de um ponto de vista, de uma realidade. E, politicamente, mesmo os mais fortes, e não são poucos, tomam uma aparência de ficção compositora de um espetáculo da vida real tão atraente, que a única ação daqueles que assistem é freneticamente compartilhar. No geral, todos se diluem no ar. Ninguém por exemplo mais lembra do que aconteceu na semana passada, por mais absurdo ou injusto que seja.

E mesmo o absurdo é atraente em sua aparência, como num filme de ação o importante é ver o molotov queimando tudo ao seu redor, explodindo; o legal ainda é ver que é real quanto mais real, mais legal, mais atrativo. Como a industria porno - tão violenta e capitalista como qualquer linha de montagem -, que por mais que invista nos novos ultra -realistas filmes em full-hd o que ainda mais atrai o público são as tags: estupro, real, flagrantes, etc. Como no vídeo acima ficam as imagens, mas não a simples indagação: será que isso pode ser fruto de um sistema doente, em que as pessoas são tratadas como lixo em todos os setores: saúde, transporte e, por acaso, no inss, orgão governamental que controla, zela - ou deveria zelar - ,simplesmente, pela segurança social do sujeito.    

Dessa maneira, a produção artística,  hoje, se encontra numa sinuca de bico. As leis audiovisuais reproduzem o movimento que o próprio cinema foi criado, em outras palavras as mesmas formas de reprodução capitalista. Não há muita perspectiva de desenvolvimento de pluralidade saudável na diversa gama de vídeos, filmes, curtas, etc., mas sim uma pluralidade de pontos-de-vista confusos e que se sustentam tanto quanto o "gato fumando charuto", ainda menos, já que no número de pessoas que assistem a um vídeo desse é muito maior que pessoas que assistiram a último filme do Sergio Bianchi, por exemplo, ou mesmo de Almodóvar. 

A maior parte dos filmes feitos e exibidos em festivais atualmente, são fruto de confusas ideias não muito bem estabelecidas, pouco combatentes em seus conteúdo politico-estético e incapazes de captar estrutura crítica dos problemas de nosso tempo. No caso do teatro, sobretudo os grupos de teatro em São Paulo, que tem sua história iniciada lá atrás com o Teatro do Oprimido, tem com toda certeza um avanço estético e militante invejável em relação a todos artistas que pretendem seguir o coerente caminho politico-artístico. Mas não escapam de todo este cenário.    

Talvez enquanto artistas de esquerda, formamos algumas certezas que muitas vezes nos prendem a padrões quase que como manuais de "como fazer uma arte correta e combativa". Não que não tenhamos que nos posicionar e fazer uma arte cada vez mais incômoda, mas há muitos cuidados a se tomar. 

Um deles acredito ser aquele em que analisamos, as vezes unilateralmente "que a forma é a forma do conteúdo". Esta frase tem sido pregada quase como um mantra, e positivada a ponto de que ao invés de tentar expor a complexidade de que são compostas as coisas que anteriormente são empurradas goela abaixo como corretas, moralmente aceitas, normais etc., ela se torna algo tão trivial que se esvazia por completo, quase tão parecido quando fazem o termo "dialética", como escutei certa vez:   

1 - Não entendi o que fulano achou do meu trabalho, não sei se gostou ou não.      

2 - É que ele é dialético.  

O fato é que a tentativa de acabar com o maniqueísmo da pergunta, supostamente interpretado como maniqueísta, de "gostar ou não gostar", coloca a dialética não como uma maneira de analisarmos os "fenômenos [...] não só do ponto de vista de suas relações mútuas e de seu mútuo condicionamento, mas também do ponto de vista de seu movimento, de suas transformações e de seu desenvolvimento, do ponto de vista do seu nascimento e da sua morte”**, mas como um método de alguém que não sabe necessariamente observar algo, é confusa e por sua vez, ambígua. Isto se torna cada vez mais perigoso, na medida em que a arte é um espaço cujo a dialética pode ser explorada intensamente, e é o oque possibilita a exposição das camadas e entranhas que é composta a vida, o homem.

