O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

O cinema nacional está a salvo... provisoriamente

Qualquer tipo de análise fílmica passa por subjetividades que muitas vezes estão longínquas das intenções dos cineastas. No entanto, um filme só se concretiza a partir desses elementos particulares de cada espectador. Deixo aqui as minhas impressões sobre “Meu Mundo em Perigo”, “novo” filme de José Eduardo Belmonte. De qualquer forma, é um texto que compartilho com aqueles que assistiram ao filme. Aos que não viram, sugiro humildemente que corram, pois considero a melhor estreia nacional do ano de 2010.

Não podemos mais dizer que José Eduardo Belmonte é um diretor promissor, como gosta a grande imprensa. Após quatro refinados longas e vários curtas, ouso dizer que há algo de tão profundo e autoral nos filmes desse brasiliense que ele está, hoje, entre os melhores cineastas em atividade no mundo.

“Meu Mundo em Perigo” tem início com uma bela epígrafe emprestada dos versos do poeta pernambucano Carlos Penna Filho: 

lembra-te que afinal te resta a vida
com tudo que é insolvente e provisório
e de que ainda tens uma saída:
entrar no acaso e amar o transitório.

É dessa forma, solene, e estabelecendo a relação entre cinema e poesia que Belmonte abre a sua obra. Carlos Penna Filho é um daqueles tantos artistas que a memória brasileira trata de forma injusta, relegando-lhes um papel secundário. Belmonte está falando sobre memória e também sobre sonhos interrompidos, sobre os caminhos pelos quais a vida nos leva. E é por isso que escolhe versos tão significativos de um poeta que morre aos 31 anos, vítima de um acidente de carro. É dessa vida provisória que Belmonte quer nos falar. 


Em seguida, somos apresentados a Elias que, em primeira pessoa, desabafa sobre o seu momento de vida, enquanto vemos imagens em super 8mm que remetem a lembranças felizes de um casal que agora se enfrenta em um tribunal pela guarda do filho. A imagem em super 8mm, presente em outros filmes do diretor, representa a materialização da memória, esta entendida como espaço de vivências profundas. A força das imagens será, a partir daí, uma constante no filme. Elias é fotógrafo e está sempre com uma Polaroid nas mãos. Em determinado momento, explica que o seu gosto pela fotografia veio de uma vontade que sempre teve de que tudo parasse. É assim que “Meu Mundo em Perigo” vai se desenvolvendo como uma desconstrução da própria imagem, pois, por mais que a vontade de parar o mundo traduza essa necessidade de agarrar o transitório, a próxima imagem de mundo se impõe como uma necessidade quase dialética em relação à imagem que a antecede. E é assim também que um filme vai se construindo, imagem atrás de imagem, provisoriamente.

Porém, não é só imagem. O som ou mesmo a ausência dele estão sempre resignificando a imagem, da mesma forma que esta traz novos significados ao som. Cinema é composição, mas é regência também. E Belmonte sabe conduzir os elementos que tem à disposição, tratando o som de forma independente e construindo o silêncio de uma maneira não convencional, mas significativa para o tipo de narrativa que vemos na tela. Da mesma forma, a parceria com o músico Zé Pedro Gollo traz uma evidente força na construção sensorial. Há momentos preciosos em que a presença da música não se torna apenas um adorno, mas sim um essencial elemento de construção fílmica. O roteiro de “Meu Mundo em Perigo” é assinado por Belmonte e pelo dramaturgo Mário Bortolotto, que traz uma feliz contribuição teatral para o filme fazendo-nos lembrar do bom e velho Cassavetes. A simplicidade narrativa e o intricado jogo de diálogos estão em uma relação dialética que contribui de forma decisiva para as nuances simbólicas e estéticas assumidas pela obra.

 

Elias não quer deixar o seu filho com a ex-esposa, pois acha que ela tem uma instabilidade mental inadequada para cuidar de uma criança. No entanto, ele parece ter consciência de que ele próprio vive à mercê de um mundo que o impede de exercer a sua alteridade de forma saudável. A existência do outro, nos moldes que se coloca para Elias, acaba sendo um entrave para o exercício de qualquer tipo de personalidade. Esta que é tema recorrente em Belmonte, por isso a presença em seus filmes do documento de identidade. O primeiro fio narrativo ao qual somos apresentados é aquele a partir do qual Elias recolhe a carteira que uma bela moça, Isis, derruba e a segue até o hotel em que ela está hospedada, mais intrigado com a misteriosa figura feminina, do que preocupado com o objeto perdido. Ao abrir a carteira, Elias se detém justamente no documento de identidade de Isis, que surge como símbolo da busca por uma individualidade que é tolhida por convenções sociais que despersonificam a existência humana. A crueldade desse sistema impessoal chega ao ponto de ser representada por um oficial de justiça que visita Elias para avaliar os seus bens, pois ele tem uma dívida com a receita. É assim que ele se torna a representação do homem da classe media que vale o que tem e não o que é. O valor mercadoria se sobrepõe ao valor humano, pois a lógica do capitalismo é essa.

