O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

terça-feira, 3 de julho de 2012

João e Maria, comentários sobre a fabulosa barbárie em que vivemos



por culturamarxista





Abaixo, publicamos texto sobre a peça “João e Maria”, da Companhia Antropofágica, que assistimos no espaço da Companhia do Feijão na semana passada.
POR MILA
Muitos estudos mostram uma universalidade nas narrativas simples tais como as fábulas, onde para cada sentimento do mundo se atribui um personagem correspondente e, também, onde o mercado de obras literárias as coloca no ramo infantil pelo mesmo argumento: o mal é a bruxa, o bem é a princesa, o herói é o príncipe, etc. Tal apropriação do universal fez com que um novo nicho mercadológico conseguisse se expandir para além do setor infantil, colocando os complexos de Cinderela, Chapeuzinho Vermelho e Peter Pan, respectivamente com os traumas da sociedade patriarcal dentro da psique de um adulto, a mulher passiva que vê no casamento uma possibilidade de crescimento social, ou a ativa que acaba sendo sucumbida pelas mesmas leis patriarcais que a leva para caminhos de perda (provavelmente a perda do pudor cristão e, consequentemente, do marido “ideal”) e, por fim, do menino que não quer crescer e assumir sua responsabilidade perante o mundo e aguarda uma mãe que lhe dê todo o respaldo de não se tornar um patriarca. Egocentrismos a parte, o que poderíamos ver na psique de João e Maria, duas crianças abandonadas pela miséria que encontram o paraíso de doces, ou melhor, uma propriedade da bruxa cheia de doces que nada mais é do que a isca para um abate?
Foi este o trabalho da Companhia Antropofágica, que, retirando os elementos de psicologização da fábula, mostrou através dela a realidade nua e crua do processo de higienização pós–ditadura. Tornar a fábula materialista, no sentido de demonstrar as contradições sociais no desenrolar da trama, já é por si só um elemento de contraposição ao uso das fábulas, que, como comentei acima, serve para universalizar tendências que legitimam os preconceitos da nossa sociedade. Pelo contrário, após a peça não irá ninguém ter a coragem de maldizer o ato do saque. Pois bem, crianças miseráveis, filhos de trabalhadores – o pai foi representado com uma enxada – que por conta do sofrimento de ver seus filhos com fome, são levados a abandonarem no meio da floresta. Lá eles encontram a casinha da bruxa cheia de guloseimas, seriam eles capazes de negar a fome por princípios éticos? Por respeitar a propriedade privada? A mesma, sem eles saberem, que propicia a organização de monopólios que causam a miséria dos pequenos produtores, tal qual seu pai?
Outro fator muito importante na peça foi o uso da infantilidade, tão bem apropriada para legitimar o psicologismo, mas que aqui foi usada como uma técnica para causar o estranhamento. Seria bem diferente se tratasse de adultos; as crianças não fizeram nada para merecer aquilo, não é isto que nossa cultura nos faz sentir? Mas, para além, a criança, assim como os animais, causam estranhamento, pois desnaturalizam as mazelas sociais, acontecendo com eles é um olhar de descoberta, assim, aquilo que já se passa despercebido, pois temos como dado e passado, para a criança a novidade, seja ela qual for, passa por uma ótica de apreensão e estranhamento perante o mundo. No caso dos animais o estranhamento se dá por via da desumanização, exemplo típico da Metamorfose, em que nos tornamos bichos a partir do momento que não levantamos da cama para mais um dia produtivo na esfera do trabalho.
Tem gente que não aprende nunca, não ligam para limpeza, desprezam sua higiene pessoal e usam sempre as mesmas roupas, sujas, é claro, e pensam que ninguém percebe.
Campanha Sugismundo, 1970
A bruxa entra na história e pune as crianças primeiro com a prisão, o que nos remete a FEBEM, obviamente, mas também alude a todo o universo das escolas públicas, em que a educação é pautada pela lógica do professor – carcereiro – e do aluno a ser corrigido para não ser amputado da sociedade, na tentativa de tirá-lo da marginalidade para ser o trabalhador precário ou o da reserva de mão–de-obra, o desempregado. Pronto, o jogo está começado, bolinhas de sabão, ursinhos de pelúcia e aquela violência tremenda para os dois irmãozinhos com fome … A bruxa sendo olhada individualmente, fora de qualquer contexto, não é necessariamente malvada como estamos acostumados a encontrar: ela lava as crianças, ela ensina a trabalhar, ela permite que eles comam e depois verifica se estão ficando “prontos”, com os dedos gordinhos. Daí percebemos a verdadeira propaganda da nossa Democracia. A bruxa, após mandar executar a violência mais brutal contra a Maria, dá um choque de consciência levando-a para o que simbolizaria uma ONG. Ela passa a pintar a família até o final da peça, reproduzindo uma das instituições mais retrógradas da nossa sociedade, que anteriormente era retratada por via da sua brincadeira com João e sua boneca. Depois de solto, João entra em contato com o parvo, aquele que simplesmente reproduz as contradições, personagem amoral, ele funciona enquanto personagem arquetípico por personificar toda a barbárie antes demonstrada nas relações entre os personagens. Ele estupra João, que se revolta, comendo o passarinho que apareceu no inicio como elemento idílico, afogando a bruxa e colocando fogo nos desenhos de Maria, trazendo a revolta como desfecho do nosso processo civilizatório.
A democratização mascara todos os processos da ditadura que existem até hoje como expressão democrática da contenção social. A repressão direta se mostra ora mais ,ora menos, como uma resposta aos processos de contradição. O que dá a medida das respostas que sofremos é a própria luta travada contra esses regimes. A nossa democracia se ameaça com o seu próprio desenvolvimento, pois perpetuando a miséria e a sociedade de classes, velando toda a violência em que vivemos e propagando um mundo melhor por via da educação, do assistencialismo, fará com que o nosso companheirinho João não dê uma resposta individual, mas que todos os Joãos possam botar fogo nas reproduções alienantes da nossa sociedade e matar de vez a bruxa, sendo ela má, como comumente a vemos, ou democrática!
Mas aqui se trata de teatro e não da realidade, vimos os personagens se trocarem na nossa frente e um bando de ursinho vir nos explicar o feito. Só para não cairmos no erro de nos emocionarmos o bastante a ponto de cegarmos aos elementos essenciais de combate a essa vida, ops, peça miserável.

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