Nesta direção, vemos que ainda temos vícios de prática politico-estético que persistem a capam nosso desenvolvimento humano, e artístico  Assim como muitas vezes acreditamos que a arte é capaz de romper uma superestrutura universal por ela mesma. Estes elementos, as vezes confusos, as vezes confundidos, de concepção de arte combativa, e que se posiciona leva a outros vícios que de um lado nos levar a negar a vida de tradições revolucionárias, quase que como uma postura de negação infantil do tipo : isto não dialoga com o povo mais, é museu, não uso", a síndrome de vanguarda; doutro lado, a crença em modelos que foram eficientes em seu tempo, mantém sua base como coerentes para as épocas seguintes, mas que não são tocados em sua fraquezas, sobretudo suas fraquezas estéticas, elaborativas, imaginativas, poéticas, como o caso de Bertold Becht. Neste caso, recorro a Paulo Leminski e seu texto  "tímidos e recatados", que exporá com toda certeza o pesamento de maneira mais responsável que a minha:

"Só o respeito por seu teatro extraordinariamente inventivo e, talvez, um preconceito ideológico ainda nos fazem ver no alemão Bertold Brecht(1898 - 1956) um grande poeta, no século que produziu exageros bem maiores. Com certeza. A obra poética do gênio teatral que inventou o célebre "distanciamento" não suporta confronto com a obra de Vladimir Maiakóvski, um Valimir Khliebnikov, um Ezera pound, um T. S. Eliot. E. E. Cummming, um Fernando Pessoa. Comparada com a destes gigantes, a poesia de Bertold Brecht é tímida formalmente e pedestre em seus achados. Inútil procurar nela os mergulhos abissais dos futuristas russos nos abismos da linguagem  ou as infratoras aventuras gráficas de um Cummings. 

Não teria sentido procurar na poesia deste comunista ortodoxo as originalidades metafisicas e existenciais que seu credo politico, certamente, repudiaria como alienações burguesas. Não que Brecht fosse adepto do simplismo estético e literário do famigerado realismo socialista. [...] Brecht sempre manteve as mais corajosas posições de vanguarda artística, aliada à militiancia politica de esquerda. Mas isso dizia respeito principalmente ao teatro,arte onde [...]inovou como poucos.  

A lírica brechtiana, porém, sempre se moveu num território muito estreito, indo do primarismo métrico do poema. [...]   

Em Brecht encontramos lucidez e ironia, sarcasmo e relâmpagos críticos. Mas também  momentos ridiculamente retóricos, como nesse O Grande Outubro, poesia celebrativa da pior espécie , ode ginasiana em louvor da Revolução Russa. Ou em poemas como [...] Rapidez da Construção do Socialismo, que parece ter sido encomendado por Stálin.  

Esta edição dos Poemas de Brecht é bem o momento de dizer um "basta" a uma idolatria indevida. Como poeta Brecht não merece a fama que desfruta. É um poeta ocasional, que dedicou seu gênio a outra a arte. O grande poeta de esquerda é Maiakóvski. Esse sim soube ver(e fazer) que "não há arte revolucionária sem forma revolucionária". Brecht, porém, nos suscita uma questão inquietante  A velha questão sobre o que é poesia. E suas brevidades prefiguram certas tendências da poesia do século XX, o registro relaxado de certas vivências, o fragmentarismo da dicção, o coloquial sem nobreza.
 
Em seus melhores momentos, Brecht realiza uma poesia que se sustenta apenas na ideia. No saque. Numa fulgurante intuição, que ilumina a realidade e a vida. E parece que isso foi o que ele procurou atingir enquanto poeta. [...]"
  
