O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

segunda-feira, 31 de março de 2014

CORDÃO DA MENTIRA NAS RUAS



Confirme sua presença:
https://www.facebook.com/events/620287641397396/

Ouça:
https://soundcloud.com/cordao-da-mentira-2014

Colabore:
http://www10.vakinha.com.br/VaquinhaE.aspx?e=260563

Convide os amigos:
Terça, 1 de abril - concentração 17:30
Largo General Osório (próximo à Estação da Luz) - em frente ao Antigo DOPS


Composto por coletivos políticos, grupos de teatro e sambistas, o Cordão da Mentira nasceu em 2012 como um coletivo independente, autônomo e suprapartidário. Sua proposta é de intervenções estéticas, no espaço público, que debatam questões políticas do passado e do presente brasileiro, ressignificando pontos emblemáticos da cidade a partir da problematização e do resgate de sua própria história.





quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Entrevista Iná Camargo Costa

entrevista retirada do Brasil de Fato (11/04/2012) 

por Jade Percassi.

A professora Iná Camargo Costa, nesta entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, fala sobre arte e política em tempos de crise. Para ela, a arte convencional, uma das melhores expressões do fetichismo da mercadoria, em todas as suas modalidades, inclusive as chamadas vanguardas, é politicamente comprometida com os valores dominantes. A professora, que acompanhou de perto a luta dos grupos teatrais, principalmente de São Paulo, por políticas públicas para a cultura, afirma que não acha que o caminho da disputa pelos recursos públicos seja revolucionário. Para ela, o preço que os trabalhadores da cultura pagam pela opção reformista é a reprodução interna, tanto subjetiva quanto no plano da organização do trabalho, do que a vida no capitalismo tem de pior. Para Iná, na prática os artistas reproduzem todas as relações necessárias à manutenção do modo de produção capitalista e, reivindicando parte dos recursos públicos para a produção das suas obras e garantia da sobrevivência, demonstram estar completamente integrados ao sistema. “Todos pagam o preço da invisibilidade, inclusive política, a que estão condenados os que não se colocam como estratégia o confronto revolucionário com o monopólio dos meios de produção cultural”, afirma.           

Iná Camargo – que atualmente, atua como dramaturgista da Cia Ocamorana de teatro e que anunciou que por ocasião de seu sexagésimo aniversário faz sua despedida de eventos públicos “de qualquer natureza” – afirma que o problema, portanto, não é reiterar que “o projeto socialista está tão fora de pauta”, mas discutir por que as organizações políticas, tanto partidos quanto movimentos, não o colocam em pauta. E coloca um critério: quando um mero intelectual diz que o projeto socialista está fora de pauta, ele está simplesmente expressando seu mais profundo desejo que nunca entre mesmo na pauta, pois intelectuais têm pavor de revolução.      

Brasil de Fato – Em recentes participações em debates políticos, você tem reafirmado a presença histórica das linguagens artísticas nos processos políticos mais amplos, revolucionários e contrarrevolucionários. Quais os casos mais emblemáticos dessa relação entre arte e política?

Iná Camargo Costa – Começando por colocar a questão em termos bem amplos, é preciso lembrar que as chamadas linguagens artísticas estão presentes o tempo todo em nossas vidas e sempre traduzem os valores da classe dominante. Basta prestar atenção ao modo de ser das nossas cidades, voltadas que são às necessidades do escoamento dos produtos da indústria automobilística: todos os sinais de trânsito exploram linguagens artísticas, desde as faixas de pedestres até as amplas avenidas, os parques, as pontes estaiadas etc. O discurso político, por mais convencional e conservador que seja, sempre tem ingredientes artísticos. A arte convencional, uma das melhores expressões do fetichismo da mercadoria, em todas as suas modalidades, inclusive as chamadas vanguardas, é politicamente comprometida com os valores dominantes. Nos debates de que participei ultimamente, a solicitação era tratar dos diferentes modos como artistas interessados no ponto de vista dos trabalhadores podem enfrentar esteticamente esses valores dominantes. Entendendo que o interesse era a luta de classes tal como se manifesta na trincheira da produção artística, achei que seria o caso de lembrar alguns episódios que a própria história da luta de classes já produziu, tanto no plano reformista quanto no revolucionário. Um critério político-dialético aqui é importante: até outubro de 1917 (revolução soviética), as manifestações reformistas podiam ser consideradas progressistas, mas depois da revolução elas adquirem um caráter contrarrevolucionário, de obstáculo claro ao avanço das funções e das próprias linguagens artísticas. Sem meias palavras: o mesmo critério que vale para a política vale para as artes.       

Sem perder mais tempo com a arte contrarrevolucionária que nos assedia durante 24 horas por dia, passemos ao interesse pela revolucionária. Neste caso é obrigatório tratar daquilo que foi feito nos anos que se seguiram à revolução soviética. Como meu maior interesse é teatro, as intervenções que andei fazendo acabaram se voltando para o teatro de agitprop, a manifestação mais revolucionária possível em matéria de arte, de acordo com o critério acima enunciado. Por isso vou me referir apenas às relações entre política e agitprop. Os artistas que se dedicaram a ele – e entre os mais conhecidos estão Maiakóvski, Meyerhold e Eisenstein, para ficar só no campo do teatro – já tinham uma posição política clara: Maiakóvski e Meyerhold eram militantes do partido bolchevique e Eisenstein integrou-se diretamente ao exército vermelho em 1918. Para eles, a função da arte revolucionária era participar da luta pela construção do poder soviético – o mais democrático já inventado pela humanidade – de todas as formas possíveis, desde fazendo a propaganda direta do ponto de vista revolucionário sobre as questões da ordem do dia, até inventando formas totalmente inéditas, como a do “processo de agitação” em que o público era diretamente treinado para participar dos sovietes com desenvoltura e conhecimento de causa. Sendo o agitprop, disparado, a minha forma preferida de arte, nem gosto muito de perder tempo com as outras.           

Simplificando bastante: as relações são antes dos artistas, do que das artes, com a política. Os que se decidem por um caminho revolucionário são livres para inventar as melhores maneiras de aproveitar todas as linguagens disponíveis. No mesmo processo, acabarão inventando suas formas próprias, ou inéditas, como foi o caso do teatro jornal, do processo de agitação, da peça dialética e assim por diante.        

No caso brasileiro, qual foi o papel da produção artística na disputa de hegemonia ao longo da história recente?

Vamos combinar que eu não gosto muito de “disputa de hegemonia”, pois aqui no Brasil essa expressão assumiu desde os anos de 1970 uma conotação abertamente reformista, pela qual não tenho nenhuma simpatia. Isso no plano da política, porque no plano da arte ela pode ser tranquilamente absorvida pela expressão mais verdadeira, que é “disputa de mercado”.               

Dito isto, é preciso reconhecer que desde fins do século 20 há uma forte movimentação de jovens supérfluos (que não encontram emprego no mercado cultural) tentando desenvolver uma produção artística fora do mercado, tanto para criticá-lo quanto se esforçando para fazer alguma coisa que pode ser identificada como “disputa de hegemonia”. Se não há dúvida sobre o fato de que isto realmente é feito em termos de obras, isto é, no plano simbólico, já não se pode dizer o mesmo quanto à estratégia, pois esses trabalhos desenvolvidos à margem do mercado cultural não têm a mais remota condição de disputar absolutamente nada com ele em termos de alcance. Basta pensar no número de pessoas que um capítulo de novela atinge e o número de pessoas que um trabalho de teatro de grupo tem a possibilidade de alcançar. Não é por outra razão que a chamada “Cultura fora do eixo” põe em pânico tantos militantes do teatro de grupo. Eu diria que, no âmbito do mercado que realmente está sendo disputado, eles, pelo menos, não são hipócritas, jogam limpo. Já disseram que é de mercado que se trata e se habilitam a disputar o fundo público para essa finalidade, inclusive deixando claro que estão muito bem sintonizados com estes tempos de “empreendedorismo” que caracteriza a ação de todo mundo no campo cultural.         

Os que dizem disputar hegemonia precisam esclarecer melhor seus próprios objetivos, pois enquanto não o fazem estão perdendo de goleada para os militantes da “economia da cultura”.       

Há exemplos na atualidade que indicam uma reativação desse fazer artístico que assume sua vocação eminentemente política?