José Eduardo Belmonte nos mostra a mediocridade de uma organização social que devora as individualidades. A fragilidade do sistema judiciário, por exemplo, é revelada no momento em que percebemos que a verdade a ninguém pertence e o jogo judicial se dá de uma maneira em que os interesses nunca coincidem, pois o benefício de um representa necessariamente o prejuízo de outrem. A hipocrisia judicial é mostrada em uma cena emblemática de sussurros pré audiência, na qual a decupagem proposta, com closes nos lábios das partes interessadas, despersonificam e chamam atenção apenas para o tipo de discurso desumano que se trava. Da mesma forma, diferentemente de alguns filmes que retratam a família burguesa como reduto da proteção social e dos valores fraternos do homem, estamos aqui diante de uma instituição-família arruinada e, o mais grave, arruinante. É o lar o seio da decadência, o espaço trivial de desagregação humana, onde os únicos que se salvam são as crianças, com a sua inocência que infelizmente logo será perdida, pois estão eles no meio dessa trincheira imoral. Talvez seja por isso que, tanto em “Se Nada Mais der Certo”, como “Meu Mundo em Perigo”, a criança surge como a face ingênua da vida, refletida na corrida descompromissada que encerra os dois filmes. É um sopro de esperança.

Portanto, as convenções sociais estão o todo tempo colocadas em xeque, pois são elas que extirpam as individualidades e trazem o automatismo para a vida. É por isso que os personagens de Belmonte se revoltam com o mundo, pois estão cansados, por exemplo, de encher bexiga para uma festa de aniversário, um símbolo incorporado de maneira mecânica e executado com total indiferença. São essas pequenas convenções de aparência, representadas pelo personagem de Milhem Cortaz (Fito), que enche bexigas para o aniversário de um pai que o chama de bunda mole em público e que assedia a sua mulher. É essa esposa que exige que o bunda mole Fido tire satisfações com o dono de um armazém que a cantou, pois, a masculinidade patriarcal deve imperar nesse momento. No entanto, ela reclama que ele só bebe cerveja e enche as tais bexigas, enquanto ela cozinha aos montes para o aniversário do sogro. É assim que o seio familiar se mostra como uma prisão de aparências, tão farto de silicone que está a ponto de explodir. Fito é um personagem que precisa se vingar deste mundo que o colocou numa posição medíocre diante da vida. 

Após o aniversario em família, pai e filho vão comemorar no bar, em uma das cenas mais tristes do filme, em que o pai chega a propor um brinde às forças armadas, pois não há mais nada ao que se agarrar. Na mesma cena, os preconceitos são revelados e a podridão humana também. O vômito do filho acompanha o atropelamento do pai, como se fosse um momento de expurgação. Da mesma forma, a esposa diz ao marido, sem pestanejar: “eu não tô aliviada não, tô feliz pra caralho”. A morte do pai é a gota d’água para Fito ter alguma atitude e a vingança vira uma obsessão. Aqui, o roteiro se apropria de um elemento clássico de relatos ficcionais, que é o cruzamento de dois fios narrativos. Elias, após perder a guarda do filho, sai desesperado com o carro e acaba atropelando o pai de Fito. Mais pra frente, Elias diz para Isis que saiu aquele dia só pra encontrar aquele cara, pois não tinha o que fazer com o carro. O desastre humano de se relacionar com o outro fica claro nos diálogos entre Isis e Elias. Ao saber do atropelamento, Isis fala para Elias que preferia morrer do que matar alguém.  Elias se dá conta da sua condição e anuncia a tragédia: “Eu acho que eu estou morrendo também”. Sim, ele está morrendo e estamos todos caminhando no mesmo sentido, pois não há saída dentro de um modelo tão perverso.  