A leitura de Leminski é bastante acertada, ao passo que não deixa de considerar a grandeza e genialidade de Brecht no teatro, mas de suas limitações na poesia. Esta leitura pode ser recolocada na nova gama artistas que muitas vezes não se revindicam artistas, mas trabalhadores - que de fato são - que vêem na arte a possibilidade de formar bases politicas, mas que, a coisa é tantas vezes repetida  que, por vezes, julgo sinceramente mais importante que sejam verdadeiramente sujeitos de direcionamento politico onde realmente devem haver funções competentes para encaminhamento e organização politica, em um partido - claro, falo de um partido verdadeiramente revolucionário, o que estamos longe ver -, do que na empreitada da produção poética de sentido. 
 
São engendrados por toda essa salada, qual se propõem a combater, mas as perspectivas são tão nebulosas que caem em algo semelhante ao exemplo de Leminski sobre a poesia de Brecht que sucumbiria a determinações de seu credo ideológico;  passam a ver em qualquer proposta, as vezes, simplesmente bem trabalhada, ou com resquícios metafisicos, subjetivos, uma alienação burguesa.

Não se trata, também, de negar que há um número atraente de coisas sendo produzidas, sobretudo, na cena de grupos de teatro de São Paulo, em menor no número no cinema, e ainda menor nas outras linguagens. E que esta cena muitas vezes é sublimada pela crítica conservadora que insiste em empurrar para fora da história aqueles que se propõem a se movimentar criticamente em relação ao mundo. E as formas de sublimação geralmente são das mais baixas como os rótulos de "panfletário" "clichês". Contudo, não ocorre que panfletário é característica de uma produção que se propõem ser voz de resistência, contrária  combatente, num lugar onde só um lado é escutado e a forma com que esta hegemonia se coloca é sempre violenta. E quanto aos clichês, outro oportunismo barato, uma vez que chamam de clichês problemas que não deixaram de existir, entre eles a opressão capitalista, a exploração do trabalho, em suma, a luta de classes, e por isso mesmo devem continuar a serem colocados.

Ainda, assim como os grupos e artistas militantes tem produzido grandes obras, e que talvez fujam ao seu tempo, no sentido de sua absorção, não podemos negar que nosso tempo também produziu, ironicamente reacionários admiráveis, como o Cetano Veloso, ou Gilberto Gil, politicamente um reformista. O tropicalismo é um retrocesso na proposta politico-ideológica do manifesto antropofágico de Oswald de Andrade, e dos ideias de ruptura dos modernistas, mas seria loucura dizer, que por defender, em certo momento de sua obra, uma concepção de mundo que absolutamente somos contra, Caetano ou Gil são músicos horríveis  poetas fracos, pelo contrário. Assim como a grandeza de "Em Busca do Tempo Perdido" de Proust, não está, necessariamente, em seu posicionamento politico, mas em como materializa literariamente suas memórias.  

É claro, o campo politico tem estado cada vez mais ofuscado por conta da geleia geral que outrora o tropicalismo quis fazer-nos acreditar que era do que se tratava nossa estrutura terceiro-mundista-menino-atrevido-metido-a-ser-grande-capitalista, e por isso, sim, devemos nos organizar, e rever nossa própria forma de ponto-de-vista-critico e de ação, uma vez que ao  voltarmos olhos para o mundo, fica cada vez mais difícil fazer concessões mesmo aquilo identificado como primoroso, ainda que, por diversas vezes, em seu sentido mais amplo, parasita.  

(continua)

Notas:
  
  **Lênin

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

"La Espera" de Fabián Bielinsky


Curta argentino inspirado no conto de Jorge Luis Borges que segue abaixo. 



LA ESPERA (original)

Jorge Luis Borges, no livro "El Aleph" (1949).

El coche lo dejó en el cuatro mil cuatro de esa calle del Noroeste. No habían dado las nueve de la mañana; el hombre notó con aprobación los manchados plátanos, el cuadrado de tierra al pie de cada uno, las decentes casas de balconcito, la farmacia contigua, los desvaídos rombos de la pinturería y ferretería. Un largo y ciego paredón de hospital cerraba la acera de enfrente; el sol reverberaba, más lejos, en unos invernáculos. El hombre pensó que esas cosas (ahora arbitrarias y casuales y en cualquier orden, como las que se ven en los sueños) serían con el tiempo, si Dios quisiera, invariables, necesarias y familiares. En la vidriera de la farmacia se leía en letras de loza: Breslauer; los judíos estaban desplazando a los italianos, que habían desplazado a los criollos. Mejor así; el hombre prefería no alternar con gente de su sangre.