Acho que os grupos teatrais, ou as brigadas, que se desenvolveram no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), claramente reativam a vocação eminentemente política do teatro, até porque foram criadas pela própria direção do movimento que desde o começo considerou necessária também a intervenção no âmbito cultural. Por haver esse processo no interior de um movimento político, os grupos teatrais que se aproximaram do MST – e isto no Brasil inteiro, a começar pelo Rio Grande do Sul – também desenvolveram essa vocação. Por outro lado, veteranos de outros episódios de politização mais ampla no país, como o União e Olho Vivo de São Paulo, entre outros, nunca perderam esse espírito. Mas todos pagam o preço da invisibilidade, inclusive política, a que estão condenados os que não se colocam como estratégia o confronto revolucionário com o monopólio dos meios de produção cultural.       

Quanto aos grupos teatrais mais jovens, que apareceram nas ondas criadas por movimentos como o “Arte contra a barbárie” e “Redemoinho”, por serem majoritariamente integrados por filhos da classe média, é possível observar neles o interesse por essa reativação de um fazer artístico politizado em graus variados. Nota-se isso sobretudo nos assuntos, nos temas abordados e na opção por formas diversas do teatro épico. Mas a condição de classe média pesa muito, todos oscilam tipicamente entre euforia e depressão e, sobretudo, muitos reagem mal a qualquer proposta de organização política mais efetiva. Por isso o Movimento dos Trabalhadores da Cultura está demorando tanto para decolar. Tem muita gente que ainda acha que artista não é trabalhador!       

Em que medida a organização interna dessa(s) categoria(s) se fortalece e/ou se fragiliza ao se deparar com as contradições da disputa por recursos públicos e a contribuição para a elaboração de um política cultural junto ao Estado?

Essa questão tem pouco interesse para mim, pois não acho que o caminho da disputa pelos recursos públicos seja revolucionário. O preço que os trabalhadores da cultura pagam pela opção reformista é a reprodução interna, tanto subjetiva quanto no plano da organização do trabalho, do que a vida no capitalismo tem de pior: começando pelo consumo privilegiado (por ser sempre e necessariamente para poucos) de todos os bens produzidos pela classe trabalhadora – de alimentos a verbas públicas (a renda do Estado provém da mais-valia arrancada dos trabalhadores agrícolas, industriais e dos serviços, não é mesmo?) – e culminando com a reprodução entre eles mesmos da estrutura social mais geral, na qual quem tem mais pode mais, prevalece a hierarquia do saber, a administração das pessoas, o paternalismo mais odioso, inclusive reclamado pelos mais jovens e assim por diante. Isto é: na prática os artistas reproduzem todas as relações necessárias à manutenção do modo de produção capitalista e, reivindicando parte dos recursos públicos para a produção das suas obras e garantia da sobrevivência, demonstram estar completamente integrados ao sistema. Não dá para imaginar que daí saia alguma alternativa revolucionária. Por isso venho perguntando com insistência aos artistas: vocês acham possível se dar bem e ser feliz neste mundo, tal como ele está organizado, ou a sua felicidade pessoal e profissional depende de uma mudança total? É claro que “mudança total” é código para revolução...       

Do ponto de vista da disputa com a indústria cultural, há condições da produção artística alinhada com os interesses da classe trabalhadora confrontar o que está sendo imposto pela lógica do capitalismo? Quando um projeto socialista parece “tão fora de pauta” para a grande massa de trabalhadores não organizados, sem consciência de classe, etc.)

Enquanto não aparecer um movimento ou partido que ponha essa questão na ordem do dia, por certo que não há condições subjetivas. Quanto às objetivas, elas estão dadas desde a própria revolução de outubro. Aliás, este ponto já foi tratado por revolucionários como Lenin e Trotsky e, no Brasil, foi desenvolvido artisticamente por Mário de Andrade numa ópera chamada Café. Nesta obra acontece uma revolução que culmina com a tomada revolucionária dos meios de comunicação. No caso, o rádio. O problema, portanto, não é reiterar que “o projeto socialista está tão fora de pauta”, mas discutir por que as organizações políticas, tanto partidos quanto movimentos, não o colocam em pauta. Em outras palavras, desmascarar as organizações políticas que, ao insistir no ponto, continuam empurrando com a barriga a ação reformista que é, repito, contrarrevolucionária.                

Um critério: quando um mero intelectual diz que o projeto socialista está fora de pauta, ele está simplesmente expressando seu mais profundo desejo que nunca entre mesmo na pauta, pois intelectuais têm pavor de revolução. Mas quando um dirigente partidário ou de movimento organizado diz a mesma coisa, ele está expressando o caráter reformista de sua própria organização, ou pelo menos da tendência que ele representa nessa organização. Um contraexemplo é o discurso do Gilmar Mauro no último congresso do MST.      

Como você resumiria então os desafios correntes para a ativação simbólica da luta de classes?

Acho que já respondi a questão, mas especifiquemos um pouco mais. Não podemos ter a veleidade de achar que artistas sem qualquer vínculo com organizações revolucionárias propriamente ditas sejam capazes de avançar nessa ativação simbólica da luta de classes, para além do que já fazem em seus trabalhos, às vezes até sem consciência. Antes de mais nada, eles próprios precisam entender o que seja luta de classes pois, enquanto não o fizerem, nem ao menos saberão qual o seu lugar nessa luta. E nessa ignorância política tenderão sempre a reproduzir os valores dominantes. Para estes casos, recomendo sempre a leitura dos escritos políticos de Brecht, que nunca tergiversou sobre a questão. Ele diz com todas as palavras que o proletariado espera pelo menos três serviços dos intelectuais e, portanto, dos artistas: a) que desintegrem a ideologia burguesa (nos dois sentidos: cair fora e denunciar, criticar até reduzir a pó); b) que estudem, compreendam, expliquem e exponham artisticamente, sempre de maneira crítica, as forças que movem o mundo e c) que façam a teoria e a arte avançarem na direção dos seus interesses.                 Simplificando: ultrapassar o estágio em que os artistas se encontram, de completa ignorância política, é o principal obstáculo. Se este obstáculo for ultrapassado, os demais serão mais facilmente superados.           

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

O "Coice no Peito" da Tela Suja Filmes

Tomamos emprestada a crítica do Cid Nader (cinequanon) para divulgar o pungente "Coice no Peito", dos camaradas da Tela Suja Filmes e seu cinema que diz a que veio. Em breve, publicaremos impressões próprias sobre este trabalho que deve circular muito ainda.




Coice no Peito, de Renan Rovida. FICÇÃO, PRETO & BRANCO, DIGITAL, 25MIN, 2014, SP

Ontem vendo ao belíssimo e emocionante Coice no Peito, não tive como deixar de lado – e enquanto acompanhava o filme – o momento em 2011 em que vi um outro filme seu Entre Nós, Dinheiro, e o quanto fui duro em minha crítica ao filme: nem que me arrependa de ser duro quando disponho no próprio texto as razões que me fizeram agir assim. Não foi o caso de arrependimento, mas uma certa sensação mista, entre alegria por ver o quanto a persistência dele rendeu em salto fenomenal na direção de qualidade superior desse novo filme, e entre uma certa inabilidade minha em notar já naquele instante que se tratava de alguém que faz um cinema raro nos dias atuais, onde a ideia central está no poder fazer o que ama,mas abdicando intencionalmente dos suportes e aportes para tal. Ele – como Dellani Lima, por exemplo -, me fizeram entender com o passar dos anos que há uma galera apaixonada pela arte, que a faz, e que abdica de tudo para concretizá-la. 

E aí, em tela, vemos o próprio Renan interpretando um desses personagens da vida, magro como ele só, como um condutor de charrete em Campos do Jordão (campo de combate ideal para ele, que luta contra o sistema que abastece e prioriza poucos), que trabalha e trabalha em busca de minguadas granas para o sustento básico. E aí notamos que ele come numa marmita, no banco de trás dela, parando quando surge um freguês, pois é da vida ter de trabalhar. Renan e seu personagem trabalham mesmo, mas são orgulhosos disso, jamais subservientes: ele intromete diversas camadas da sociedade em seu pequeno trajeto de filme, indo do militar (para quem jamais baixa a guarda, e que ao final agirá como ele intuía), ao burguês turista que pensa poder tudo (e que acaba por fazê-lo notar que há a necessidade da grana,no único momento em que cede no orgulho), para tentar um momento non-sense, com três figuras deslocadas do mundo (mas não tanto, se perceberá). O filme, nessa sua camada, é um ataque ao sistema, ao que ele não oferece, ao que ele arranca: e é concreto e certeiro quando cria a estanquidade para situar três modelos dos seres sociais. 

