O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

domingo, 1 de maio de 2011

Há lugar para a poesia neste mundo?



Se julgar pelo filme "Poesia", não -  assisti no reserva cultural, que apesar de ótima programação, ainda insiste em caminhar junto ao progressismo de nosso presidente popstar e sua tão amada nova classe média, com preços que podem ser  exorbitantes, se considerarmos que o que está em questão é o acesso a um objeto artístico.

Ao terminar o filme, visivelmente abalado, caminhei com dois amigos meus (edson e arlley), que também haviam assistido o filme, um deles pela segunda vez, até o metrô de onde nos despediríamos e eu seguiria só.

O assunto não era outro, o filme consumira todos os três de forma bela e correspondentemente destruidora.

Nos despedimos. Voltava só, em direção à casa de outro amigo, e parceiro de profissão, Bruno, onde ficaria aquela noite. Havia perdido o jogo do São Paulo, pela copa do Brasil, mas não conseguia pensar, naquele momento, sequer quanto havia terminado. O medo de não conseguir exprimir algo relevante sobre o filme me tomou de forma desesperadora, que tentava organizar em meu cérebro todos os momentos e fatos que poderia correlacionar.

Apesar do medo, isso não me impediu, e de fato necessitava, dobrar a esquina, uns dois quarteirões antes, entrar no extra 24 horas e comprar algo para comer e duas cervejas como forma de fazer com que digerisse melhor o que acabara de ver.

Eis que ao chegar no apartamento, após o frio de uma paulista extremamente iluminada, e na cabeça uma diarréia mental -  no melhor sentido da expressão, se que isso é possível - incontrolável, sento-me e escrevo - ainda não havia visto os lances, nem o gol do São Paulo naquela noite.

O filme corre sobre a extensão de um mundo, chamado de pós-moderno, destruído - ou para os mais cordiais, construído, continuado - pela globalização (termo que pode ser, tranquilamente, substituído por capitalismo), e, tem ainda como mote, um estupro dentro do mundo adolescente, um estímulo que não se amplia potencialmente, pois sendo um problema que atravessa classes econômicas, tempos históricos, tempos lógicos, não pode ser resolvido, tanto por sua inevitabilidade dos fatos quanto pelo sistema em que vivemos, este que nem usando de seu próprio aparato consegue resolver seus problemas.

Todo esse terreno, uma espécie de via-crúcis da pós modernidade, é percorrido por uma personagem, a avó de um dos garotos que cometera tal delito. Apresenta-se uma mulher, de extrema beleza, próxima de seus 70 anos, que trabalha como empregada de um homem já em seu leito de morte. Ela é esmagada por um mundo qual não se encaixa, desde suas vestes até sua extrema simpatia e vontade de viver, dentro de uma classe média sul-coreana, tão decadente quanto a que nosso país tanto se orgulha de ter.

É uma mulher, que, sobretudo, representa uma força contra-hegemonia sobretudo àquilo que é contrario à emancipação feminina, inclusive as barreiras do tempo. Barreiras do tempo que não só são quebradas junto às marcas da velhice, mas que por causa do alzheimer, de qual sofre, reconstroem suas lembranças, quase como que recuperando apenas aquilo que fosse de singular importância.

A personagem está no campo de uma escolha individual, que apesar de não perder seu caráter de emancipação, é o máximo que, dentro deste sistema, pode chegar. Em outras palavras, sua quieta e individual sede de vida, de humanidade, de poesia, em uma sociedade que também necessitaria ser diferente, só pode ser suprida, individualmente, se caminharmos à margem dela.

De forma geral: Não há lugar para a poesia no mundo capitalista - ou chamem de globalizado, "plural", neste momento não fará diferença.

Já no início do filme somos invadidos, ou apenas relembrados, por imagens que denotam pequenos recortes do mundo, mas que ao mesmo tempo o retratam quase como um todo, onde a poesia não está: nas mercearias, ruas, hospitais, vilarejos, pequenos apartamentos onde ressoam a música pop e os programas de auditório.

Não só a isso, mas já temos acesso a um mundo que, com o próprio sistema que nos foi atravessado, não pode resolver seus próprios problemas, pois ele mesmo já não funciona. São pequenas demonstrações do fim dos tempos em pandemia: o policial não quer abrir um investigação, sobre um caso que poderia ser interpretado como grave, extremamente grave; a escola não quer sujar sua imagem admitindo que seus alunos cometeram um crime; ou,  ainda, no caso do estupro adolescente dentro da obra, como é comum,  - vide a chacina do Realengo, no Brasil -, substitui-se as soluções de caráter humano, pela mediação e solução através do dinheiro, excluindo toda a causa para se chegar a tal, as patologias sociais - além, é claro , das soluções , como, mais uma vez sobre Realengo, uma das propostas para evitar que tais casos ocorram novamente, é um detector de metal na porta das escolas, mas e fora das escolas? -.

Não há lugar para a poesia, nas ruas, na pratleias, sequer num sarau, que mais parece a vulgarização de toda e qualquer tentativa de sobrevivência poética; definitivamente não está nas aulas de poesia; e por fim não está na relação entre os homens, como os médicos no filme, que são quase como técnicos que parecem estar defronte a um amontoado de carne e ossos, e que sua trajetória é mais uma, dispensável.

A poesia, assim como a personagem principal, está destinada a viver à margem desse mundo, onde pode, enfim, tentar existir ou construir seu fim.