El cochero le ayudó a bajar el baúl; una mujer de aire distraído o cansado abrió por fin la puerta. Desde el pescante el cochero le devolvió una de las monedas, un vintén oriental que estaba en su bolsillo desde esa noche en el hotel de Melo. El hombre le entregó cuarenta centavos, y en el acto sintió: “Tengo la obligación de obrar de manera que todos se olviden de mí. He cometido dos errores: he dado una moneda de otro país y he dejado ver que me importa esa equivocación”.

Precedido por la mujer, atravesó el zaguán y el primer patio. La pieza que le habían reservado daba, felizmente, al segundo. La cama era de hierro, que el artífice había deformado en curvas fantásticas, figurando ramas y pámpanos; había, asimismo, un alto ropero de pino, una mesa de luz, un estante con libros a ras del suelo, dos sillas desparejas y un lavatorio con su palangana, su jarra, su jabonera y un botellón de vidrio turbio. Un mapa de la provincia de Buenos Aires y un crucifijo adornaban las paredes; el papel era carmesí, con grandes pavos reales repetidos, de cola desplegada. La única puerta daba al patio. Fue necesario variar la colocación de las sillas para dar cabida al baúl. Todo lo aprobó el inquilino; cuando la mujer le preguntó cómo se llamaba, dijo Villari, no como un desafío secreto, no para mitigar una humillación que, en verdad, no sentía, sino porque ese nombre lo trabajaba, porque le fue imposible pensar en otro. No lo sedujo, ciertamente, el error literario de imaginar que asumir el nombre del enemigo podía ser una astucia.

El señor Villari, al principio, no dejaba la casa; cumplidas unas cuantas semanas, dio en salir, un rato, al oscurecer. Alguna noche entró en el cinematógrafo que había a las tres cuadras. No pasó nunca de la última fila; siempre se levantaba un poco antes del fin de la función. Vio trágicas historias del hampa; éstas, sin duda, incluían errores, éstas, sin duda, incluían imágenes que y también lo eran de su vida anterior; Villari no los advirtió porque la idea de una coincidencia entre el arte y la realidad era ajena a él. Dócilmente trataba de que le gustaran las cosas; quería adelantarse a la intención con que se las mostraban. A diferencia de quienes han leído novelas, no se veía nunca a sí mismo como un personaje del arte.

No le llegó jamás una carta, ni siquiera una circular, pero leía con borrosa esperanza una de las secciones del diario. De tarde, arrimaba a la puerta una de las sillas y mateaba con seriedad, puestos los ojos en la enredadera del muro de la inmediata casa de altos. Años de soledad le habían enseñado que los días, en la memoria, tienden a ser iguales, pero que no hay un día, ni siquiera de cárcel o de hospital, que no traiga sorpresas. En otras reclusiones había cedido a la tentación de contar los días y las horas, pero esta reclusión era distinta, porque no tenía término —salvo que el diario, una mañana trajera la noticia de la muerte de Alejandro Villari. También era posible que Villari ya hubiera muerto y entonces esta vida era un sueño. Esa posibilidad lo inquietaba, porque no acabó de entender si se parecía al alivio o a la desdicha; se dijo que era absurda y la rechazó. En días lejanos, menos lejanos por el curso del tiempo que por dos o tres hechos irrevocables, había deseado muchas cosas, con amor sin escrúpulo; esa voluntad poderosa, que había movido el odio de los hombres y el amor de alguna mujer, ya no quería cosas particulares: sólo quería perdurar, no concluir. El sabor de la yerba, el sabor del tabaco negro, el creciente filo de sombra que iba ganando el patio, eran suficientes estímulos.