Mas o filme pega mesmo – na realidade pega mais, pois desde sempre está nos agarrando, desde as imagens em PB hiper bem finalizadas, às belas e variadas opções de tomadas (que vão dos planos meio “diáfanos”, à subjetiva de dentro da charrete, e também à câmera que o persegue em umas duas ou três oportunidades), aos instantes de impotência do social, e principalmente por uma tragédia em sua vida particular – quando o notamos na vida do trabalhador, na do homem/pessoa. Quando o notamos tendo de continuar, apesar de tudo que lhe infere o pior dos sofrimentos que um ser humano pode sofrer: ele jamais reclama durante a história do que a vida lhe pregou, tentando lidar de modo conformado, como se fosse do ciclo dos destinos, mas sabendo mesmo que não. 

É filme de acúmulo de sensações, ditadas desde o início sem som (que se saberá assim e tão belo no porvir), que cresce e quase nos sufoca com o decorrer, com o notar um ser que não quer sofrer porque não deveria (já que é do destino), e que destina a um final que poderia incorrer num grande equívoco fosse mais às extremidades, mas que mesmo assim arrisca no drama obtendo resultado lindo, lacrimal, chocante, com misto entre o desespero e a sensação de compreensão do companheiro de trabalho, seu cavalo (é lindo demais esse instante entre os dois, se compreendendo no sofrimento que finalmente explode). Filmes em curta-metragem raramente levam às lágrimas... Ainda mais se forem bons – por mais maluca que essa observação possa parecer. 

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

I Feira Paulista de Opinião ou I Feira Antropofágica de Opinião



EVENTO NO FACEBOOK - http://www.facebook.com/events/702348659786329/


A Antropofágica realizará – nos dias 15 e 16 de fevereiro (sábado e domingo), das 14h às 22h, no Espaço Cultural Tendal da Lapa (Zona Oeste) – a II Feira Paulista de Opinião ou I Feira Antropofágica de Opinião, em referência a I Feira Paulista de Opinião (1968), dirigida por Augusto Boal.

I Feira Paulista de Opinião (1968)

Em fins de 1968, uma Primeira Feira Paulista de Opinião foi organizada tendo como mote uma pergunta feita aos artistas envolvidos: O que pensa você do Brasil de hoje? O objetivo era apresentar as peças que, empenhadas em responder a essa questão, procurassem aprofundar a figuração crítica e o enfrentamento político do regime.

Alguns dos mais representativos dramaturgos de esquerda do período foram reunidos – Augusto Boal, Bráulio Pedroso, Gianfrancesco Guarnieri, Lauro César Muniz, Jorge Andrade e Plínio Marcos – além de compositores como Ary Toledo, Caetano Veloso, Edu Lobo, Gilberto Gil e Sérgio Ricardo.

O espetáculo foi dividido em dois atos: do primeiro faziam parte Tema, de Edu Lobo; Enquanto o Seu Lobo Não Vem, de Caetano Veloso; O Líder, de Lauro César Muniz; O Sr. Doutor, de Bráulio Pedroso; ME.E.U.U Brasil Brasileiro, de Ary Toledo; e Animália, de Gianfrancesco Guarnieri. Do segundo constavam Espiral, de Sérgio Ricardo; A Receita, de Jorge Andrade; Verde Que Te Quero Verde, de Plínio Marcos; Miserere, de Gilberto Gil; e A Lua Muito Pequena e A Caminhada Perigosa, de Augusto Boal. Dado o número de cortes sofrido pelo texto submetido à censura (setenta e um), a Primeira Feira Paulista de Opinião foi apresentada na íntegra em junho de 1968, mesmo com o veto dos censores, num ato público de resistência.

Em texto intitulado “O Que Pensa Você da Arte de Esquerda?”, escrito para o programa do espetáculo, Augusto Boal procurou mapear as tendências e perspectivas dominantes nos diferentes setores da esquerda naquele momento. O reconhecimento de diferenças servia de preâmbulo para um alerta acerca da necessidade de união estratégica de todos, fosse qual fosse a orientação estética ou política postulada.

II Feira Paulista de Opinião ou I Feira Antropofágica de Opinião (2014)

A II Feira Paulista de Opinião ou I Feira Antropofágica de Opinião propõe refletir sobre o Brasil atual unindo diversas gerações de artistas. Entre os convidados estão alguns dos participantes da Feira realizada em 1968, reforçando a importância do encontro de gerações atuantes no cenário da arte engajada.

O evento contará com a presença dos seguintes artistas:

Atores, Diretores, Dramaturgos e Poetas
Alípio Freire 
Cecília Boal
Chico de Assis
Dulce Muniz
Iná Camargo Costa
Izaías Almada
Mário Masetti 
Ney Piacentini
Renan Rovida
Rogério Bandeira
Sérgio de Carvalho
Umberto Magnani

Coletivos Teatrais
Bando Trapos
Brava Cia
Buraco D´Oráculo
Cia do Feijão
Cia dOs Inventivos
Cia Estável de Teatro
Cia Ocamorana
Cia São Jorge de Variedades
Companhia Estudo de Cena
Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes
Engenho Teatral
Grupo Redimunho de Investigação Teatral
Grupo Teatral Parlendas
Kiwi Cia de Teatro
Nosso Grupo de Teatro 
Núcleo Pavanelli de Teatro de Rua e Circo
Pombas Urbanas
Teatro de Narradores
Teatro União e Olho Vivo
Trupe Olho da Rua

Cartunistas
Alan Siqueira
Novaes 

Coletivos Audiovisuais
Coletivo Cinefusão
Coletivo Zagaia

Músicos
André Bedurê e Elaine Guimarães
Danilo Monteiro e Tita Reis
Juh Vieira
Martin Eikmeier
Renato Gama
Sérgio Ricardo
Tony Giusti
Vagabundos Bundas Bandis
Wanderley Martins

As apresentações dos convidados terão como mote a resposta à mesma pergunta: “O que pensa você do Brasil de hoje?”. As cenas, intervenções, músicas e ações partirão de questionamentos políticos e estéticos imbricados na I Feira de Opinião, mas em diálogo com aspectos contemporâneos. Em artigo veiculado no programa da I Feira Paulista de Opinião, Augusto Boal propunha reflexão sobre a arte de esquerda, suas divergências e contratempos no contexto ditatorial, à época fator de impedimento e censura de apresentações. Hoje, a quantas anda a arte de esquerda? Quais são as aporias dessa arte no atual cenário brasileiro? A entrada é gratuita.

O evento integra o projeto da Cia Antropofágica "Desterrados em nossa Própria Terra", contemplado pelo Programa Municipal de Fomento ao Teatro para Cidade de São Paulo - 22ª Edição

Sinopse
O que pensa você do Brasil de hoje? A Antropofágica reúne artistas de diversas gerações para responder a esta pergunta na II Feira Paulista de Opinião ou I Feira Antropofágica de Opinião.


Local
ESPAÇO CULTURAL TENDAL DA LAPA
15/02 | Sábado | 14h às 22h
16/02 | Domingo | 14h às 22h
Gratuito | Livre
Acesso pela Rua Constança, 72 – Lapa (Travessa da Rua Guaicurus)

Ficha Técnica
Direção Geral | Thiago Reis Vasconcelos
Elenco | Antropofágica
Direção Musical | Lucas Vasconcelos
Músicos | Bruno Miotto, Bruno Mota e Danilo Agostinho
Direção de Produção | Maria Tereza Urias
Produção | Flávia Ulhôa
Artista Gráfico | Alan Siqueira
Desing Gráfico | Pablo Pamplona

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

RODA DE SAMBA - ENSAIO DO CORDÃO DA MENTIRA

RODA DE SAMBA / ENSAIO DO CORDÃO DA MENTIRA


Domingo 2/2 às 17:30. 
Primeira Roda do Cordão de 2014 
NO ECLA - Rua Abolição, 244 - Bela Vista 

Preparação para o Grande Desfile / Escracho do 1 de abril de 2014. 

TEMA: 64+50: QUANDO VAI ACABAR A DITADURA CIVIL-MILITAR?

Cinquenta anos se passaram após o golpe civil-militar de 1964.

