O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Sobre a Mostra do Coletivo Cinefusão: a vingança contra o cinema desertor.


O artista amador, sendo também um desertor, não tem os limites que o artista profissional tem. Não precisa prestar contas, não precisa agradar ao chefe ou ao jurado do edital, não precisa adequar seu trabalho às graças dos patrocinadores nem mudar sua estética para se conformar à expectativa dos curadores. O artista amador encontra o público porque quer, não porque precisa do dinheiro dele e por isso mesmo é capaz de confrontá-lo e desafiá-lo. O artista amador luta por políticas públicas porque quer mudar o modo como as coisas são feitas, não porque esta é sua única forma mais ou menos limpa de subsistência. Mas o artista amador, por outro lado, tem poucos recursos (tempo, dinheiro, meios de produção).

Ou, como disse Edward Said (em Representations of the Intelectual): "Todas estas pressões [exercidas sobre o intelectual e o artista] podem ser combatidas por aquilo que eu chamarei de amadorismo, o desejo de ser movido não pelo lucro ou recompensa mas por amor e enorme interesse em ter uma visão mais ampla, fazer conexões entre linhas e barreiras, em recusar ser ligado à especialidade, em levar idéias e valores apesar das restrições de uma profissão".

Sobre tudo, há dois tipos de artista amador: os que entendem que o melhor modo de realizar sua arte é com a paixão e liberdade que conservam sua auto-disciplina; e os que orientam seu trabalho pela busca da chancela dos jurados e curadores, e do dinheiro dos prêmios e festivais para considerar-se um profissional - e de preferência, um profissional "renomado".

Parece claro que o coletivo cinefusão é um grupo amador de artistas que escolheram a linguagem audio-visual como seu meio e têm um compromisso com a mudança do sistema de metabolismo social injusto e opressor em que vivemos. Ou, como disse um membro da audiência que compunha sua última mostra na cinemateca brasileira, são "revoltadinhos sem verba". A estética imposta pelo "sem verba" e os temas "revoltadinhos" realmente incomodam a classe média, e esta quando resolve abrir a boca, incomoda quem pensa. Mas nem esta estética, nem estes temas, girando em torno de obras documentais e de registros feitos em greves e passeatas de movimentos políticos, são capazes de incomodar a burguesia. Esta, com o controle do Estado, chega ao ponto de abrir seus espaços e disponibilizar uma parte (ainda que ínfima) de sua verba para que grupos de esquerda façam seu trabalho.

Feliz é o cantor, que para cantar só precisa de sua própria voz. Cinema é muito caro. Ainda que hoje até um bom celular seja capaz de entregar mais qualidade de registro audio-visual e pela internet sejamos capazes de alcançar uma audiência maior do que gênios como Chaplin podiam em sua época, em contraste, as produções de hollywood fazem tudo que não custou milhões de dólares parecer… amador.

Mas "internet is for porn". E parece que na indústria pornô a demanda por filmes amadores é maior do que a de filmes bem produzidos. Isso porque diferentemente de outros gêneros o consumidor da pornografia não quer ver um filme, ele quer ver sexo. Ele não quer ver o sexo real, mas uma representação de um roteiro único, de um mesmo, velho e batido tema e suas variações. Linha de produção. Cada erro é uma prova de que a cena é "real", já que em uma produção profissional estes erros não aconteceriam ou seriam cortados. E os produtores realizam filmes cheios de erros, com equipamentos baratos, para representar um registro documental.

A mostra do coletivo cinefusão faz parecer que entre os espectadores de esquerda há uma demanda parecida. Desde a manifestação de atores com tampas de privada na cabeça ao som de uma (ótima) atriz desafinando por causa da necessidade de cantar com mais intensidade do que deveria e dos instrumentos passando por uma caixa rachando pelo mesmo motivo até a colagem de retratos insuportavelmente violentos da barbárie que é exibida, assim como os filmes pornográficos, com fácil acesso de todos na internet, é sobre esta malha, neste tecido de representações que o espectador de esquerda faz da realidade que o coletivo trabalha. Mas qual é o valor de representar em um cinema um ato político que já se foi, se não para dar aos militantes de esquerda o prazer de rever a si mesmos, hora com orgulho, hora com vergonha, como o vídeo familiar de uma festa de aniversário?

A mostra foi além dos filmes lírico-político-documentais como estes, mostrando também obras bem bonitas feitas com atores a partir de um roteiro. Estes mostram artistas jovens em uma atitude amadora. Mas, sem usar da violenta liberdade que um amador poderia, parecem querer mostrar-se profissionais. Parecem querer fazer o que os cineastas consagrados já fazem. E, por mais bonitos que sejam os filmes, com cenas poéticas e tocantes como aquela de uma pipa agonizante, um amor distante, uma moça que só quer saber da vara de seu violino, por semelhança com seus pares profissionais, parecem menores.

Nesta mostra, uma experiência muito interessante e necessária em um espaço como a cinemateca brasileira, um filme se destacou. Adriana Beatriz Barbosa, uma chica mexicana, tocada pelo modo como sua cultura foi virada em terras tupiniquins, mescla cenas de ¡Que viva México! de Sergei Eisenstein e aproveita os próprios procedimentos do diretor soviético para fazer uma montagem que mostra a apropriação que a indústria cultural faz da cultura, tirando o significado de tudo para transformar em mercadoria fria. Ela canta a sua aldeia e se faz universal. O contraste dialético é deflagrado: os mortos do México de Eisestein estão vivos, os vivos do México da chica estão mortos. Danilo Santos mostra atores na rua dizendo o contrário: eu sou vida, eu não sou morte. Bruno Mello Castanho mostra a morte dos meninos-pipa de caem luciféricos todos os dias demitidos do céu. Em uma sociedade como a que nós vivemos, amor, só de longe, já que, como diz Adorno em Minima Moralia, "para o Intelectual [e para o artista] o inviolável isolamento é agora o único modo de mostrar alguma medida de solidariedade. Toda colaboração, todo humano digno de mistura social e participação, meramente mascara a aceitação tácita da inumanidade. É o sofrimento do homem que deveria ser compartilhado: o menor passo em direção aos seus prazeres é um passo em direção ao endurecimento de suas dores", exatamente como os massacres e o linchamento exibidos no filme Dado de Realidade fazem. É o jogo que o artista tem que jogar.

E novamente Adorno: "alguns precisam jogar o jogo porque de outra forma não podem viver e aqueles que poderiam viver de outra forma são mantidos de fora porque não querem jogar o jogo. É como se a classe da qual estes intelectuais [e artistas] independentes desertaram fizessem sua vingança, impondo suas demandas exatamente no próprio domínio em que o desertor procura refúgio".

Foi nos gritos e o sangue-nos-olhos dos membros do coletivo enquanto liam suas cartas e manifestos ao vivo para a platéia, mais do que em seus filmes exibidos, que ficou claro o potencial explosivo e revolucionário que têm - desde que tenham coragem de abandonar a idéia de que não são capazes de fazer sua arte por falta dos recursos de que o cinema "profissional" dispõe, de abandonar os limites impostos pelos jurados e editais, pelos adolescentes de esquerda, pela intelligentsia da USP, pelos seus mestres, e arquem com as conseqüências de abraçar o seu próprio cinema.

Gilberto Alves Jr, 1 de outubro de 2012

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