O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Sem ligar para convenções

 Matéria Original: http://www.brasildefato.com.br/node/11595

 Sem ligar para convenções


“Nós nos apropriamos de produtos da indústria cultural, mas sem nos apropriarmos positivamente da ideologia que eles carregam. Trata-se de uma apropriação crítica”
16/01/2013

Eduardo Campos Lima,
de São Paulo (SP)

Historicamente, até que os trabalhadores pudessem reivindicar como válidas as formas artísticas que desenvolveram para tratar dos assuntos de seu interesse, todas as obras eram avaliadas com base em critérios estabelecidos pela burguesia. No teatro, as peças tinham que se fundamentar unicamente no diálogo entre personagens que viviam em um universo totalmente autônomo. Diante do público, desenrolava-se uma história com começo, meio e fim, na qual as personagens – dotadas de profundidade psicológica – colocavam em conflito suas vontades e decisões. Quando uma encenação não conseguia obedecer a todas essas exigências, porque tratava de assuntos que extrapolavam a esfera das decisões individuais, por exemplo, não era considerada bom teatro. Nada disso tem valor hoje em dia, uma vez que trabalhadores e artistas consequentes lutaram duramente para conquistar o direito de tratar de política no teatro. Mas muitos críticos e produtores continuam pautando-se por esses conceitos.
    
“Colocamos Maiakovski e Chaves dentro do mesmo espetáculo”,
aponta a atriz Ruth Melchior - Foto: Reprodução
       

A Cia. Antropofágica, que fica em cartaz até 27 de janeiro com Terror e Miséria no Novo Mundo Parte III, rejeita até as últimas consequências as convenções da burguesia para a arte. A exigência de unidade de estilo é a mais desrespeitada pelo grupo, que lança mão de inúmeras linguagens para debater temas ligados à vida política brasileira, de 1889 para cá.

Última parte da trilogia Liberdade em Pi(y)ndorama, iniciada em 2008 – que abordou em seus dois segmentos iniciais o período colonial e o Império –, a peça tem como assunto a luta de classes no Brasil republicano e seus desdobramentos no sistema político, na sociabilidade e na cultura. “A peça é dividida em quadros: cada um remete a diferentes linguagens e exige um tipo diferente de interpretação. Não há um ator principal nem uma fábula única”, explica o diretor Thiago Vasconcelos.

Três eixos

A encenação tem três eixos principais, que se interpenetram a todo instante. O primeiro procura reconstituir os fundamentos da teoria contrarrevolucionária brasileira. O procedimento escolhido para materializar a ideologia da elite é a autópsia: médicos eugenistas promovem um exame do corpo da República, identificando nele células cancerígenas que precisam ser extirpadas – os movimentos sociais. “Por meio da terminologia médica, abordamos o projeto da elite de eliminação dos levantes populares”, aponta Vasconcelos. As teorias científicas racistas do começo do século 20 são relacionadas às políticas higienistas praticadas hoje em dia.

Outra camada da peça aborda as relações entre a construção da República brasileira e o campo da disputa simbólica, dominado pela indústria cultural. “São quadros que, ao mesmo tempo em que falam sobre a situação histórica do Brasil a partir de alegorias, fazem crítica à pasteurização operada pela indústria cultural”, afirma o diretor. Um recurso frequente é a paródia, cujos alvos podem ser desfiles de escola de samba ou filmes de faroeste.

Por fim, há o eixo das alegorias – como o Vampiro, que personifica o próprio capital –, as quais perpassam todos os quadros, de maneira a comentá-los, criticá-los ou relacioná-los à totalidade social. Em todos eles, há o uso de diferentes linguagens. “Usamos de expedientes como delírios poéticos, documentário, teatro de revista, rapsódia e texto autoral, que pode ser tanto diálogo como textos poéticos, produzidos por nós ou montados a partir da obra de Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Maiakovski”, enumera Vasconcelos.

Maiakovski e Seu Madruga

Como o grupo não acata a normatização tradicional do teatro, também repudia as barreiras entre arte erudita e cultura popular, tradicionalmente estabelecidas pelas elites para desqualificar as linguagens artísticas dos trabalhadores. Recusa-se ainda a dialogar apenas com acadêmicos, de modo que toma emprestados gêneros e elementos midiáticos. “Optamos por não cortar o fio das referências populares, as quais hoje vêm da indústria cultural. Dialogamos com o filme Matrix e o seriado Os Simpsons, mas também com a obra de Schoenberg”, argumenta Vasconcelos.