Apesar de alguns esforços valiosos, nenhum responsável foi julgado pelos crimes cometidos. E foram muitos: torturas, extorsões, sequestros, assassinatos em massa de indígenas e camponeses, desaparecimentos perpetrados pelo Estado e pelos tentáculos econômicos do capitalismo. Brasil maravilha, dos "90 milhões em ação" na grande festa popular que é o futebol. Cinquenta anos se passaram, e pouco deste cenário antigo mudou. 2014: Ano de Copa e violência repressiva. Eis o que nos aguarda nas ruas, violadas pelas novas leis de exceção padrão FIFA.

Se for para comemorar, que seja pelos que combateram e combatem contra um passado que não cansa de se repetir. E carnavalizemos... festa que inverte os sinais.

Por isso, neste 01 de abril, o Cordão da Mentira cantará o passado e o presente que vale a pena: da teimosia dos guerreiros, dos indignados, dos irreconciliáveis. Levaremos para as ruas os sambas-luta, as alegorias da história, os estandartes dos que dizem "Não!".

Convidamos todos a participar deste rolezinho sambístico, para ocupar as ruas com a batucada da nossa 2a abolição. Neste dia primeiro de abril, façamos um encontro de nossas revoltas contra uma ditadura que permanece. Tragam para as ruas os símbolos de sua contestação. Anistia aos torturadores? Homenagem aos carrascos? Militarização das instituições democráticas? Mídia carniceira e golpista? Educação pra ler e calcular sem contestar a realidade? Saúde para mortos-vivos? Desenvolvimento consumista sem vida? Extermínio dos povos indígenas? Assassínio racista e encarceramento em massa da juventude periférica? NUNCA MAIS! Mostremos que quem resiste, vive!

É por essas razões que teimaremos em levar para todos os espaços as canções de nosso Cordão e com o nosso canto ocupar as ruas. 

As ruas são pra lutar e quem não luta dança!



terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Filme Elegias de Maio é exibido na Fábrica Ocupada Flaskô

O longa-metragem "Elegias de Maio", dirigido por Danilo J. Santos terá uma importante e simbólica exibição na Fábrica Ocupada Flaskô, local  onde parte de suas cenas foram filmadas. O filme é resultado da parceria com diversos grupos de teatro de São Paulo e com o Coletivo Cinefusão, que também participou de fases do projeto. A exibição será amanhã, dia 15 de janeiro, a partir das 19h30. A entrada é gratuita. Abaixo a programação mensal da Flaskô. 



quarta-feira, 20 de novembro de 2013

CINECLUBE CINEMA EM REVISTA #3


O Coletivo Cinefusão, em parceria com a Cia Antropofágica, convida para a terceira sessão do "Cineclube Cinema em Revista", que dá sequência ao Ciclo "Cinema-Greve". Exibiremos, "Elegias de Maio" (de Danilo J. Santos) e "A Saída dos Operários da Fábrica" (de Harun Farocki). Os convidados para o debate serão os parceiros Danilo J. Santos (Cia Antropofágica) e Luiz Carlos Moreira (Engenho Teatral). A sessão é gratuita e ocorre a partir das 18h01, no Espaço Pyndorama (Rua Turiassú, 481), sempre no último domingo do mês. 

A representação do trabalhador no cinema remonta à primeira exibição pública, ocorrida em 1895, na qual foi exibido “A Saída da Fábrica Lumière em Lyon”. De lá para cá, os filmes não só se converteram em entretenimento, como também abriram possibilidade para uma perspectiva crítica. Com isso, o ciclo “Cinema-Greve” que propomos pretende resgatar, em primeiro lugar, o espaço de debate característico das experiências cineclubistas, além do prazer estético e experiência coletiva de assistir a um filme. Num primeiro momento, tratar do tema greve pode parecer simplista ou até mesmo uma obviedade. No entanto, é imprescindível entender inclusive como o capitalismo assimilou e incluiu em seu vocabulário cotidiano o termo greve. Greve de fome, greve de sexo, na tentativa de desarticular um instrumento da classe trabalhadora para combater aqueles que detêm os meios de produção. 



Cineclube, experiência de recuperação do espectador morto. Espaço onde o óbito não é aceito sem diagnóstico. O especialista, neste caso, está desconvidado, o diagnóstico é feito de forma coletiva, sobre a égide do universalismo, em contraponto com a educação tecnocrata das instituições de ensino. O nosso ciclo é direto, Cinema-Greve. O cineclube é permanente, Cineclube Cinema Em Revista. Um participa da ação do outro. E afirmamos: A arte tem que ter uma perspectiva revolucionária, caso contrário, os ursinhos carinhosos dominarão. Será sempre convidado alguém que valha realmente a pena, inclusive, os sujeitos da mídia-piada brasileira. Neste caso, não garantimos que não ocorra um ataque feroz por parte dos presentes, sempre no nível do debate, mas prometemos lançá-lo para o abismo de suas contradições.

A parceria é com Cia Antropofágica, estômago antropofágico do teatro brasileiro. Nas suas encenações, o verbo explodir é uma ação de vitalidade estética, carregam T.N.T de baixo dos braços. Escarram na cartilha dos bons costumes cênicos. Seus animais, são os de bucho ruminante. Não poderíamos estar melhor acompanhados. 

No cardápio pipoca. Comida de índio. Supervalorizada pelo cinema de shopping. Para finalizar, o famoso passar chapéu, este dos mais variados, todos contendo o suor dos que ali exercem seu oficio. 

Estão quase todos convidados: 

“E sobretudo, meu corpo, da mesma forma que a minha alma, evitem ficar de braços cruzados em atitude estéril de espectador, porque a vida não é um espetáculo, porque um mar de dores não é um proscênio, porque um homem que grita não é um urso dançando...”
(Aimé Cesaire)

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

QUANDO EU MORRER (MÁRIO DE ANDRADE)

Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus inimigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.

Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.

No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.

Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia,
Sereia.

O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade...

Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade...

As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.

(Mário de Andrade)

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Um Lugar ao Sol ou Como Não Tremer de Frio


(texto publicado originalmente no site http://brcine.com.br/)

Certa vez, ao ser questionado acerca do porquê de as imagens tremerem, o cineasta cubano Tomás Gutierrez Alea disse que elas tremem porque há mãos que as seguram. Nada mais materialista do que a resposta que leva em consideração as pessoas que trabalham para que um filme seja realizado. E a partir disso, uma imagem pode tremer, porque o ser humano é instável ou porque assim o quer aqueles que estão por trás das câmeras. Sem um contato concreto com o pernambucano Gabriel Mascaro, não há como objetivar suas intenções com o documentário Um Lugar ao Sol, mas sem dúvida é possível investigar o porquê de suas imagens tremerem.

O longa tem início justamente com a explicação de um método – 125 moradores de valorizadas coberturas, foram contatados, a partir de um livro que cataloga pessoas influentes, e apenas nove aceitaram dar entrevista –, o que imediatamente já coloca que estamos diante de um “filme-tese”, preocupado sim em determinar algumas questões. Em seguida, antes mesmo de termos contato com qualquer cobertura, a imagem é a de uma planta em um canteiro de obras, prestes a perder o seu pedaço de terra e também o seu lugar ao sol, por conta das obras. É a metáfora que Gabriel encontra para colocar, a sua maneira, que o trabalhador está diretamente em conflito com aqueles que têm garantido justamente o lugar ao sol que lhes é negado. É por isso que em seguida, a câmera sobe junto com um elevador de obras, acompanhando o movimento do trabalhador, que sobe aos céus para outros morarem.

O filme fala sobre a tendência de verticalização das grandes cidades, no caso Recife, São Paulo e Rio de Janeiro, mas persiste também na evidência quase surreal do contraste, do trabalho humano. É por isso que, enquanto um dos entrevistados fala sobre a indescritível sensação de abrir a sua janela e ter o mar a sua frente, Mascaro não nos mostra o mar, mas o sujeito que, pendurado à janela, limpa os vidros da cobertura. São escolhas de um cineasta que resolve sim se posicionar e interferir esteticamente na realidade objetiva que tem a sua frente. As filmagens de elevadores subindo são constantes e dramatizadas propositalmente para apresentar personagens que se sentem protagonistas de sua própria condição social. Estes mesmos entrevistados agem, o tempo todo, de maneira teatral exagerada, com trejeitos e falas que beiram a mais criativa das ficções.

