O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

LUIZ FERNANDO CARVALHO NÃO ESTÁ GRÁVIDO

Entrevista realizada por Alexandre Werneck e publicada originalmente no site contracampo: http://www.contracampo.com.br/52/entrevistaluizfernandocarvalho.htm




Luiz Fernando Carvalho, parece, estava falando sério. Quando lançou, em 2001, Lavoura Arcaica, um dos filmes brasileiros mais celebrados - se não o mais celebrado - dos últimos anos [veja mais detalhes no verbete sobre o cineasta], ameaçou que aquele poderia ser seu último longa-metragem. Não seria tão chocante se Lavoura não fosse seu também seu primeiro. Segundo o diretor carioca de 43 anos, não se faz um filme por qualquer motivo. Em uma abnegação quase monástica, ele prefere uma postura de isolamento, de exército de um homem só. Luiz Fernando se tornou uma espécie de eremita estético político. Mas vá à montanha atrás dele e lhe pergunte sobre o cinema brasileiro atual. Sua fala é ensangüentada, aguerrida, e, ao mesmo tempo, explicativa. "O que me arrastava quando fiz Lavoura era uma raiva muito grande", diz ele hoje, olhando para trás. Segundo ele, o cinema brasileiro da chamada "retomada" se rendeu a modelos hegemônicos e a uma tendência comercial, por isso, é uma profanação, uma prostituição do que para ele é um espaço sagrado. A mesma raiva vai se acumulando dentro dele, mas custa a se formar o óvulo de uma nova cria. "Vou continuar assim até ficar grávido de novo", afirma o diretor. Na entrevista a seguir, ele fala de como acha difícil encontrar filmes bons, da relação com a televisão, de outros cineastas brasileiros e das perspectivas de carreira no cinema brasileiro atual.

* * *

Uma das afirmações mais habituais sobre a chamada "retomada" é a de que a grande marca deste momento é que nós alcançamos um cinema múltiplo, de múltiplas estéticas, um cinema que tenha "do filme do Bressane ao filme da Xuxa". Você vê nesse cinema efetivamente multiplicidade ou o tal "diálogo com o público" fez os filmes ficarem quase todos parecidos, como alguns críticos (eu incluído neles) apontam?

Estou completamente de acordo quando você põe em dúvida essa pluralidade. Acho que talvez ela até exista em certo grau, do ponto de vista dos temas. Falamos da favela ao Nordeste. Mas naquilo que mais interessa, que é onde reside a linguagem, acho que estamos atrelados a uma caligrafia hegemônica. Cria-se constantemente esse mito da pluralidade, de que estamos nos aproximando de um realismo do ponto de vista da tradução do país. Mas o mais importante é que conseguíssemos criar uma linguagem brasileira.

O Lavoura Arcaica, inclusive, vai na contramão de uma tendência forte deste cinema, que é o de fazer filme "sociologizóides".

Acho que isso tem a ver com a identidade brasileira. Ela é, primeiro, verdadeiramente múltipla; segundo, ela está em movimento, em formação. Não se pode dizer "o Brasil é isto" ou "o Brasil é aquilo". O Brasil é um dos poucos países do mundo que ainda está em ebulição. Essa é a nossa riqueza. Minha preocupação com o Lavoura foi inclusive a de fazer com que o filme aglutinasse esses movimentos, essas várias origens, essa face multifacetada. Afinal, nós somos negros, portugueses, árabes, espanhóis, japoneses. O filme é grego, é barroco, é árabe, é nordestino, se parece com uma história passada em um Sertão de Graciliano. Tive muito fortemente essa preocupação em não regionalizar. Mas a geografia externa não era o que mais me interessava. A geografia externa interessa muito aos diretores que trabalham com temas, que tem nos temas o tudo de seus filmes. Aí eles têm que ilustrar um tema. Eu não tinha que ilustrar nada, muito pelo contrário.

