O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Um carnaval oracular




O processo de expropriação da memória dos trabalhadores não poupa nada, sequer as palavras. A transmissão (corporal e oral) do samba, por exemplo, foi chamada de escola. Ocorreu, porém, o pior que poderia ocorrer às escolas de samba: tornaram-se instituições de ensino, “escolas de verdade”.

Alguns sabem que a razão íntima de toda instituição, no final das contas, é a tentativa de imobilizar processos históricos - num determinado estágio ideal do tempo. Com o perdão da baixeza, mas, dizem eles que... se melhorar estraga. Não é da vida real que estamos falando, obviamente.

A instituição de ensino “escola de samba” possui, ao menos, duas linhas pedagógicas. A primeira diz respeito à estrutura empresarial, o velho time is business; a segunda é a estrutura de colégio militar. Daí deriva o conhecido dualismo do mercado: glória, ou castigo físico; sucesso, ou humilhação; cidadania ou indigência, etc.

A comissão de frente, por exemplo, quando bem executada rende aplausos dos especialistas, fotos no jornal, entre outras coisas. Porém, não sabemos ao certo qual o preço de um simples escorregão em plena avenida. É como se, em meio ao público, houvessem fuzis apontados para o pobre mortal. O princípio do desempenho é fermento do espetáculo.

O carro abre-alas de uma das escolas que desfilaram ontem era um boneco enorme. Misterioso, vindo ao longe, desafiador, monstrengo, impôs ao público uma atmosfera de terror, por milésimos de segundos. Até que, ufa, recomeçou a batucada, recriando mais uma vez a ilusão...

Lembrei do cavalo de tróia. Considerado pelos troianos como um presente dos deuses, guardava a maldição no ventre. Assim funciona, ideologicamente, os enormes bonecos carnavalescos: dádiva oferecida ao povo, mas que, de repente, pode abrir-se à maneira de uma flor chamada Carandiru, revelando seu pólen: meia dúzia de policiais armados no intestino. E sabe-se lá que maldição...

O pressentimento continuou. Pude ver, então, o oráculo: a cabine privilegiada da Rede Globo, construída no alto e no meio da “passarela do samba”, de onde os “narradores” do desfile seriam os sacerdotes que comunicam a mensagem de Zeus-pai (o Capital), aos pobres mortais, nós.

Por falar nele (no deus-dinheiro), o samba enredo da Gaviões da Fiel será a propaganda. Quem sabe uma estratégia para trazer a marca de algum automóvel nos carros alegóricos, ou de um banco estatal, talvez. Outra escola, ontem, vestiu a bateria com fantasia de militares ingleses. Aqueles, de gorro grande e preto, que mais parece uma cabeleira, blusa vermelha, e que não se movem nunca.

Nos dois casos, portanto: empresa e forças armadas, de mãos dadas. Casamento perfeito entre forma e conteúdo. A hipérbole do espetáculo!

O samba vai ao paraíso.

Voltando ao oráculo. Quer dizer: aquela espécie de nave espacial iluminada por néon, que paira acima de nossas cabeças na “passarela do samba”. Pois bem: a confiar na mensagem cifrada dos sacerdotes que moram ali, a história terminaria aqui. Refiro-me a história dos humilhados, evidentemente. Eles dizem: o destino atual do samba é inevitável. Nada melhor poderia acontecer-lhe, e nada melhor acontecerá.

Por falar em história o narrador-sacerdote-chefe, Cléber Machado o nome dele, disse, num dado momento do desfile a seguinte pérola, reveladora dos desígnios míticos do Deus-pai: “a revolução de 64 ...”. Como? Referia-se ao golpe militar, bem entendido.

Engano? Logo a seguir, reiterou: “Mário Lago foi preso pela revolução de 64...”. Ora, como um comunista pode ser preso pela revolução? Aliás, esse mesmo “narrador”, falando da posição política do homenageado, disse apenas que, “Mário Lago, além de artista, era também político”. 

Bolas invertidas. Há outro aspecto do carnaval “oracular” que reforça a adesão total e definitiva ao capitalismo. Refiro-me ao critério na escolha dos temas. É que, no caso, não existem critérios. Chegamos no cume mais alto da história humana.  Assim, do ponto privilegiado do presente perfeito e inigualável, temos, ao nosso dispor, toda a história humana e o melhor de tudo: limpa de contradições.