Em “Meu Mundo em Perigo”, as personagens não sabem como lidar com esse modelo e se identificam uns com os outros, pois estão em uma fase de reconhecimento disso tudo. Da mesma forma que em “Se Nada Mais der Certo”, as personagens aqui estão se dando conta de suas próprias condições e de que afinal ainda resta a vida. É por isso que Isis se pergunta sobre as linhas da mão que os ciganos utilizam para ler o porvir. E é pelo mesmo motivo, o desconforto em reagir ao que o mundo vai propondo, que Elias diz amargamente que “a coisa que eu mais queria no mundo era ter alguém que me dissesse tudo que eu tivesse que fazer. Não ter que tomar mais nenhuma decisão”. Porém, as decisões são inevitáveis e, numa das memoráveis cenas do filme, Elias leva Isis de volta a casa da mãe dela. Em frente à casa, Isis diz para Elias o que ela sabe que a mãe vai dizer ou como ela vai se portar. Não sabemos ao certo se o encontro ocorreu ou foi apenas imaginado, mas é aí que se confirma mais uma vez o leit motiv da família decadente. A mãe, interpretada por Helena Ignez, é o reflexo de uma sociedade doentia. Ela narra o episódio em que o cachorro da família se suicidou, passando em frente a uma ambulância, após a morte do seu marido, que fez ela própria chorar de alívio e gratidão. 

É essa insanidade social que leva os personagens de Belmonte à revolta e atitudes desesperadas. Elias vai atrás do filho e discute com a mulher. Estamos diante do drama da incomunicabilidade humana e Belmonte suprime o som e gira a câmera, revelando essa não comunicação. Já Isis, representa a exaustão da incomunicabilidade, abandonando a palavra falada e se comunicando somente através da palavra escrita. Ela se finge de muda, pois esta cansada dos que falam sem nada dizer e da artificialidade das convenções orais. Elias aceita o jogo de Isis e passa a responder também por escrito. Assim, a mise en scène proposta é outra, única, pois a convenção da fala foi quebrada e, por isso, estranhamos o andamento do filme. E aqui Belmonte revela toda sua habilidade cinematográfica representada, principalmente, pela requintada construção de tempo narrativo. O uso constante de fades se apresenta não de forma aleatória, mas como uma espécie de respiro essencial para o tipo de sensação que o filme quer passar. Ele trabalha, na sua exaustão, o vazio humano e a superficialidade das suas relações. Há espaços de silêncio com os quais o espectador pode não estar acostumado e os fades trazem um ritmo narrativo peculiar, traduzindo um pouco daquela sensação de tempo estendido, de vida acontecendo. É a experiência cinematográfica se traduzindo como experiência de vida.


consome até a saturação. É isso que a leva a sair do conforto da casa da mãe e se hospedar por tempo indeterminado em um hotel decadente. Essa crise existencial passa por um cansaço de apenas reagir a um mundo dado, imposto. É assim que, indo contra as convenções, em determinado momento, Isis e Elias abandonam os seus personagens e, numa incursão documental, os próprios atores, Eucir de Souza e Rosanne Mulholland, saem pelo hotel entrevistando os empregados e outras pessoas. A arrumadeira do hotel, por exemplo, diz que foi trabalhar lá atrás de gente bonita e feliz, como a Rosanne. No entanto, esse “sair do personagem” é relativo e passa pela percepção de cada um, pois nem fora dos filmes há como sairmos dos personagens. E nesse sentido, as grandiosas atuações de “Meu Mundo em Perigo” provocam algum tipo de estranhamento, pois são representações não naturalistas, de um minimalismo que beira, talvez, a uma não atuação. José Eduardo Belmonte não nos apresenta um cinema clássico, mas sim algo de uma autoria que passa pela coletividade, pois percebemos o tipo de compromisso com a arte ao qual essa equipe se propõe. 

Da mesma forma, Isis representa o drama existencial de uma classe média que Por fim, termino o texto constatando que se o nosso mundo está em perigo, o cinema nacional com filmes como este está provisoriamente a salvo. Infelizmente, “Meu Mundo em Perigo” teve sua estreia no Festival de Brasília de 2007 e só entrou em cartaz mais de 3 anos depois e salvo engano deve permanecer somente duas ou três semanas em poucas salas de cinema. Dentro dessa lógica neoliberal escrota que funciona também para o modelo de distribuição e produção de arte no Brasil, talvez a única saída seja justamente retornar à epígrafe do filme: entrar no acaso e amar o transitório, que no caso de "Meu Mundo em Perigo" pode se tornar eterno.

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