Você acha importante essa dimensão econômica que o termo "retomada" na verdade revela, ou seja: é preciso haver muitos filmes para que haja filmes bons? É preciso haver filmes ruins para que haja filmes bons?

Não. Eu não acredito nisso e nunca vi as coisas assim.

Mas é algo que se diz muito.

Isso para mim é desculpa, desculpa para boi dormir. Quando o camarada é bom, até os filmes ruins dele têm qualidade.

Vamos só estabelecer uma terminologia aqui: o que você quer dizer quando fala em "qualidade"? Pergunto isso porque a busca da "qualidade" é outro argumento muito habitual como marca da "retomada". Isso é muito forte ao se falar da fotografia que praticamos hoje, que tem produzido em vários filmes imagens sedutoras, que se tornaram o ícone de um "cinema de qualidade"...

Tudo isso é fruto do uso do vocabulário hegemônico de que falei. Estamos trabalhando em cima de meia dúzia de regrinhas que aprendemos da cartilha hegemônica. Como pode um país deste tamanho abrir mão de tanta capacidade criativa que ele tem, da tal identidade multifacetada, desse caldo, em favor dessas regrinhas? Esquece-se de uma expressão mais verdadeira, que, aí sim, vai se tornar bela pela necessidade de expressão do artista que vai estar por trás. Mas hoje se esbarra no fato de que esta é uma geração que não exercitou a linguagem. É uma geração que, em sua grande maioria, não se permitiu o desafio do exercício criativo, uma geração que até hoje opera a partir de estatutos do mercado, o que fez com que muitos diretores reduzissem a margem de criatividade de seus filmes, tornando-os escravos das "regras de bilheteria". O cinema comercial desapropria o aprendizado, rouba o aprendizado do diretor e faz com que ele não exercite a linguagem. O antídoto para tudo isto talvez esteja nas novíssimas gerações, na juventude, na rapaziada que está começando agora, nos curtas-metragens, nas experiências mais radicais em digital, enquanto nós, a grande maioria dos cineastas, se vê atrelada a uma dúvida imensa sobre como fazer. Nós não sabemos como fazer, porque nós não nos investigamos o suficiente a ponto de criar um vocabulário. Substituímos essa busca de expressão por uma busca de mercado. Você vê hoje: nós temos as novas tecnologias. Eu digo: Meu Deus, nós temos as novas tecnologias! Hoje, há câmeras que podemos colocar no bolso e não estamos fazendo nada com isso! Todo o problema da dificuldade de realização resolvido através dessas novas tecnologias, mas falta a linguagem, não encontramos o que fazer com essas tecnologias. Estamos como mancos do ponto de vista da narrativa. Temos grandes dificuldades de encontrar novas formas de narrar para além daquele convencionalismo para o qual o bom cinema americano entregou a narrativa cinematográfica. O cinema narrativo americano dos anos 50 e 60 é de qualidade inegável. Há grandes narradores. Mas hoje, o próprio cinema americano se tornou uma caricatura dele mesmo. E nós estamos nos formando a partir dessa caricatura. Acreditamos no excessivamente descritivo. Tudo isso leva a essa idolatria por essas imagens glamourizadas de Sertão, favela etc que vemos tanto.

Você entregaria o Lavoura como um troféu, como uma prova de que um filme como ele é possível no Brasil? Você insistiria em termos de carreira em cinema como aquele e acha que outros cineastas devem fazê-lo também?

Olha, vou pegar na mão do Ferreira Gullar para dizer que "se expressar é uma questão de vida ou morte". Todo mundo que procura um modelo está perdido. Acredito na sinceridade, no vôo artístico como fruto de uma necessidade muito autêntica e invisível, que aos poucos vai tomando forma. Não tinha nem a menor condição de dizer, quando estava preparando o Lavoura, como ele seria. Mais conscientemente, o que me arrastava era uma raiva muito grande.

Raiva de...

De tudo o que estava vendo, ouvindo...

Fazendo?