No entanto, por mais fascinantes que esses personagens possam ser, Gabriel Mascaro não permite qualquer tipo de identificação e revela o seu próprio desconforto de estar ali, escutando de forma passiva determinados argumentos. É por isso que, em quase todas as entrevistas, a fotografia de Pedro Sotero busca criar distanciamento, principalmente através de movimentos de zoom repentinos durante alguns planos, que parecem dizer ao espectador que o incômodo da equipe também existe e que o olhar não pode deixar se contaminar. Assim, a presença da câmera se revela, como mediadora de uma relação que no momento é estética, mas que precisa ser política também para ser plena. E é por isso que as poucas intervenções de Gabriel são calculadas e, mais uma vez, surgem ora para criar distanciamento e revelar o aparato fílmico ora para colocar um posicionamento.

Uma artista plástica explica a sensação de domínio que ela tem por morar nas alturas, mas diz que não pode ser totalmente feliz sem dar a mão ao próximo e, por isso, trabalha como voluntária em um hospital de câncer. Segundo ela, o egoísmo é o mal do mundo. Então, surge pela primeira vez a voz do cineasta, que a interrompe para questionar se o voluntarismo vai acabar com isso, para em seguida revelar a visão maniqueísta da mulher. Em outro momento, o filho, que acompanha a mãe sendo entrevistada, corta a conversa e diz: “mamãe, acho que você está cometendo um erro gravíssimo. A senhora devia responder olhando para a lente e não para eles”. Novamente, Gabriel intervém para colocar que não tem problema com isso. São passagens que, qualquer montador preocupado apenas com a fábula e os formatos convencionais excluiria sem pensar duas vezes, mas aqui vão ressignificando o próprio processo pelo qual essa equipe passou.



Um Lugar ao Sol se enquadra numa categoria de documentários que se veem obrigados a “trair” seus personagens. Porém, estamos efetivamente diante de uma traição que não se pessoaliza e recai sobre os indivíduos. É uma traição de classe, necessária e que se revela, por exemplo, quando uma personagem afirma achar interessante que ele (diretor) faça um documentário de algo positivo, porque as pessoas só fazem documentários de coisas negativas, sobre a miséria. A personagem engrandece a iniciativa e aí a traição se revela inevitável, pois o impasse é político, de visão de mundo, mesmo que diretamente ligado a um processo de alienação, que está o tempo todo evidente no filme. Ironicamente, uma das entrevistadas tem o hobby de registrar seu cotidiano com uma câmera amadora e, enquanto filma o Cristo Redentor, explica que gosta de “sentir através de uma lente”. Nessas passagens, Gabriel Mascaro se apropria das gravações que ela faz e as utiliza no filme, mostrando, por exemplo, a imagem do filho que dorme. “Este é o mundinho dele, um pouquinho mais amplo, porque ele tem essa vista toda”, afirma ela.

É justamente ao humanizar os seus personagens e revelar a profunda contradição em que estão inseridos, que o documentário faz pulsar uma melancolia que beira o insuportável. A pergunta que logo nos vêm à cabeça é existencial, na medida em que questiona a doentia sociedade em que estamos inseridos. No entanto, o cineasta não isenta esta aristocracia pós-contemporânea de culpa, não cai na vala comum da compaixão, pois insiste, o tempo todo, em revelar a contradição discursiva, em negar a salvação através do valor cristão. A mesma mãe que é carinhosa com o filhinho critica e condena o desmatamento, que os moradores da favela fazem no morro e o “bang bang” que é obrigada a assistir. Outra chega ao ponto de narrar, de maneira fascinada, que o morro de Santa Marta é todo colorido, cheio de balas tracejantes. “Eu tenho o privilégio de ver fogos quase que diariamente. Isso é meio trágico, mas lindo”, diz a personagem que, em seguida, explica que tem uma área de serviço, onde mantém seus empregados distantes para preservar sua privacidade.

É a partir da relação com o espaço, que o documentário traça um preciso perfil da classe dominante brasileira, vítima sim de um processo de alienação cruel promovido pelo capitalismo, mas ainda assim responsável pelas ideologias que propaga e pelo conservadorismo disseminado. Falamos aqui de apenas nove pessoas, mas que servem de amostragem do aparato ideológico que comanda as relações sociais brasileiras. Por mais que haja exceções, reconhecemos discursos comuns como o de que “não é porque o cara é pobre que ele tem que ser bandido”. Se, por um lado, o empresário, dono de boates em São Paulo, pensa que todo pobre deveria ter no mínimo um prato de comida na mesa, por outro, é reticente com a ideia de que é assim mesmo, “no avião, você tem a primeira classe, a executiva e você tem a senzala lá no fundo. Eu vim ao mundo para os prazeres da vida”. Durante esta mesma entrevista, Gabriel Mascaro pergunta: “o que é poder pra você?”. A resposta, “poder é um prazer muito bom”, vem junto com um zoom repentino na cara do entrevistado, uma maneira de se distanciar de algo tão absurdo.

Em texto publicado na Revista Cinética, Fábio Andrade critica a estreiteza da estratégia do filme, que se foca principalmente na opção de se morar no alto de um prédio. Porém, não é justamente essa delimitação consciente de um método que se permite chegar a traços tão definidores de um grupo de pessoas determinados enquanto seres sociais? A condução das entrevistas é tão acertada que, para além da tese, conhecemos sim esses personagens e características de suas individualidades, incluindo hobbies, religião, relações familiares, questões filosóficas etc. Pelo contrário, o olhar não parece pré-definido, pela simples constatação de que aquela equipe está construindo sua tese enquanto filma, incomodada sim com o que vê e ouve. A personagem que se constrói da totalidade dos depoimentos é a desigualdade, que está latente à revelia dos discursos contrários destas pessoas.

É necessário despersonalizar os discursos justamente para não se atacar as pessoas, mas o próprio discurso. Não é somente para Gabriel Mascaro que morar em coberturas é uma questão de classes, mas para todo aquele que olha de forma mais atenta para o que está determinado. O discurso de classes não é exterior a obra de arte, pois não é leviandade dizer que a luta de classes existe enquanto verdade dentro e fora da arte, como elemento fundador da realidade. Portanto, toda obra que se proponha a afunilar a relação entre classes é no mínimo coerente com qualquer pretensão emancipadora do ser humano. Se há algo a ser combatido, estrategicamente nada mais sensato de que revelar as divergências e isolá-las ao invés de conciliar. É sintomático que quase todos os depoimentos de Um Lugar ao Sol, busquem a explicação transcendental, metafísica para as condições sociais, deixando de lado, justamente a questão de classe.

Em determinado momento, vêm à tona a simbologia máxima do filme que remonta às civilizações em que os astros e, principalmente o sol, eram venerados como deuses. Mãe e filho falam sobre a proximidade de um fenômeno único, em que Marte se aproxima de tal forma da terra que é possível ver o planeta do tamanho da lua. Então, o filho, personagem que parece retirado da mais bem construída ficção, diz que eles precisam ver marte, nem que aluguem um avião para furar as nuvens e adentrar aquele cenário onde Deus descansa. Enquanto acaricia um gato em seu colo, a mãe reflete que esta é uma vantagem de estar na cobertura. Mascaro questiona se é estar mais perto de Deus e ela responde que sim, que eles podem falar com Deus mais facilmente. A conversa segue por mais alguns instantes, até que desconfortável ela pede que a filmagem pare um pouco. Então, a traição se consuma novamente, não por falta de ética como podem muitos colocar, mas por excesso. Ética de quem se posiciona frente a tempos sombrios. A fábula do espaço é a metáfora essencial daqueles que lutam para que um dia todos tenham o seu lugar ao sol. A câmera de Pedro Sotero, Gabriel Mascaro e toda a equipe de Um Lugar ao Sol treme sim. Treme de medo, treme de insegurança, treme de raiva, treme de perplexidade e treme de frio, pois se o sol não surge, a frieza determina tudo a todo instante.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

CINECLUBE CINEMA EM REVISTA #2


O Coletivo Cinefusão, em parceria com a Cia Antropofágica, convida para a segunda sessão do "Cineclube Cinema em Revista", que dá sequência ao Ciclo "Cinema-Greve". Exibiremos, "A Guerra dos Gibis" (de Thiago Brandimarte Mendonça e Rafael Terpins), "Libertários" (de Lauro Escorel Filho) e British Sounds (de Jean-Luc Godard) O convidado para o debate será o parceiro Thiago Brandimarte Mendonça, do Coletivo Zagaia. A sessão é gratuita e ocorre a partir das 18h01, no Espaço Pyndorama (Rua Turiassú, 481), sempre no último domingo do mês.