História em liquidação, queima de estoque: uns falam da propaganda, outros falam do vinho, Mário Lago, a roda, João Nogueira, Revolução de 1964, o parafuso, a invenção da roda, história do estilingue, etc. É um bazar imenso. Mas essa aleatoriedade na escolha do tema (oposta a uma perspectiva épica), traduz, na verdade, a versão dos vencedores sobre a história.

Uma nota pedagógica.

Esta mágica de quinta categoria não é praticada apenas por carnavalescos. Em outras áreas do “conhecimento” ela aparece. Por exemplo, no campo da historiografia sobre a “história do comunismo” (isto é, dos partidos comunistas, já que o comunismo nunca existiu).

Eric Hobsbawm denunciou o procedimento, utilizado por alguns historiadores que trataram sobre o comunismo na Inglaterra. O excesso de dados, estatísticas, etc., diz Hobsbawm, servia para mascarar o verdadeiro conteúdo de um período histórico, isto é, a situação real do PC inglês nos anos vinte:

É interessante ter-se 160 ou mais páginas sobre a atividade do partido comunista russo de 1920 a 1923, porém o fato essencial sobre este período é o que se encontra registrado no relatório de Zinoviev (...) em fins de 1922, onde se lê, sobre a Inglaterra: ”talvez em nenhum outro país o movimento comunista faça progressos tão lentos””.

Qual a serventia de dados e informações frias? O problema é técnico, e impõe a necessidade de uma mudança na própria função social da técnica. E o carnaval é um exemplo: por trás das escolas de samba estão os especialistas que concentram os meios de produção. As consequências desta expropriação, no longo prazo, são visíveis: o carnaval, ex-festa dos oprimidos (estética e politicamente falando), sofreu um giro de 360° graus, caindo nas garras do capital.

Questão de classe.

Descrever o conteúdo desse processo é relativamente fácil. Mas como expô-lo objetivamente, em todos os níveis? As relações de trabalho, a hierarquia, as operações financeiras, o crime organizado, etc. Por trás do espetáculo se esconde uma máquina de expropriação. Saber dela é pouco: é necessário compreender seu funcionamento, e, finalmente, destruí-la num contexto mais amplo de transformação.

Uma resposta lógica, no caso específico das escolas de samba, seria, naturalmente, o abandono do carnaval patrocinado, isto é, um carnaval que não necessitasse de patrocínio, - retornando, finalmente, para sua matriz: as ruas. Não seria absurdo que os trabalhadores, espontaneamente, tomassem a iniciativa.

Mas, logo adiante, seriam informados, pela polícia, de que lugar de carnaval é no sambódromo. É assim que as manifestações artísticas dos trabalhadores ficam expostas à cisão da sociedade da mercadoria, que rasga e segmenta, ao meio, o próprio espaço urbano.

Ou seja: é assim, por conseguinte, que a questão da “cultura popular” depende, também, da organização política da classe trabalhadora. A ideia plausível, digamos, de que as escolas de samba, ou “comunidades”, amanhã possam confundir-se com os conselhos operários, soviets, é agradável de ouvir.

Enquanto a banda não passa, o que podemos (e devemos) fazer é rir de toda esta imbecilidade administrada. Não é motivo de desespero, e sim de riso: sabemos qual o papel ridículo dos sacerdotes do capital. Os homens, amanhã, não terão a menor vergonha dos dias atuais, mas acharão neles um motivo eterno de riso...

O capitalismo é trágico, mas é também piada-pronta.

Para terminar, a letra do samba retratando a situação do malandro que, a bem dizer, personifica a situação atual do próprio samba:

O Malandro 2

O malandro, tá na greta
Na sarjeta, do país
E quem passa, acha graça
Na desgraça, do infeliz.  

O malandro, tá de coma
Hematoma, no nariz
E rasgando, sua bunda
Uma funda, cicatriz.

O seu rosto, tem mais mosca
Que a birosca, do Mane  
O malandro, é um presunto
De pé junto, e com chulé.

O coitado, foi encontrado  
Mais furado, que Jesus
E do estranho, abdômen
Desse homem, jorra pus

O seu peito, putrefato
Tá com jeito, de pirão
O seu sangue, forma lagos
E os seus bagos, estão no chão

O cadáver, do indigente
É evidente, que morreu
E no entanto, ele se move,
Como prova, o Galileu.  

(A composição é de Chico Buarque, mas o samba se popularizou, até onde sei, pela voz do João Nogueira)




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