Fazendo. Isso não é nenhuma novidade para a história da arte. Toda criação de uma certa forma é uma negação, uma agressão ao que vem antes, pelo menos ao que está logo ali ao lado. E logo ali ao meu lado, no meu trabalho na TV, nas salas de cinema, o que eu via, me irritava profundamente, me deixava muito solitário, muito agoniado. Eu não acreditava naquilo. Essas coisas todas me afetavam muito, me infectavam muito. O Lavoura, de uma certa forma, foi a minha resposta a tudo que eu vinha vendo e sentindo desde sempre. Claro, hoje em dia eu posso fazer um outro tipo de filme, mas eu só vou ter vontade de fazer um novamente, quando eu sentir meu sangue envenenado de novo. Não acho que filmar seja um exercício da vaidade, de ficara aparecendo de três em três anos...

Devo entender com isso que você acha que o Lavoura resolveu essa raiva?

Só em relação a mim mesmo. No mais, não tenho nenhuma pretensão em representar anseios coletivos. Não acredito em regras gerais, não acredito em fórmulas, em nada disso. Já tomei muita porrada na vida por não acreditar, mas não tem outro jeito. Já tentei acreditar e tomei porrada pior ainda, porque tomei de mim mesmo. Como sei que essas feridas custam a cicatrizar, eu não me interesso por nada que seja falso. O Lavoura, claro, não foi suficiente. Ele é uma resposta a um estado de espírito, a uma leitura de mundo naquele momento. Escolhi aquele texto porque ele me pareceu o texto que continha não só as pedras que eu queria jogar, mas também uma dimensão emocional e sensorial que reconhecia de muito perto. O filme atende primeiramente a minha necessidade de expressão e não a de uma classe cinematográfica. Mas tenho certeza de que ele defende a sensibilidade de quem quer filmar. Não só isso, aliás, defende as sensibilidades, os desejos e as coragens. E só. Ele não cumpre tarefa histórica cinematográfica nenhuma, não se atrela a período nenhum. Não me acho um filme de "retomada" nem acredito nessa palavra. Não creio que se esteja retomando coisa nenhuma a não ser que o país dê uma volta muito mais completa do que tem se desenhado nos últimos anos. Aí sim poderíamos falar de uma retomada, a retomada de uma consciência de nação, de povo e, conseqüentemente, de uma realização cinematográfica desse nível.

Esse pensar o Lavoura como reposta a essa raiva torna obrigatória a pergunta: você tem aquele prazer de filmar, aquela vontade de cinema que vários cineastas proclamam?

Para mim o cinema é sagrado. É um espaço sagrado e um espaço de que não entro e saio com qualquer coisa e nem por qualquer coisa. Estou querendo te dizer que eu já fui muito procurado para prostituir esse espaço e não o fiz. Resolvi preservá-lo e só entrar nele quando realmente tiver muita fé.

De cinema você está falando do filme para ser projetado na sala escura? Pergunto isso porque você já foi acusado de se prostituir ou prostituir a linguagem fazendo televisão porque as novelas seriam menores...

