O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

quinta-feira, 26 de junho de 2014

O dono da voz

Para o meu irmão, que me ensina diariamente os segredos do samba

Não resta dúvida de que certas vozes ajustam-se melhor a determinados conteúdos. Mas, até que ponto? Para além da “bonita voz”, ou da “melhor interpretação”, certas vozes possuem toda uma carga de significação. Assim, se há canções destinadas a um tipo específico de voz, também existem vozes que exigem determinados tipos de canções. A voz de João Nogueira transmite em si mesma, condensado, reconfigurado, um conteúdo específico que, depois (ou simultaneamente), descobrimos nas letras de suas canções.

Insistindo no paralelo: existe música sem letra (instrumental), e letra sem música (poesia), mas e a voz? Serve apenas para sacramentar, mediadora, o casamento de letra e música? Sozinha, sem letra, sem palavra, e sem ritmo, a voz é pura possibilidade. Se isolássemos, então, a voz de João Nogueira, pensando nela (sem ela), revaler-se-ia, imediatamente, como um campo aberto de possibilidades. E, para nossa grata surpresa, as possibilidades abertas por sua voz de veludo correspondem exatamente àquelas, consumadas por suas canções. João, ao falar, talvez colhesse, no auto-reconhecimento de sua própria voz, as sugestões das canções eternas que compôs.

Mas afinal, quais tesouros de significação se ocultam nas ressonâncias profundas da voz de João Nogueira? Em quais “terras do sem-fim” avolumam-se os ecos de sua melancolia? Seguindo o raciocínio, encontra-se no conteúdo de suas letras a correspondência exata da carga de significação cifrada nas cordas vocais. Vem do espelho, portanto, além do espelho - de seu pai[1]. Mas as palavras, num poema, dizem mais do que é dito. Primeiro a voz, palavra que transmite, e seus significados ocultos, e, por fim, o retorno. Certamente, na prática, as coisas funcionam de outro modo. Mas não custa diferenciá-las, para melhor vê-las inextricáveis numa unidade que até mesmo as misérias da vida não foram capazes de romper. E é sobre misérias que João cantava.

A figura do Pai, então, resguarda um conteúdo que extrapola os limites da experiência individual, pois a voz do sambista é amiga dos abalos sísmicos, renascendo do interior de grutas e lonjuras subterrâneas: “Vem de muito longe este meu cantar”. Não longe, portanto, de um critério preciso de beleza: aquela, que traduz as mágoas e dores da plebe, dos despossuídos, dos humilhados, emergindo generosa à flor do ouvido. Habitando as raias de um Fim inevitável.

Lembremos, de passagem, o belíssimo samba de Egberto Gismonti, “Pr’um samba”, ao qual João empresta sua voz num casamento perfeito, que ressalta, quando: “Falando mesmo francamente / Eu já estou descrente / Deste meu povo que já não entende / Que basta um pouco de carinho / Um cavaquinho rouco / Uma flautinha, um violão / Pr’um samba”. Basta um pouco de carinho... Basta um samba! Basta um samba... ? Muitas outras composições de João afirmam a mesma “saída fácil”. O samba é redentor, e o ouvinte distraído talvez pense que tudo – inclusive nada - será redimido pela arte, segundo as canções do mestre. Engano. O próprio samba – tal como voz, ritmo, letras – é outra coisa.

A leitura do poder redentor do samba talvez seja tão velha quanto o próprio samba. Mas não pertence a seu universo. E, inclusive, serve de arma a seus inimigos. O samba não é feliz. Quase a totalidade dos sambistas é figuração histórica de uma dor secular, mas que, juntos, compõem uma constelação que é o desenho de um sorriso irônico, como quem diz: “o futuro nos pertence”. Figuras melancólicas, porém jamais derrotadas. Pois, enquanto expressão máxima – no campo da criação artística - da comunhão que pode haver entre os de baixo, o samba é antes de tudo exemplo político. Tal como diversas outras manifestações “espontâneas” de autodeterminação popular da vida, é um hino à liberdade, declaração de guerra contra todo tipo de hierarquização da vida social.

João Nogueira presenciou a colonização cultural dos morros, a restrição de uma liberdade mínima de movimento do espírito - sem a qual não existe samba – promovida pela avalanche da indústria cultural. E é este processo, essencialmente, que sua obra mimetiza. Não se trata de saudosismo, cantar os tempos idos. Que nunca foram bons. E justamente aqui a principal contradição, a partir da qual se compreende melhor a profunda melancolia de João Nogueira, refratada em tudo aquilo que compõe sua imagem melancólica. Pois não se volta no tempo, e o futuro é uma caixa preta.

Mesmo os sambas mais “otimistas” não perdem de vista a necessidade de lutar pelo futuro - “sorria / meu bloco vem / vem descendo a cidade / vai haver carnaval de verdade / o samba não se acabou”. O futuro adormece – sereno e seguro – nas mãos de quem faz a vida.



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