Había en la casa un perro lobo, ya viejo, Villari se amistó con él. Le hablaba en español, en italiano y en las pocas palabras que le quedaban del rústico dialecto de su niñez. Villari trataba de vivir en el mero presente, sin recuerdos ni previsiones; los primeros le importaban menos que las últimas. Oscuramente creyó intuir que el pasado es la sustancia de que el tiempo está hecho; por ello es que éste se vuelve pasado en seguida. Su fatiga, algún día, se pareció a la felicidad; en momentos así, no era mucho más complejo que el perro.

Una noche lo dejó asombrado y temblando una íntima descarga de dolor en el fondo de la boca. Ese horrible milagro recurrió a los pocos minutos y otra vez hacia el alba. Villari, al día siguiente, mandó buscar un coche que lo dejó en un consultorio dental del barrio del Once. Ahí le arrancaron la muela. En ese trance no estuvo más cobarde ni más tranquilo que otras personas.

Otra noche, al volver del cinematógrafo, sintió que lo empujaban. Con ira, con indignación, con secreto alivio, se encaró con el insolente. Le escupió una injuria soez; el otro, atónito, balbuceó una disculpa. Era un hombre alto, joven, de pelo oscuro, y lo acompañaba una mujer de tipo alemán; Villari, esa noche, se repitió que no los conocía. Sin embargo, cuatro o cinco días pasaron antes que saliera a la calle.

Entre los libros del estante había una Divina comedia, con el viejo comentario de Andreoli. Menos urgido por la curiosidad que por un sentimiento de deber, Villari acometió la lectura de esa obra capital; antes de comer, leía un canto, y luego, en orden riguroso, las notas. No juzgó inverosímiles o excesivas las penas infernales y no pensó que Dante lo hubiera condenado al último círculo, donde los dientes de Ugolino roen sin fin la nuca de Ruggieri.

Los pavos reales del papel carmesí parecían destinados a alimentar pesadillas tenaces, pero el señor Villari no soñó nunca con una glorieta monstruosa hecha de inextricables pájaros vivos. En los amaneceres soñaba un sueño de fondo igual y de circunstancias variables. Dos hombres y Villari entraban con revólveres en la pieza o lo agredían al salir del cinematógrafo o eran, los tres a un tiempo, el desconocido que lo había empujado, o lo esperaban tristemente en el patio y parecían no conocerlo. Al fin del sueño, él sacaba el revólver del cajón de la inmediata mesa de luz (y es verdad que en ese cajón guardaba un revólver) y lo descargaba contra los hombres. El estruendo del arma lo despertaba, pero siempre era un sueño y en otro sueño el ataque se repetía y en otro sueño tenía que volver a matarlos.

Una turbia mañana del mes de julio, la presencia de gente desconocida (no el ruido de la puerta cuando la abrieron) lo despertó. Altos en la penumbra del cuarto, curiosamente simplificados por la penumbra (siempre en los sueños del temor habían sido más claros), vigilantes, inmóviles y pacientes, bajos los ojos como si el peso de las armas los encorvara, Alejandro Villari y un desconocido lo habían alcanzado, por fin. Con una seña les pidió que esperaran y se dio vuelta contra la pared, como si retomara el sueño. ¿Lo hizo para despertar la misericordia de quienes lo mataron, o porque es menos duro sobrellevar un acontecimiento espantoso que imaginarlo y aguardarlo sin fin, o — y esto es quizá lo más verosímil — para que los asesinos fueran un sueño, como ya lo habían sido tantas veces, en el mismo lugar, a la misma hora?

En esa magia estaba cuando lo borró la descarga.



A ESPERA (tradução)
Jorge Luis Borges, no livro "O Aleph" (1949).