Sim, mas eu acho que são menores mesmo, não são? Eu vejo essa relação com muita clareza. Talvez por eu separar muito esses dois espaços. Eu fiz curta-metragem na geração de 80. Comecei a escrever em 1982 o filme de 1986 [o curta-metragem A Espera]. E fiz meu primeiro longa em 2001. Olha o intervalo. Por que eu não fiz antes? Fui muito convidado para fazer, mas eu lia os roteiros e eles não se correspondiam com minha visão e meu desejo cinematográfico. Eu sou filho de cinemateca, rato do MAM. Sou um cara chato para cinema. Não gosto de muita coisa. Costumo ver os mesmos filmes que sempre vi. Escolho muito o que vejo, então escolho muito o que faço também. Por isso vejo com muita clareza esses dois lugares, o espaço do cinema e o espaço da televisão, e então sinto que se faz necessário aos artistas e os especialistas que trabalham na televisão pensarem numa nova missão para a televisão. Esta nova missão estaria, no meu modo de sentir, diretamente ligada à educação, a uma reeducação a partir das imagens e dos conteúdos. Até agora, a grande comunicação de massa, bem como a mídia, outros meios de comunicação e o tal cinema americano, foram os grandes responsáveis por uma gigantesca operação de condicionamento do povo. É por tudo isso que vejo o espaço da televisão com responsabilidade, tanto que não faço muita coisa o tempo todo e quebro a cara pra cacete ali dentro, porque tento encontrar uma maneira mais pessoal de realizar dentro de um processo industrial. Todo diretor de TV tem uma produção quase alterofilista, tem que levantar não sei quantas novelas por ano. E eu faço bem menos que isso. Mas tem uma coisa: só terminei o Lavoura porque tinha um contrato com a televisão. Tenho essa consciência de que só graças à televisão consegui fazer uma poupança para correr para o cinema e fazer como eu quero e ninguém meter a mão. É isso que tenho que fazer neste país. E nesses grandes intervalos eu me preparo, me alimento. Na televisão eu procuro abrir um espaço mais próximo da educação do que da linguagem, tento recuperar na imagem da televisão algo que trabalhe a informação e a educação.

Alguma coisa te inquieta, te dá raiva o suficiente hoje para pensar em um novo filme?

Muitas coisas. Mas ao mesmo tempo em que estou cercado de fantasmas, com cada um chegando mais perto, e com cada um sendo uma idéia para um filme, eu resisto a eles. Eu os jogo contra a parede, não acredito neles de primeira. Trabalho muito com a dúvida. Mas vou as jogando as idéias fora até que há uma que volta e diz: "Não, eu tenho que ficar, eu quero virar filme". E essa virará filme. Então, o mundo das imagens, da narrativa cinematográfica, eu o respiro 24 horas por dia, mas talvez por já ter exercitado muito no sentido do fazer, até por conta da televisão, apesar de ser outra gramática, eu aprendi a guardar idéias na gaveta para não ficar me repetindo a cada filme.

E elas podem ficar lá por muito tempo?

Uma das idéias que mais têm me cercado hoje em dia tem 20 anos de gaveta. Ela é da época do A Espera. É uma espécie de continuação do curta. Não falo mais dela porque ainda é uma idéia, não é algo que eu possa destrinchar do ponto de vista estrutural. Ainda estou fazendo anotações em meus caderninhos, de uma forma muito aleatória. O que há é um desejo muito forte de falar sobre a imaginação. É uma história sobre a capacidade que nós temos de inventar e matar a imaginação o tempo inteiro e como isso contracena com a dita realidade. Estamos o tempo todo promovendo atentados contra a realidade a partir de nosso desejo de imaginar. E o amor tem um papel fundamental nisso, aquilo que talvez seja o que potencializa mais esse desejo de imaginar, esse vôo. É uma história com esse tipo de universo. É isso que me emociona. O cinema mais uma vez é um objeto que ajuda a fazer essa bifurcação entre realidade e fantasia. Você entra numa sala para sonhar, mas, ao mesmo tempo, se você não encontrar neste sonho uma grande ligação com a realidade, não faz o menor sentido.

Considerando que essa idéia flua e nasça um segundo longa seu, você imagina que haveria alguma coerência de obra entre eles? A palavra costuma ser uma carne forte nos seus filmes. Você adaptou Roland Barthes para o cinema, adaptou dois dos textos mais verborrágicos do Ariano Suassuna para a TV, adaptou a prosa do Raduan Nassar. A opressão da linguagem sobre o homem está sempre lá. Esse é elo ou você não enxerga elo?

