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Sem ligar para convenções
“Nós nos apropriamos de produtos da indústria cultural, mas sem
nos apropriarmos positivamente da ideologia que eles carregam. Trata-se
de uma apropriação crítica”
16/01/2013
Eduardo Campos Lima,
de São Paulo (SP)
de São Paulo (SP)
Historicamente,
até que os trabalhadores pudessem reivindicar como válidas as formas
artísticas que desenvolveram para tratar dos assuntos de seu interesse,
todas as obras eram avaliadas com base em critérios estabelecidos pela
burguesia. No teatro, as peças tinham que se fundamentar unicamente no
diálogo entre personagens que viviam em um universo totalmente autônomo.
Diante do público, desenrolava-se uma história com começo, meio e fim,
na qual as personagens – dotadas de profundidade psicológica – colocavam
em conflito suas vontades e decisões. Quando uma encenação não
conseguia obedecer a todas essas exigências, porque tratava de assuntos
que extrapolavam a esfera das decisões individuais, por exemplo, não era
considerada bom teatro. Nada disso tem valor hoje em dia, uma vez que
trabalhadores e artistas consequentes lutaram duramente para conquistar o
direito de tratar de política no teatro. Mas muitos críticos e
produtores continuam pautando-se por esses conceitos.
“Colocamos Maiakovski e Chaves dentro do mesmo espetáculo”, aponta a atriz Ruth Melchior - Foto: Reprodução |
A Cia. Antropofágica, que fica em cartaz até 27 de janeiro com Terror e Miséria no Novo Mundo Parte III,
rejeita até as últimas consequências as convenções da burguesia para a
arte. A exigência de unidade de estilo é a mais desrespeitada pelo
grupo, que lança mão de inúmeras linguagens para debater temas ligados à
vida política brasileira, de 1889 para cá.
Última parte da
trilogia Liberdade em Pi(y)ndorama, iniciada em 2008 – que abordou em
seus dois segmentos iniciais o período colonial e o Império –, a peça
tem como assunto a luta de classes no Brasil republicano e seus
desdobramentos no sistema político, na sociabilidade e na cultura. “A
peça é dividida em quadros: cada um remete a diferentes linguagens e
exige um tipo diferente de interpretação. Não há um ator principal nem
uma fábula única”, explica o diretor Thiago Vasconcelos.
Três eixos
A
encenação tem três eixos principais, que se interpenetram a todo
instante. O primeiro procura reconstituir os fundamentos da teoria
contrarrevolucionária brasileira. O procedimento escolhido para
materializar a ideologia da elite é a autópsia: médicos eugenistas
promovem um exame do corpo da República, identificando nele células
cancerígenas que precisam ser extirpadas – os movimentos sociais. “Por
meio da terminologia médica, abordamos o projeto da elite de eliminação
dos levantes populares”, aponta Vasconcelos. As teorias científicas
racistas do começo do século 20 são relacionadas às políticas
higienistas praticadas hoje em dia.
Outra camada da peça aborda
as relações entre a construção da República brasileira e o campo da
disputa simbólica, dominado pela indústria cultural. “São quadros que,
ao mesmo tempo em que falam sobre a situação histórica do Brasil a
partir de alegorias, fazem crítica à pasteurização operada pela
indústria cultural”, afirma o diretor. Um recurso frequente é a paródia,
cujos alvos podem ser desfiles de escola de samba ou filmes de
faroeste.
Por fim, há o eixo das alegorias – como o Vampiro, que
personifica o próprio capital –, as quais perpassam todos os quadros, de
maneira a comentá-los, criticá-los ou relacioná-los à totalidade
social. Em todos eles, há o uso de diferentes linguagens. “Usamos de
expedientes como delírios poéticos, documentário, teatro de revista,
rapsódia e texto autoral, que pode ser tanto diálogo como textos
poéticos, produzidos por nós ou montados a partir da obra de Oswald de
Andrade, Mário de Andrade e Maiakovski”, enumera Vasconcelos.
Maiakovski e Seu Madruga
Como
o grupo não acata a normatização tradicional do teatro, também repudia
as barreiras entre arte erudita e cultura popular, tradicionalmente
estabelecidas pelas elites para desqualificar as linguagens artísticas
dos trabalhadores. Recusa-se ainda a dialogar apenas com acadêmicos, de
modo que toma emprestados gêneros e elementos midiáticos. “Optamos por
não cortar o fio das referências populares, as quais hoje vêm da
indústria cultural. Dialogamos com o filme Matrix e o seriado Os Simpsons, mas também com a obra de Schoenberg”, argumenta Vasconcelos.