A carruagem deixou-o no quatro mil e quatro dessa rua do Noroeste. Não tinha dado as nove da manhã; o homem percebeu com aprovação os manchados plátanos, o quadrado de terra ao pé de cada um, as respeitáveis casas com varandinha, a farmácia contígua, os desbotados losangos da loja de tintas e da ferraria. Um longo e compacto paredão de hospital fechava a calçada da frente; o sol reverberava, mais ao longe, em algumas estufas. O homem considerou que essas coisas (agora arbitrárias e casuais e em qualquer ordem, como as que se vêem nos sonhos) seriam com o tempo, se Deus quisesse, invariáveis, necessárias e familiares. Na vitrina da farmácia lia-se em letras de fôrma: Breslauer; os judeus estavam deslocando os italianos, que tinham deslocado os nativos. Melhor assim; o homem preferia não alternar com gente de seu sangue.

O cocheiro ajudou-o a descer o baú; uma mulher de ar distraído ou cansado abriu por fim a porta. De seu assento, o cocheiro lhe devolveu uma das moedas, um vintém oriental que estava em seu bolso desde essa noite no hotel de Melo. O homem entregou-lhe quarenta centavos, e no ato ele sentiu: "Tenho obrigação de agir de maneira que todos se esqueçam de mim. Cometi dois erros: dei uma moeda de outro país e deixei ver que esse equívoco me interessa".
Precedido pela mulher, atravessou o vestíbulo e o primeiro pátio. O quarto que lhe haviam reservado dava, felizmente, para o segundo andar. A cama era de ferro, que o artífice havia deformado em curvas fantásticas, representando ramos e pâmpanos; havia, ao mesmo tempo, um alto guarda-roupa de pinho, uma mesa-de-cabeceira, uma estante com livros quase ao nível do chão, duas cadeiras díspares e um lavatório com sua bacia, sua jarra, sua saboneteira e um garrafão de vidro escuro. Um mapa da província de Buenos Aires e um crucifixo adornavam as paredes; o papel era vermelho, com grandes pavões repetidos, de cauda desfraldada. A única porta dava para o pátio. Foi necessário mudar a posição das cadeiras para dar lugar ao baú. O inquilino aprovou tudo; quando a mulher lhe perguntou como se chamava, disse Villari, não como um desafio secreto, não para mitigar uma humilhação que, na verdade, não sentia, mas porque esse nome o perseguia, porque lhe foi impossível pensar em outro. Não o seduziu, certamente, o erro literário de imaginar que assumir o nome do inimigo pudesse ser uma astúcia.

O senhor Villari, no início, não deixava a casa; passadas algumas semanas, começou a sair, por um instante, ao escurecer. Numa noite, entrou no cinema que havia a três quadras. Não passou nunca da última fila; sempre se levantava um pouco antes do fim da sessão. Viu trágicas histórias de bandidos; estas, sem dúvida, incluíam erros; estas, sem dúvida, incluíam imagens que também eram de sua vida anterior; Villari não os percebeu porque a idéia de uma coincidência entre a arte e a realidade lhe era alheia. Docilmente, procurava que as coisas lhe agradassem; queria adiantar-se à intenção com que elas lhe eram mostradas. Ao contrário dos que têm lido romances, ele não se via nunca a si mesmo como personagem da arte.

Nunca lhe chegou uma carta, nem sequer uma circular, mas lia com confusa esperança uma das seções do jornal. À tarde, encostava na porta uma das cadeiras e mateava com seriedade, de olhos postos na trepadeira do muro do contíguo sobrado. Anos de solidão haviam-lhe ensinado que os dias, na memória, tendem a ser iguais, mas que não há um dia, nem mesmo de prisão ou de hospital, que não traga surpresas. Em outras reclusões cedera à tentação de contar os dias e as horas, mas esta reclusão era diferente, porque não tinha fim – a não ser que o jornal, numa manhã, trouxesse a notícia da morte de Alejandro Villari. Também era possível que Villari já tivesse morrido e então esta vida seria um sonho. Essa possibilidade o inquietava, pois não chegou a entender se ela se parecia com alívio ou com desdita; disse a si mesmo que era absurda e a repeliu. Em dias longínquos, menos longínquos pelo passar do tempo que por dois ou três fatos irrevogáveis, desejara muitas coisas, com amor sem escrúpulo; essa vontade poderosa, que movera o ódio dos homens e o amor de alguma mulher, já não queria coisas particulares: só queria perdurar, não concluir. O sabor da erva, o sabor do tabaco negro, o crescente fio de sombra que ia ganhando o pátio.

