O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

sábado, 31 de agosto de 2013

Conserto


Na franja dos dias esqueço o que é velho
E o que é manco.
E é como te encontrar
Corro a te encontrar.

(Ao que vai nascer - Milton Nascimento)




O que viu exatamente? Melhor seria perguntar-se sobre o valor da pergunta: de que vale perguntar-se pelo que viu? Nada! De nada vale. Até porque, no caso, ouviu e não viu:

      - Bela orquestra, hein Rotvic! Gritou, de passagem, o colega da outra turma, piano. 

Assim costumava diferenciar os colegas: fulano... ah sim! Piano! Sicrano, violino. Beltrano flauta. E ele, Rotvic, baixo - retomou o fio de suas indagações, depois da interrupção abrupta do colega piano. Partiu da conclusão anterior: sim, no fundo, não ouviu nada da orquestra. Coisas assim acontecem, e quando batem, não deixam dúvidas. O amor não (se) permite dúvidas... Certo? Não! Quer dizer... Rotvic entornava pelas calçadas, contraditoriamente.

Lembrou-se de Magda bandolim. Com ela poderia exprimir-se, revolvendo sua quase-vocação, talvez-vocação, pseudo-vocação, que, ao mesmo tempo, eram dois caminhos correndo em direções opostas. A incerteza de seu destino, o emaranhado das dúvidas, poderia ser um sinal de sua vocação, ou, pelo contrário, a vitória do medo e da insegurança - capaz, apenas, de incapacitá-lo: "O medo anda por fora, o medo anda por dentro...", cantou.

Magda aproximou-se. "Tudo bem Rotvic?". Enigmática, um quase sorriso. A cada fração de segundos mudava em outra. O olhar reconfortante virava-se em desconfiança. E revirava-se, novamente, compreensivelmente, em sua direção. Falou-se do concerto. "Eu gostei". "Eu, Magda, não senti nada...". Explicar que a Música é uma questão, explicar que a Música despertava-lhe questões. E Magda, ouvindo, enigmática e reconfortante; desconfiada e compreensiva. Ou. 

Analisava sua alma? Entrevia-lhe o talento, a aptidão, ou apenas ria-se por dentro? 

Magda, em sua alternância enigmática, talvez fosse a própria música. Via-o como tudo, ou nada. O não decifrar-se é sua decifração, sua essência. Olhava fixamente para Magda, um tanto enlouquecido, diríamos:
     
      - Ora, Rotvic! Não me olhe assim... Você parece um tanto enlouquecido.

Não se tratava de decifrar Magda, senão que, no caso, decifrá-la é saber-se decifrado por ela. É como a música. Ela deve saber-nos. Como o poema, entra em nós, e não o contrário, possessivo. Deixar-se largar-se. O enigma, sobre o significado de seus enigmas, era, pois, o enigma de Magda: amava-o, ou ria-se por dentro? Pouco importa! Talvez risse de seu temor, talvez risse de amor. Pouco importa. A chave é a manutenção da dúvida. Novamente, olhava-a, como se a escutasse com os olhos:

      - Ora, Rotvic, não me olhe assim, já falei... Você parece um tanto enlouquecido.

E ria, ria, como se não fosse nada, de dentro para fora. Não estranhava, nem temia, seu olhar barulhento. Magda sabia. A música explica-nos, e não o inverso. E por aí a explicamos, talvez. No barulho do tráfego, do sol, da indigência luciferina da tarde, Magda foi-se embora num ligeiro adeus, como se não fosse nada ir-se embora. Foi-se o bandolim, só restou o banzo, retinindo nos ouvidos de Rotvic. Ou talvez fosse o susto das buzinas.

Rotvic pensou mesmo em sua inapetência para o caos. Que, talvez, a sonora indigência da vida (como bigornas descompassadas) subtraísse, em segundos, o difícil aprendizado da harmonia. Aborto induzido, de nós mesmos. Teve medo. Tapou os ouvidos, com força, e recordou nitidamente do concerto. Magda! É preciso isolar as harmonias, preservá-las. É preciso amar Magda. É preciso odiar Melquíades. É preciso não morrer. É preciso salvar o bandolim da queda. É preciso viver com os homens. É preciso não assassiná-los. É preciso ter mãos pálidas, e anunciar o FIM DO...  Voltou-se. Procurou Magda no caminho. Magda se fora, como é natural. Um bandolim voa, vigésimo primeiro andar, espatifa-se no meio-fio. 
     