A representação do trabalhador no cinema remonta à primeira exibição pública, ocorrida em 1895, na qual foi exibido “A Saída da Fábrica Lumière em Lyon”. De lá para cá, os filmes não só se converteram em entretenimento, como também abriram possibilidade para uma perspectiva crítica. Com isso, o ciclo “Cinema-Greve” que propomos pretende resgatar, em primeiro lugar, o espaço de debate característico das experiências cineclubistas, além do prazer estético e experiência coletiva de assistir a um filme. Num primeiro momento, tratar do tema greve pode parecer simplista ou até mesmo uma obviedade. No entanto, é imprescindível entender inclusive como o capitalismo assimilou e incluiu em seu vocabulário cotidiano o termo greve. Greve de fome, greve de sexo, na tentativa de desarticular um instrumento da classe trabalhadora para combater aqueles que detêm os meios de produção. 



Cineclube, experiência de recuperação do espectador morto. Espaço onde o óbito não é aceito sem diagnóstico. O especialista, neste caso, está desconvidado, o diagnóstico é feito de forma coletiva, sobre a égide do universalismo, em contraponto com a educação tecnocrata das instituições de ensino. O nosso ciclo é direto, Cinema-Greve. O cineclube é permanente, Cineclube Cinema Em Revista. Um participa da ação do outro. E afirmamos: A arte tem que ter uma perspectiva revolucionária, caso contrário, os ursinhos carinhosos dominarão. Será sempre convidado alguém que valha realmente a pena, inclusive, os sujeitos da mídia-piada brasileira. Neste caso, não garantimos que não ocorra um ataque feroz por parte dos presentes, sempre no nível do debate, mas prometemos lançá-lo para o abismo de suas contradições.

A parceria é com Cia Antropofágica, estômago antropofágico do teatro brasileiro. Nas suas encenações, o verbo explodir é uma ação de vitalidade estética, carregam T.N.T de baixo dos braços. Escarram na cartilha dos bons costumes cênicos. Seus animais, são os de bucho ruminante. Não poderíamos estar melhor acompanhados. 

No cardápio pipoca. Comida de índio. Supervalorizada pelo cinema de shopping. Para finalizar, o famoso passar chapéu, este dos mais variados, todos contendo o suor dos que ali exercem seu oficio.  

Estão quase todos convidados: 

“E sobretudo, meu corpo, da mesma forma que a minha alma, evitem ficar de braços cruzados em atitude estéril de espectador, porque a vida não é um espetáculo, porque um mar de dores não é um proscênio, porque um homem que grita não é um urso dançando...”

(Aimé Cesaire)

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

EXISTE UM BLOCO BRANCO?


Do ponto de vista dos trabalhadores, o que vimos ontem em São Paulo? As principais organizações de esquerda desfilaram (ou melhor: tentaram desfilar) pelas ruas da cidade. Qual o verdadeiro conteúdo do desfile? Do início ao fim, a tentativa de "conduzir" o ato assumiu um caráter inteiramente burguês. Era inevitável, já que os "inimigos" - aqueles que representavam o ponto de vista dos trabalhadores no ato - eram os meninos do Blac Block.

Antes da polícia mostrar os dentes, a repressão já havia começado. Mas, como? Por parte de quem? Da própria esquerda. A repressão da polícia, nesse sentido, foi apenas um "complemento natural". De certo modo, inclusive, as constantes tentativas, por parte das organizações, de isolar o bloco negro, foram mais odiosas que a própria repressão policial - afinal de contas, a polícia é um inimigo nítido.

Não é delírio. Literalmente: a esquerda preparou o terreno para o "massacre". E a repressão veio a galope, como sempre, sem distinguir o preto do rosa: a própria esquerda foi "massacrada" pela polícia. Mas tudo bem, desde que, amanhã cedo, todos saibam que "a culpa foi do Black Bloc". Parece delírio, mas é verdade: a repressão não começou com as bombas da polícia, mas lá atrás, no início do ato.

No lugar da polícia, estudantes universitários, organizações de esquerda (PSTU, PSOL, e derivados). É como diz o provérbio: com tais amigos, quem precisa de inimigos?

E a razão é simples: a maioria dos integrantes do Black Bloc são pobres. Não é exagero. Trabalhadores ou filhos de trabalhadores, que, na ausência de perspectivas mínimas, atiram-se na via da ação direta. Os militantes das atuais organizações de esquerda talvez não sejam capazes de compreender essa motivação. Afinal de contas, dentro do capitalismo, a possibilidade de estudar, comer bem, viajar, etc. não deixa de ser uma perspectiva máxima.

Isso explica a disposição e a coragem dos meninos do bloco negro, e também a arrogância da esquerda. O antagonismo de classe apareceu como fator central, ganhando expressão empírica em vários momentos do ato. Divergências táticas, oposição ao anarquismo, defesa dos professores, etc. é tudo mentira. Insistir em supostas divergências táticas - como faz o PSTU e o PSOL, por exemplo - é mentir para os trabalhadores. Uma crítica "tática" ao Black Bloc é objetivamente impossível. Demonstra, além do mais, uma profunda incompreensão da luta de classes.

Não bastam as mentiras da mídia burguesa, da igreja, da família? Certamente, não. É preciso ainda (e sobretudo) a mentira política, historicamente preparada pelos "representantes" da classe trabalhadora. O Black Bloc, atualmente, é o setor mais avançado da juventude brasileira. É uma dura verdade, difícil de reconhecer. A ação do bloco negro é uma projeção insuportável da ausência total de perspectivas na qual afunda a juventude. No fim das contas, expor a falta de perspectiva, por meio da ação direta, converte-se num modo inteligente de recuperar alguma perspectiva.

Eis a questão. Esta é a "dialética intrínseca" que determina a ação do Black Bloc: expor a falta de perspectiva para recuperar alguma perspectiva. Não faz sentido? Mas, na realidade, as questões que a esquerda se coloca são outras: o que é o Black Bloc? Jovens absolutamente desconhecidos, agindo "por fora" das organizações. Há um profundo sentimento de propriedade nesse incômodo. Tudo o que diz respeito aos trabalhadores (métodos de luta, palavras de ordem, etc.) é como se fosse propriedade privada das atuais organizações.

Mas, novamente, a AÇÃO do Black Bloc inverte a pergunta: na verdade, senhores, quem lhes deu o direito de controlar os processos de luta, com unha de ferro, no lugar dos trabalhadores? Mito de narciso às avessas, o método da ação direta acaba sendo uma espécie de espelho da crise de direção: utilizado pelo bloco negro, expõe à luz do dia os métodos da própria esquerda, e seu verdadeiro conteúdo de classe. E a esquerda, totalmente incapaz de auto-crítica, responde, por sua vez, exigindo que o Black Bloc "preste contas" de seus métodos.

Nas ruas trava-se uma verdadeira relação de força. Ou os meninos do Black Bloc aceitam o enquadramento na legalidade burguesa, ou a esquerda realiza uma auto-crítica, e tenta absorver a energia revolucionária do Black Bloc. Evidentemente, as direções não largam o osso. Só um imbecil acreditaria nisso. O Black Bloc, por sua vez, se mantém fiel a seus métodos (até quando?). No limite, a consequência é óbvia - e foi o que vimos ontem em São Paulo: na medida em que não conseguem reprimir a ação do bloco negro, a maioria dos setores da esquerda tende a defender, abertamente - em bloco branco! -, a legalidade burguesa.

O bloco negro não espera muito de si mesmo. Não encara a ação direta como meio de superar o capitalismo. Está claro. É inaceitável que uma organização que se propõe dirigir os trabalhadores contra o capital seja capaz de negar esta evidência. A ação direta é apenas uma tentativa imediata de recuperar o futuro. Se amanhã os trabalhadores tomarem as ruas, não fará o menor sentido a destruição de agências bancárias, ou concessionárias.

Nas Teses de Abril, Lênin propôs: "Fusão imediata de todos os bancos do país num banco nacional único sob controle dos Sovietes de deputados operários".

O conteúdo desta tese não está contido, de algum modo, na ação do Black Bloc? Porém, quanto aos meios para atingir esse objetivo, não faz o menor sentido exigir respostas do Black Bloc. Tal exigência é apenas um meio sórdido utilizado pelas organizações, para desviar o foco de suas próprias responsabilidades.