Havia na casa um cachorro-lobo, já velho. Villari fez amizade com ele. Falava-lhe em espanhol, em italiano e nas poucas palavras que lhe ficaram do rústico dialeto de sua infância. Villari procurava viver no mero presente, sem lembranças nem previsões; as primeiras lhe importavam menos que as últimas. Vagamente acreditou intuir que o passado é a substância de que o tempo está feito; por isso é que este se torna logo passado. Sua fadiga, algum dia, pareceu-se com felicidade; em momentos assim, não era muito mais complexo que o cão.

Numa noite, deixou-o assombrado e trêmulo uma íntima descarga de dor no fundo da boca. Esse horrível milagre ocorreu em poucos minutos e outra vez por volta do amanhecer. Villari, no dia seguinte, mandou buscar um carro que o deixou num consultório dentário do bairro do Once. Aí, arrancaram-lhe o molar. Nesse transe, não esteve mais covarde nem mais tranqüilo que outras pessoas.

Em outra noite, ao voltar do cinema, sentiu que o empurravam. Com ira, com indignação, com secreto alívio, encarou o insolente. Cuspiu-lhe uma injúria soez; o outro, atônito, balbuciou uma desculpa. Era um homem alto, jovem, de cabelo escuro, e o acompanhava uma mulher de tipo alemão; Villari, nessa noite, repetiu a si mesmo que não os conhecia. Entretanto, quatro ou cinco dias se passaram antes que saísse à rua.
Entre os livros da estante havia uma Divina Comédia, com o velho comentário de Andreoli. Menos premido pela curiosidade que por um sentimento de dever, Villari atirou-se à leitura dessa obra capital; antes de comer, lia um canto, e a seguir, em ordem rigorosa, as notas. Não julgou inverossímeis ou excessivas as penas infernais e não pensou que Dante o tivesse condenado ao último círculo, onde os dentes de Ugolino roem eternamente a nuca de Ruggieri.

Os pavões do papel carmesim pareciam destinados a alimentar pesadelos tenazes, mas o senhor Villari não sonhou nunca com um caramanchão monstruoso feito de inextricáveis pássaros vivos. Nos amanheceres sonhava um sonho de fundo igual e de circunstâncias variáveis. Dois homens e Villari entravam com revólveres no quarto ou o agrediam ao sair do cinema ou eram, os três ao mesmo tempo, o desconhecido que o havia empurrado, ou o esperavam tristemente no pátio e pareciam não o conhecer. No fim do sonho, ele tirava o revólver da gaveta da contígua mesa-de-cabeceira (e é verdade que nessa gaveta guardava um revólver) e o descarregava contra os homens. O estrondo da arma despertava-o, mas sempre era um sonho e em outro sonho o ataque se repetia e em outro sonho tinha que tornar a matá-los.

Numa escura manhã do mês de julho, a presença de gente desconhecida (não o ruído da porta quando a abriram) despertou-o. Altos na penumbra do quarto, curiosamente simplificados pela penumbra (nos sonhos do temor sempre tinham sido mais claros), vigilantes, imóveis e pacientes, com os olhos baixos como se o peso das armas os encurvasse, Alejandro Villari e um desconhecido tinham-no alcançado, finalmente. Com um sinal, pediu-lhes que esperassem e voltou-se contra a parede, como se retomasse o sono. Fez isso para despertar a misericórdia dos que o mataram? Ou porque é menos duro suportar um acontecimento espantoso que imaginá-lo ou aguardá-lo indefinidamente? Ou – e isto talvez seja o mais verossímil – para que os assassinos fossem um sonho, como já o haviam sido tantas vezes, no mesmo lugar, à mesma hora?

Nessa magia estava quando o apagou a descarga.