“Colocamos Maiakovski e Chaves dentro do mesmo espetáculo”, aponta a atriz Ruth Melchior. As personagens do seriado Chaves aparecem
em um quadro sobre gentrificação. “É uma cena em que a vila do Chaves é
destruída para a construção de um condomínio de luxo – um tema da pauta
política contemporânea”, explica o diretor Vasconcelos. Enquanto Seu
Madruga e os outros moradores do cortiço são despejados, são projetadas
em um telão imagens de programas televisivos em que tropas de polícia
pacificadora e atores de novela aparecem lado a lado.
Também a
alegoria do capital, o Vampiro, vincula-se a elementos da indústria
cultural. “Não se trata de uma escolha gratuita colocar um vampiro na
peça. Marx diz que o capital é como um vampiro que suga os
trabalhadores. Mas essa é uma referência da atualidade, ao mesmo tempo.
Os jovens estão acompanhando histórias de vampiros no cinema e na
televisão. Queremos dialogar com as pessoas que estão em contato com
isso”, analisa Vasconcelos. O grupo opta, dessa forma, por brincar com
referências canônicas e não canônicas, com obras que são consideradas
artísticas e com produções tidas como lixo cultural. “Nós nos
apropriamos de produtos da indústria cultural, mas sem nos apropriarmos
positivamente da ideologia que eles carregam. Trata-se de uma
apropriação crítica”, completa o ator Danilo Santos.
Construção coletiva
A
encenação foi inteiramente construída de forma coletiva. “Por mais que,
às vezes, apareça um texto de um ator ou do diretor, tem sempre algo
que foi construído por todos. A presença do ator em cena se faz
continuamente”, afirma Ruth Melchior.
Os quadros finais têm esse
aspecto exacerbado. “É quando o grupo toma partido e demonstra sua
posição, por meio do que chamamos de epifanias revolucionárias”, explica
Thiago Vasconcelos. A peça termina com uma Santa Ceia, da qual tomam
parte todos os monstros alegóricos e as diversas personificações da
burguesia, que degustam o corpo da República. “É aí que mostramos
desejos e imagens de como o mundo poderia ser”, conta. Tem início uma
longa e festiva montagem de versos de Maiakovski, Oswald de Andrade e da
Internacional, selecionados e encadeados por todos os membros do grupo.
“A Cia. Antropofágica é um grupo de esquerda – de diversas variantes de
esquerda. A composição exige que procuremos contemplar a todos,
portanto sempre buscamos textos que tenham um caráter anticapitalista,
porque o anticapitalismo é consenso entre nós. A discussão parte daí”,
conclui Vasconcelos.
A diversidade na formação do grupo talvez
seja uma causa da riqueza de formas que a Cia. Antropofágica emprega em
suas encenações. O grupo não se contenta com a tradição do teatro
político da esquerda – procura, ao contrário, refuncionalizar todos os
elementos de que lança mão, de modo a dar-lhes sempre o sentido político
que julga necessário.
Serviço
Terror e Miséria no Novo Mundo Parte III
(Liberdade em Pi(y)dorama – A República)
Direção: Thiago Vasconcelos
De 12 a 27 de Janeiro, sábados às 20h e domingos às 19h
Ingressos gratuitos
Espaço Cultural Pyndorama – 40 lugares
Rua Turiassú, 481, Perdizes – São Paulo (SP) – próximo ao metrô Barra Funda.
Contato: (11) 3871-0373 – contato@pyndorama.com
Além
da peça, que fica em cartaz até o fim do mês, a Cia. Antropofágica dá
início, no dia 19 (sábado), a uma mostra de seu repertório, comemorando
10 anos de atividades.
Programação
Sábado, 19 de janeiro:
15h – Terror e Miséria no Novo Mundo – Parte I: Estação Paraíso
17h – Entre a Coroa e o Vampiro – Terror e Miséria no Novo Mundo – Parte II: O Império
20h – Terror e Miséria no Novo Mundo – Parte III: A República
Terça-feira, 22 de janeiro, às 20h: Via Crucys à Brazyleira
Quarta-feira, 23 de janeiro, às 20h: Zumbi or not Zumby
Quinta-feira, 24 de janeiro, às 21h: A Tragédia de João e Maria: Teatro da Deformação
Sexta-feira, 25 de janeiro, às 21h: Kabaré Antropofágico
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