Eu não enxergo nada disso. Talvez porque eu não tenha parado para fazer essa reflexão que você fez. Não sinto uma coluna vertebral entre esses trabalhos, mas certamente deve existir. Não procuro seguir um caminho, não sinto um trabalho sendo fruto do outro, não sinto essa coerência. Mas não sou muito a fim de coerência. A única coisa que posso te dizer é que a literatura tem uma importância muito grande na minha vida. Sou filho de classe-média bem média, de pai engenheiro civil nascido em Piedade e que tinha um amor pelos livros muito grande. E desde criança peguei esse amor pela literatura e me refugiei muito na literatura nos momentos mais difíceis da minha infância e adolescência. Sempre acreditei nesse jogo com as palavras, nas imagens das palavras, nas possibilidades de transcendência das palavras, sempre visualizei muito os livros. Talvez esses primeiros passos que eu dei no cinema e na televisão tenham ligação com essa relação com a literatura.

Essa afirmação de incoerência chama a atenção para uma individualidade muito grande. Isso sugere um questionamento forte do cinema brasileiro hoje: devemos aceitar a idéia de multiplicidade ou devemos pensar em um movimento, a exemplo do Cinema Novo? Quem tem defendido esse "movimentismo" são diretores como você ou o Erik Rocha e o Karim Aïnouz, por exemplo, diretores que têm justamente essa individualidade e essa singularidade quase eremíticas.

Da mesma forma como me sinto muito solitário, tenho certeza de que o Erik se sente muito solitário, assim como Karim e... muito poucos outros. E essa solidão nos dá esse sonho de um grupo. É quase uma fantasia nossa. Mas acredito que cada um de nós é solitário por uma razão muito verdadeira. No meu caso, é uma questão de contestação mesmo. Sinto-me muito inadaptado a certos procedimentos cinematográficos que o Brasil encaminha e assume. E acho que se eu escolhi fazer esses filmes, eu tenho que tomar um outro caminho, senão isso vai me abrir feridas muito grandes. Mas tenho certeza de que esses que você citou têm razões para se sentirem desejosos de um grupo. É uma escolha muito dolorosa. Ao escolher este caminho solitário você se depara de uma maneira muito clara com a máquina que processa e produz o imaginário neste país. É uma guerra violenta. É um momento muito delicado, já que ainda não conseguimos criar uma imagem, uma estética, que nos represente no nível do caráter.

Você não acha que essa postura um tanto eremítica ajudou a criar uma imagem de desejo de superioridade ou de antipatia?

É um desejo de caráter, um desejo de caráter. Eu não vendo a minha mãe, mesmo. Podem continuar insistindo, mas eu não vendo. Eu tenho que me estruturar para continuar e minha única força quando eu filmo é o filme em si. Foi o caminho que escolhi a partir do Lavoura. É um caminho que me deixa extremamente solitário, mas é um caminho que me interessa. Sinto que me aproximo das pessoas de uma forma mais verdadeira. E me sinto continuando alguma coisa. Não inaugurando ou renovando, mas continuando algo que já tenha sido feito dessa forma na história da humanidade, com um desejo sincero, com a mesma busca pela verdade que um jornalista tem, que um pintor tem, que um escritor tem, que um artista de rua tem. Então, se para não me isolar eu tiver que vender minha mãe, fico isolado. E vou me isolar até eu estar grávido de novo, quando tudo isso me inflamar o sangue de tal forma que eu vou parir outro filme. Não é uma posição eremítica, é uma posição de contestação mesmo. Não aceito, não estou a fim.

Você disse que vê poucos filmes. O que tem lhe interessado no cinema brasileiro?

[Longo silêncio] Dos anos 80 para cá, sem dúvida nenhuma os curtas-metragens. É ali que identifico uma possibilidade de diálogo com a imaginação, um entendimento mais profundo do mundo das imagens. De modo geral, os longas-metragens são fruto de um cinema de diálogo mesmo, um cinema muito televisivo, monocórdio.

Mas nada lhe interessa nos longas?

É evidente que há uma produção interessante. É rara, mas existe. Um filme de que eu gostei muitíssimo de ver O Sertão das Memórias, do [José] Araújo. É o tipo de filme que anima a gente, porque é uma tentativa de narrativa que uma grande parte do Brasil poderia estar exercitando, um filme que vai na contramão dessa glamourização de que falamos antes. Gosto do cinema do Bressane de um modo geral. Acho que entre os altos e baixos ele expressa um grande amor pela linguagem cinematográfica, que é o grande hiato que a gente tem.