E dentro desse quase movimento contrário, assim como vemos em nós mesmos, cotidianamente, há aqueles que se perdem nessa própria e particular empreitada. Em outras palavras, em nossas escolhas sejam elas de caráter individual ou coletivo, acabamos, por vez, a negar, em defesa aos nossos principios, que podem não estar claros o suficiente, a humanidade. Como o caso do homem que pede para transar com a personagem principal, como seu último desejo antes de morrer, já destruído por um doença, e seria, aos seus olhos, a única forma de se sentir homem novamente. Ao negar o pedido, a personagem, que está carregada pelo estigma do estupro de outrem, e também de sua própria integridade enquanto mulher, nega também algo que está para além das relações de opressão dos sexos, ela nega a possibilidade de vida, humanismo, de outrem - Isso mais a frente será bem resolvido, e terá dois pontos de iversão geniais, que para não entregar logo de cara, posso adiantar que são como a humanização de ambos e em seguida, motivada por uma luta maior por seu neto, se dá mais uma ponto de virada narrativa - em outras palavras veja o filme.


Sem levantar um único panfleto a obra é sublimemente clara, num silogismo simples: ''A poesia é necessária no mundo", "Este mundo não permite a poesia" "Logo, precisamos de um novo mundo". Isso estará explícito na obra, sem a necessidade de levantar um único grito de ordem, ou uma estética destinada a doutrinar.

Impressiona, também que o que o diretor sul coreano dizia, sobre a necessidade de se ver o filme no cinema, é real. Felizmente - pela vida longa da experiência "cinema" -, e infelizmente - já que os meios de produção estão cada vez mais privados, sobretudo os meios de exibição, entregues aos shoppings -, o filme é uma obra que só pode ser de fato vivenciada no cinema, não só por seu incrível cuidado técnico, mas também porque como poesia, perdida no mundo, que só é possível à marginalidade, e que também está para se perder, sumir, só é possível num ambiente em que ela possa soprar, não livre, mas minimamente corrente.

A poesia só se encontra na obra, por ela mesma, através de suas próprias imagens, do olhar.

Gostaria de fazer uma ressalva, antes que façam por mim. Trata-se de um filme oriental, e em nenhum momento, faço uma defesa unidimensional, irrestrita, desta cultura tanto politicamente, existencialmente, como no cinema, na arte. Ao contrário, o que vale a pena entender aqui, é que quase não há mais particularidades mesmo nesta cultura oriental, e de alguma forma o filme tenta, quase que desesperadamente, como um grito que mais parece um sussuro, em meio à multidão na bolsa de valores, manter, ou ainda fazer com que nasça ou renasça uma vida, um espirito do tempo, particular, diferente, reconstruir uma fronteira que de asas à descoberta de novas vontades, costumes, segredos, formas de vida. Uma luta contra tudo aquilo que se esvai com a globalização, com o capital internacional.

Cito ainda, uma frase de um filme que admiro muito "Antes que o mundo acabe", numa carta do Pai ao filho: "...Não te deixei porque não gostava de você... mas eu tinha uma escolha... como uma missão... daqui há alguns anos, todo o mundo vai estar comendo o mesmo hamburguer, falando a mesma língua, chorando pelo mesmo filme... minha missão é registrar - fotografar - isso antes que tudo desapareça".

Ambos os filmes, um de forma mais incisiva e violenta, e outro mais amena, nos mostram um mundo saturado, esquizofrênico. Um mundo que já não se crê, nem faz crer.

Um mundo sem poesia, é um mundo fadado ao esgotamento, ao fim, se é que já não acabou - E, você ainda me fala dos perigos do Hades, camarada?

Por fim, e deixando ainda mais meu desejo que todos aqueles que tiveram a paciência de chegar até aqui, assistam ao filme, termino meu parágrafo com imagem mais bela do filme: A avó, personagem, que como um corifeu, no guiará nesta travessia, tomará uma decisão em relação a sua colocação no mundo, os fatos que a permeiam e seu não-lugar - que talvez nem o filme queira deixar claro -, sob a máxima que nos rodeia e determina nossas ações a cada segundo, em outras palavras, só existem duas possibilidades nessa vida em que levamos: "enforcar-se ou mudar o mundo" (TRECHO DO ESPETÁCULO "ENTRE A COROA E O VAMPIRO. TERROR E MISÉRIA NO NOVO MUNDO, PARTE II:? O IMPÉRIO", em cartaz no espaço cultural Pyndorama).

4 comentários:

  1. O filme é realmente espetacular. Um dos melhores que vi...

    Infelizmente o mundo "pós-moderno" cria essas aberrações do mundo moderno e temos como vcs bem disseram, dar um grito, dar um basta, nem que esse grito seja "como um grito que mais parece um sussuro, em meio à multidão na bolsa de valores".

    Ótimo texto. Começou como crônica e caminhou pomposamente em outros generos.

    PArabéns!

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  2. Valeu meu querido. Temos um prazer comum pela crônica em certa parte do texto. Veleu pelo coment e pela grande contribuição no texto, como já havia dito em sobre nossas conversas.

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  3. Ainda bem que há poesia no cinema... Parabéns pelo blog! :) www.cinemadebordo.com

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  4. Valeu Guto!
    Bom, de alguma forma há resistentes! A vontade, e a necessidade é que isso (a resistência) se torne uma movimento maior e devastador, para que algo novo nasça, do contrário os resistentes serão os destruídos, já que o movimento brutalizador, do capital, da globalização, do mundo, já o é.

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