“Colocamos Maiakovski e Chaves dentro do mesmo espetáculo”, aponta a atriz Ruth Melchior. As personagens do seriado Chaves aparecem em um quadro sobre gentrificação. “É uma cena em que a vila do Chaves é destruída para a construção de um condomínio de luxo – um tema da pauta política contemporânea”, explica o diretor Vasconcelos. Enquanto Seu Madruga e os outros moradores do cortiço são despejados, são projetadas em um telão imagens de programas televisivos em que tropas de polícia pacificadora e atores de novela aparecem lado a lado.

Também a alegoria do capital, o Vampiro, vincula-se a elementos da indústria cultural. “Não se trata de uma escolha gratuita colocar um vampiro na peça. Marx diz que o capital é como um vampiro que suga os trabalhadores. Mas essa é uma referência da atualidade, ao mesmo tempo. Os jovens estão acompanhando histórias de vampiros no cinema e na televisão. Queremos dialogar com as pessoas que estão em contato com isso”, analisa Vasconcelos. O grupo opta, dessa forma, por brincar com referências canônicas e não canônicas, com obras que são consideradas artísticas e com produções tidas como lixo cultural. “Nós nos apropriamos de produtos da indústria cultural, mas sem nos apropriarmos positivamente da ideologia que eles carregam. Trata-se de uma apropriação crítica”, completa o ator Danilo Santos.

Construção coletiva
A encenação foi inteiramente construída de forma coletiva. “Por mais que, às vezes, apareça um texto de um ator ou do diretor, tem sempre algo que foi construído por todos. A presença do ator em cena se faz continuamente”, afirma Ruth Melchior.

Os quadros finais têm esse aspecto exacerbado. “É quando o grupo toma partido e demonstra sua posição, por meio do que chamamos de epifanias revolucionárias”, explica Thiago Vasconcelos. A peça termina com uma Santa Ceia, da qual tomam parte todos os monstros alegóricos e as diversas personificações da burguesia, que degustam o corpo da República. “É aí que mostramos desejos e imagens de como o mundo poderia ser”, conta. Tem início uma longa e festiva montagem de versos de Maiakovski, Oswald de Andrade e da Internacional, selecionados e encadeados por todos os membros do grupo. “A Cia. Antropofágica é um grupo de esquerda – de diversas variantes de esquerda. A composição exige que procuremos contemplar a todos, portanto sempre buscamos textos que tenham um caráter anticapitalista, porque o anticapitalismo é consenso entre nós. A discussão parte daí”, conclui Vasconcelos.

A diversidade na formação do grupo talvez seja uma causa da riqueza de formas que a Cia. Antropofágica emprega em suas encenações. O grupo não se contenta com a tradição do teatro político da esquerda – procura, ao contrário, refuncionalizar todos os elementos de que lança mão, de modo a dar-lhes sempre o sentido político que julga necessário.

Serviço
Terror e Miséria no Novo Mundo Parte III
(Liberdade em Pi(y)dorama – A República)
Direção: Thiago Vasconcelos
De 12 a 27 de Janeiro, sábados às 20h e domingos às 19h
Ingressos gratuitos
Espaço Cultural Pyndorama – 40 lugares
Rua Turiassú, 481, Perdizes – São Paulo (SP) – próximo ao metrô Barra Funda.
Contato: (11) 3871-0373 – contato@pyndorama.com

Além da peça, que fica em cartaz até o fim do mês, a Cia. Antropofágica dá início, no dia 19 (sábado), a uma mostra de seu repertório, comemorando 10 anos de atividades.
Programação
Sábado, 19 de janeiro:
15h – Terror e Miséria no Novo Mundo – Parte I: Estação Paraíso
17h – Entre a Coroa e o Vampiro – Terror e Miséria no Novo Mundo – Parte II: O Império
20h – Terror e Miséria no Novo Mundo – Parte III: A República
Terça-feira, 22 de janeiro, às 20h: Via Crucys à Brazyleira
Quarta-feira, 23 de janeiro, às 20h: Zumbi or not Zumby
Quinta-feira, 24 de janeiro, às 21h: A Tragédia de João e Maria: Teatro da Deformação
Sexta-feira, 25 de janeiro, às 21h: Kabaré Antropofágico

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