Se o espírito de junho não morreu, isso é devido à ação direta do Black Bloc. Os mesmos que, no Rio, usaram o próprio corpo para proteger os professores, contra a repressão. Os mesmos que, ontem, saíram às ruas com o objetivo de proteger o ato, e, mesmo assim, foram rechaçados pela esquerda, pelos próprios manifestantes.

No entanto, ao contrário do que muitos pensam, o repúdio da esquerda em relação ao Black Bloc não é pontual. É apenas a manifestação superficial de profundas mudanças nas condições da dominação burguesa no país, que, por diversos motivos, é cada vez mais instável.

A velha "espontaneidade das massas" pode e deve atingir níveis mais altos de radicalização. Consequentemente, os verdadeiros contornos dos atuais partidos da esquerda - todos, sem exceção, considerando o que representam atualmente -, tornar-se-ão cada vez mais nítidos, do ponto de vista de classe, isto é, aos olhos da classe trabalhadora.

Com certeza, a repressão da polícia não foi nada, em relação ao que pode. Mas, do outro lado não é diferente: o Black Bloc ainda é pouco!

Não se trata de acreditar no elemento espontâneo como meio de superação do capitalismo. Trata-se da certeza de que a radicalização espontânea é uma consequência inevitável das próprias contradições desse sistema. E que, portanto, tais contradições evidenciam a falta de horizonte das direções atuais. Isso ficou provado, mais uma vez, ontem.

Todo apoio ao Black Bloc!

Saudações vermelhas ao Bloco Negro!

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Cineclube Cinema em Revista (Vinheta)



Cineclube, experiência de recuperação do espectador morto. Espaço onde o óbito não é aceito sem diagnóstico. O especialista, neste caso, está desconvidado, o diagnóstico é feito de forma coletiva, sobre a égide do universalismo, em contraponto com a educação tecnocrata das instituições de ensino. O nosso ciclo é direto, Cinema-Greve. O cineclube é permanente, Cineclube Cinema Em Revista. Um participa da ação do outro. E afirmamos: A arte tem que ter uma perspectiva revolucionária, caso contrário, os ursinhos carinhosos dominarão. Será sempre convidado alguém que valha realmente a pena, inclusive, os sujeitos da mídia-piada brasileira. Neste caso, não garantimos que não ocorra um ataque feroz por parte dos presentes, sempre no nível do debate, mas prometemos lançá-lo para o abismo de suas contradições.

A parceria é com Cia Antropofágica, estômago antropofágico do teatro brasileiro. Nas suas encenações, o verbo explodir é uma ação de vitalidade estética, carregam T.N.T de baixo dos braços. Escarram na cartilha dos bons costumes cênicos. Seus animais, são os de bucho ruminante. Não poderíamos estar melhor acompanhados. 

No cardápio pipoca. Comida de índio. Supervalorizada pelo cinema de shopping. Para finalizar, o famoso passar chapéu, este dos mais variados, todos contendo o suor dos que ali exercem seu oficio.  

Estão quase todos convidados: 


“E sobretudo, meu corpo, da mesma forma que a minha alma, evitem ficar de braços cruzados em atitude estéril de espectador, porque a vida não é um espetáculo, porque um mar de dores não é um proscênio, porque um homem que grita não é um urso dançando...”

(Aimé Cesaire)

domingo, 29 de setembro de 2013

CINECLUBE CINEMA EM REVISTA


O Coletivo Cinefusão, em parceria com a Cia Antropofágica, convida para a estreia do "Cineclube Cinema em Revista", que terá início com o "Ciclo Cinema-Greve". Na primeira sessão, exibiremos três curtas: "Greve de Março" (de Renato Tapajós), "Rapsódia para um Homem Comum" (de Camilo Cavalcante) e "Dias de Greve" (do parceiro Adirley Queirós). A sessão é gratuita e ocorre a partir das 18h01, no Espaço Pyndorama (Rua Turiassú, 481), sempre no último domingo do mês. 

A representação do trabalhador no cinema remonta à primeira exibição pública, ocorrida em 1895, na qual foi exibido “A Saída da Fábrica Lumière em Lyon”. De lá para cá, os filmes não só se converteram em entretenimento, como também abriram possibilidade para uma perspectiva crítica. Com isso, o ciclo “Cinema-Greve” que propomos pretende resgatar, em primeiro lugar, o espaço de debate característico das experiências cineclubistas, além do prazer estético e experiência coletiva de assistir a um filme. Num primeiro momento, tratar do tema greve pode parecer simplista ou até mesmo uma obviedade. No entanto, é imprescindível entender inclusive como o capitalismo assimilou e incluiu em seu vocabulário cotidiano o termo greve. Greve de fome, greve de sexo, na tentativa de desarticular um instrumento da classe trabalhadora para combater aqueles que detêm os meios de produção. 
 
O evento no facebook está no link https://www.facebook.com/events/148998075307659/?ref=ts&fref=ts

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Violência, língua e literatura


Não há na violência
que a linguagem imita
algo da violência
propriamente dita?

(Cacaso)




Num belo trecho, Lev Davidovich tenta explicar a beleza da língua francesa do seguinte modo:

"A língua francesa, tão bela, tão acabada em suas formas, e cuja polidura herdou, por certo, alguma coisa de um instrumento tão acerado como a guilhotina, será novamente precipitada, por efeito da dialética histórica, num profundo cadinho, para uma refundação a alta temperatura. Sem nada perder de sua lógica perfeita, adquirirá maior maleabilidade. A revolução da linguagem exprimirá uma nova revolução no domínio das ideias. Esta, por sua vez, não se dissocia de uma revolução no domínio das coisas".

Assim, a “dialética intrínseca” (outra expressão de Lev Davidovich) dos processos históricos determina as possibilidades formais de uma língua. A revolução burguesa, na França, com suas guilhotinas, “acerou” o gume da língua francesa. Vale citar, nesse sentido, aquele que talvez seja o maior romancista francês do século XIX:

Terminarei com a pena aquilo que Napoleão iniciou com a espada”. (Balzac)

Claro, a obra literária não possui um décimo do poder político de Napoleão, e seu exército. Não é disso que se trata. É um mergulho, através da criação, nas profundezas sociais que, de algum modo, foram sedimentadas pela ação militar do Imperador. Devemos considerar, também, uma leve ironia nas palavras de Balzac: os grandes artistas recebem a herança da ação dos homens, e é com esta herança que devem contar, encarando-a de frente - muitas vezes, inclusive, de costas para o futuro. Basicamente, Lev Davidovich não diz outra coisa. Assim, a pretensão de Balzac ultrapassa a si mesma. O elogio aparente de Napoleão, por sua vez, é uma isca para tolos – no caso, seus leitores, a própria burguesia francesa. 

É notável a agudeza da observação: num simples comentário, Lev Davidovich remete às conclusões mais avançadas do marxismo aplicado aos estudos linguísticos, fazendo lembrar imediatamente a obra de Mikhail Bakhtin – a qual, certamente, não havia lido, por motivos óbvios (Bakhtin foi caçado pelo stalinismo...). Apesar da brevidade do trecho, o modo de formular o problema não reduz a complexidade do fenômeno. Pelo contrário: utiliza poucas linhas para sugerir a riqueza de relações entre luta de classes e desenvolvimento linguístico.

A guilhotina dos jacobinos “acerou” a língua francesa, acompanhando mudanças ocorridas em todos os domínios da vida social – que tanto interessava a Balzac -, e, principalmente, enquanto durou a rápida ascensão da burguesia, logo interrompida pela insurgência grandiosa do movimento operário (1848). Daí em diante, não só o idioma, mas a própria literatura européia entra em franco declínio, de um modo geral – crise do romance realista, entre outros.

Para além do caso específico da França, há outros, em que a violência intrínseca à vida social, de algum modo, influi decisivamente na literatura. Por mais que acentuemos a face lírica em Guimarães Rosa, por exemplo, é evidente como a ausência de lei na vida sertaneja comparece em sua prosa, na própria reinvenção constante da linguagem. O sertão é o lugar do susto: as leis são feitas e desfeitas a cada passo, conforme o desejo do mais forte. Assim é que, igualmente, na prosa do autor, o leitor é "assaltado", a cada passo um susto. Um lampejo. Uma nova ordem "cósmica" se instala, para desaparecer na sequência - só que, ao invés do risco de tomarmos uma facada, um tiro, ou nada, somos agraciados com o poder da invenção - que renova-se a si mesmo.