É mesmo um grupo bem restrito.

Quando eu falo que vou pouco ao cinema, é porque tem muita coisa ruim. Há muito poucos filmes bons em cartaz, brasileiros ou não. Se você for severo, você nem vai ao cinema. Mas antes de qualquer coisa, quero deixar claro que esta é uma crítica de desejo. Gosto muito do nosso cinema e desejo o melhor para ele. Mas a minha predileção é a cinematografia brasileira dos anos 60. Lá eu me deleito. É preciso falar de filmes pontuais. Por exemplo: eu gosto muito do cinema do Carlão [Carlos Reichenbach] de maneira geral, mas hoje, muitas vezes só é possível falar de um filme de um diretor, de outro de um outro. No mundo todo, aliás. Não dá para dizer: "Gosto de todos os filmes do Godard". Não dá. Mas para não parecer que eu só vi O sertão das memórias, gosto muito de Um Céu de Estrelas [de Tata Amaral] e de Ação Entre Amigos, do Beto Brant, principalmente da parte final, da maneira como é conduzida a câmera. Acho que o Beto é um diretor que tem uma miragem no olhar, o que é raro hoje em dia. Gosto mais deste filme do que de Os matadores. E agora, ultimamente, gosto do Amarelo Manga [de Cláudio Assis]. Ah, e gosto de Cronicamente Inviável [de Sérgio Bianchi]. Entre os documentários, tenho me impressionado com muitos, mas agora vou pegar só um: Rocha que Voa.

E lá de fora?

Estou chegando de lá e conheci algo que me deixou maravilhado: Hou Hsiao-hsien. Os orientais estão dominando, rapaz! O cinema francês está muito ruim. A impressão que você tem é que se você espremer não sobra nada.

Vocês todos, cineastas da "retomada", começaram como cineastas depois de um período de hiato de produção, uns vindos do clipe, uns da TV, outros da publicidade, outros ainda da filosofia etc. O que é ser cineasta em um contexto como esse?

Eu sinto que cabe a todos aqueles cineastas que destaquei antes a observação de que eles sentiram essa necessidade de agredir esse pântano. Mesmo sem ter isso consciente, mas como uma necessidade de expressão. Porque quando você entra para ver um filme, você quer gostar muito dele, quer imaginar muito, quer que aquele filme te arraste. Se isso não está acontecendo, se você entra e sai do cinema e não viajou, então você passa a criar o seu filme, o seu desejo. Acho que todos esses diretores de que falei têm seus filmes como uma resposta ao mundo em que vivem. Essa resposta transcende o cinema em si. É uma resposta a tudo o que vemos, escutamos, lemos. Somos chamados a dizer o que achamos de tudo isso, gostando ou não desse conjunto de coisas.

É uma empreitada grande transformar esse cinema.

Eu não penso nem um pouco assim, em transformar. Que temos a responsabilidade de transformar o cinema. No fundo a grande revolução é mesmo individual. Inconscientemente você se agrega a outras pessoas que têm a necessidade de reconhecer no mundo da produção das imagens algo de mais verdadeiro, consistente. Essas pessoas automaticamente se juntam, viram uma família e vão infectando o gosto médio. Eu, sem fazer esforço nenhum, me aproximo do Cláudio Assis. E há pouco tempo atrás eu nem conhecia o Cláudio.

O filme do Cláudio, aliás, reacendeu essa coisa de o que esperar dos novos cineastas. Todo mundo fica sempre esperando muito dos novos trabalhos de vocês.

Não acho que as pessoas devessem esperar muito de nenhum de nós. Nenhum de nós, acho, teve a pretensão de fazer um filme eufórico. Eu não faço a menor idéia do que esperar de um novo filme meu. Como eu disse, nem sei se vou fazer um outro filme.

Um comentário:

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