Voltando. Na Rússia (Lev Davidovich era russo), o passado também deixou cicatrizes no idioma. Porém, nesse caso, é a boçalidade e a grosseria, que se comunicam profundamente à estrutura mesma da língua. Seria ingenuidade, ou má-fé, imaginar que a luta de classes esteja ausente no processo histórico pelo qual estrutura-se uma língua, em determinado país. Pelo contrário, conforme demonstra Bakhtin, a luta de classes é surpreendentemente um meio eficaz de explicar a engrenagem completa de um idioma. 

Parece que, de algum modo, as regras básicas do idioma – sobretudo as regras vivas da língua oral – guardam em si uma espécie de propensão natural à violência. Praticamente escorregam da língua, por assim dizer, expressões grosseiras e brutais. Mas será que se trata apenas de aparência? Será exagero? De fato, talvez seja apenas um enorme poder de síntese - refiro-me ao enorme poder de síntese da brutalidade verbal - num meio que, afinal de contas, é dominado pela brutalidade social.

No entanto, a primeira revolução proletária da História ocorreu na Rússia, país atrasado. O que isso tem haver? É que, do mesmo modo, a literatura russa atingiu níveis altíssimos de expressão - apesar da brutalidade. Níveis inesperados, talvez, como a própria revolução. Mas, será mesmo "apesar" do atraso? Basta lembrar da grosseria de Fiódor, pai dos irmãos Karamazov. Ou, então, a violência abstrata do conto O Nariz, de Gógol, em que o major Kovaliov, ao se olhar no espelho depara-se com a ausência do próprio nariz, num "lugar perfeitamente raso" (até mesmo a descrição do que seria, mais simplesmente, um "buraco", é totalmente enviesada, obscura, e, portanto, violenta: afinal, o que seria, em lugar do nariz, um "lugar perfeitamente raso"?). 

Como dizíamos, a literatura russa atingiu níveis altíssimos de expressão - "apesar" do atraso. Como isso é possível? Assim perguntavam os críticos da burguesia, do mesmo modo que a social-democracia alemã (e atual) teve de engolir a Revolução de Outubro, sem jamais entendê-la completamente. Entretanto, não será justamente o atraso, aparecendo como obstáculo à criação, que, "superado", converte-se no que há de mais avançado na época? Superando, inclusive, ou adiantando-se, ao “modelo de lá” - “mais avançado.” Dostoievski é o grande exemplo, talvez, na Rússia (e Machado de Assim, entre nós, deveria, talvez, ser mais... exemplar). Ler bem Machado, é deixar que ele nos leia.

Para encerrar, voltemos a nosso autor, Lev Davidovich. Ele diz, noutra ocasião:

"A grosseria de linguagem - em particular, a grosseria russa - é uma herança da servidão, da humilhação e do desprezo pela dignidade humana. Seria necessário perguntar aos linguistas e aos folcloristas se noutros países verifica-se uma grosseria tão desenfreada, tão repugnante, como entre nós".

Certamente, Davidovich não conhecia o Brasil. Mas, claro, é compreensível sua revolta. De passagem, para terminarmos, vale a pena citar mais um bocadinho suas palavras, verdadeiramente reveladoras de alguns traços da nossa miséria atual: "Mas, nas camadas populares, a grosseria exprime o desespero, a irritação e, acima de tudo, uma situação sem esperança e sem saída". 

Como pensar, nesse sentido, o funk? É comum a depreciação. Nota-se uma reação violenta, muitas vezes, em relação a um "gênero" musical que, em todo caso, está largamente difundido entre as camadas miseráveis da população - sobretudo nos grandes centros urbanos. De fato, dificilmente se verá, como no funk, tamanha brutalização da linguagem. No entanto, é preciso notar como a reação dos delicados, quase sempre, é tão ou mais violenta que o próprio funk. Sobretudo porque, disfarçada de bom gosto (que quase sempre nunca é tanto...), o que se insinua é um forte preconceito de classe, o velho racismo de sempre. Impulso proto-fascista de higienização "cultural" (que, no entanto, tem o "corpo negro" alheio como alvo). 

Ora, se Lev Davidovich estiver certo, então, ao contrário do que diz a classe-média, é o desespero e a falta de esperança que explica a brutalização da linguagem, no funk, e não um simples "mau gosto". Quer dizer, se o desespero for real, os "funkeiros" talvez sofram muito mais com a vida que levam, do que a classe-média, obrigada a "tolerá-los". 


segunda-feira, 23 de setembro de 2013

O Soldado de La Ciotat (Bertold Brecht)

Depois da primeira guerra mundial, vimos na pequena cidade portuária de La Ciotat, no sul da França, junto a uma feira realizada para celebrar o lançamento à água de um navio, em uma praça pública, a estátua em bronze de um soldado do exército francês, ao redor da qual se aglomerava a multidão. Nós nos aproximamos e descobrimos se tratar de um homem vivo que estava ali de pé, imóvel, vestindo um capote marrom-terra, o capacete de aço na cabeça, uma baioneta nos braços, sob o sol quente de junho, sobre um pedestal de pedra. O rosto e as mãos dele tinham sido pintados de uma cor bronze. Ele não mexia nenhum músculo, nem mesmo pestanejava. A seus pés, junto ao pedestal, apoiava-se um pedaço de papelão, sobre o qual podia-se ler o seguinte texto: 

O Homem Estátua 
(Homme Statue)

Eu, Charles Louis Franchard, soldado do ...° Regimento, adquiri, como consequência de ter sido enterrado vivo em Verdun, a invulgar capacidade de permanecer totalmente imóvel e de comportar-me, durante o tempo que for desejado, como uma estátua. Essa minha habilidade foi investigada por muitos docentes e descrita como uma doença inexplicável. Por favor, faça uma pequena caridade a um pai de família sem trabalho! 

Nós jogamos uma moeda no prato que estava ao lado desse cartaz e, a balançar a cabeça, continuamos caminhando.

Eis que, pensamos nós, aqui está ele, armado até os dentes, o soldado indestrutível de muitos milênios, ele, com o qual se fez história, ele, que tornou possíveis todos esses grandes feitos de Alexandre, César, Napoleão sobre os quais lemos nos livros didáticos. Isso é ele. Não pestaneja. Esse é o arqueiro de Ciro, o condutor de bigas de Cambises, que a areia do deserto não conseguiu enterrar por definitivo, o legionário de César, o lanceiro de Gengis Khan, o membro da Guarda Suíça de Luís XIV, e o granadeiro de Napoleão I. Possui a capacidade, no fim das contas nem tão rara assim, de passar desapercebido quando todas as ferramentas de destruição imagináveis são testadas nele. Ele permaneceria como uma pedra, impassível (diz ele), quando enviado para a morte. Varado por lanças das mais diferentes épocas, de pedra, de bronze, de ferro, abalroado por veículos de guerra, os de Artaxerxes e os do general Ludendorff, pisoteado pelos elefantes de Aníbal e pelos cavaleiros de Átila, destroçado por pedaços de metal volantes das cada vez mais perfeitas peças de artilharia de séculos a fio, mas também pelas pedras volantes das catapultas, dilacerado por balas, grandes como ovos de pomba e pequenas como abelhas, ele continua de pé, indestrutível, de novo e de novo, a receber ordens em diversas línguas, mas sempre ignorando por quê e para que. As terras por ele conquistadas, não coube a ele possuí-las, da mesma forma como o pedreiro não mora na casa que construiu. Tampouco lhe pertencia a terra que defendeu. Nem mesmo sua arma ou seus equipamentos lhe pertencem. Mas continua de pé, sobre ele a chuva mortal dos aviões e o betume ardente das muralhas da cidade, sob ele minas e armadilhas, ao redor dele peste e gás mostarda, isca de carne e osso para lanças e flechas, ponto de mira, lama de tanques, fogareiro a gás, diante dele o inimigo, atrás dele o general! 

Incontáveis as mãos que lhe costuraram o gibão, lhe martelaram o arnês, lhe talharam as botas! Incontáveis os bolsos que se encheram por meio dele! Incomensurável o brado em todas as línguas do mundo que o encorajou! Nenhum deus que a ele não abençoasse! A ele que está acometido da terrível lepra da paciência, tornado oco pela incurável doença da impassibilidade!

Que tipo de enterro, imaginamos nós, é esse a que ele deve essa doença, essa terrível, monstruosa, tão contagiosa doença? 

Ela não deveria ser curável?