      - Caqui. Dois reais a bandeja!

Sentado no meio-fio farto de caqui, Rotvic descansava. O silêncio na cidade é uma ilha de absoluto. Pausa mágica. Do mesmo modo a imobilidade em meio a corpos tão ágeis. Sentado no meio-fio, farto, Rotvic era um contra-ponto absurdo, manifestação corpórea do silêncio - como era possível, nesse calor, sem qualquer refrigeração, estarem tão gelados - os caquis?

Cansado. Cansado Rotvic. Como não amá-lo? Ergueu-se apaziguado, o quase feliz entrou na estação. O maestro baixa os braços, os instrumentos emudecem, fulminados, o silêncio ergue-se como poeira, os pedaços do bandolim no asfalto, Magda, Magda de repente do outro lado da rua, restos - se restos há - de caquis. E o ar que pesa. Rotvic, Rotvic, Rotvic, Rotvic (é o som de uma locomotiva, reparem). Um nome sem origem. A princípio acreditou por muito tempo na origem talvez russa de seu nome. Engano seu: pense numa nota (musical), solitária, solta no ar... É cretino. Um nome sem origem é cretino. Sim, melhor seria chamar-se Cretino da Silva. Rotvic riu de si mesmo, por dentro, completamente desbaratinado. Compôs um samba.


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quarta-feira, 28 de agosto de 2013

CINECLUBE CINEMA EM REVISTA



O Coletivo Cinefusão, em parceria com a Cia Antropofágica, convida para a estreia do "Cineclube Cinema em Revista", que terá início com o "Ciclo Cinema-Greve". Na primeira sessão, exibiremos três curtas: "Greve de Março" (de Renato Tapajós), "Rapsódia para um Homem Comum" (de Camilo Cavalcante) e "Dias de Greve" (do parceiro Adirley Queirós). A sessão é gratuita e ocorre a partir das 18h01, no Espaço Pyndorama (Rua Turiassú, 481), sempre no último domingo do mês. 

A representação do trabalhador no cinema remonta à primeira exibição pública, ocorrida em 1895, na qual foi exibido “A Saída da Fábrica Lumière em Lyon”. De lá para cá, os filmes não só se converteram em entretenimento, como também abriram possibilidade para uma perspectiva crítica. Com isso, o ciclo “Cinema-Greve” que propomos pretende resgatar, em primeiro lugar, o espaço de debate característico das experiências cineclubistas, além do prazer estético e experiência coletiva de assistir a um filme. Num primeiro momento, tratar do tema greve pode parecer simplista ou até mesmo uma obviedade. No entanto, é imprescindível entender inclusive como o capitalismo assimilou e incluiu em seu vocabulário cotidiano o termo greve. Greve de fome, greve de sexo, na tentativa de desarticular um instrumento da classe trabalhadora para combater aqueles que detêm os meios de produção. 

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Sobre a solidão (Julio Cortázar)


"Edgar Allan Poe metido numa ambulância, Verlaine nas mãos de um médico qualquer, Nerval e Artaud diante dos psiquiatras. Que podia saber de poesia o médico que o sangrava e o matava de fome? Se os artistas guardam o silêncio a respeito de si mesmos, como é provável, os outros triunfam cegamente, sem qualquer má intenção, é claro, sem saber que aquele operado, aquele tuberculoso, aquele acidentado despido sobre a cama se encontra duplamente só, rodeado por seres que se movem como por trás de um vidro, num outro tempo...

Abrigando-se sob o portal de uma casa, acendeu um cigarro. A tarde caía, grupos de moças saíam das lojas, com necessidade de rir, de falar aos gritos, de se empurrarem, de se esponjarem, numa porosidade de um quarto de hora antes de voltarem ao filé e à revista semanal. Oliveira continuou andando. Sem necessidade de dramatizar, a mais modesta objetividade era uma abertura ao absurdo de Paris, da vida gregária. Já que pensara nos poetas, era fácil recordar-se de todos os que denunciaram a solidão do homem junto do homem, a irrisória comédia dos cumprimentos, o "perdão" ao se cruzar na escada, o assento que se cede às senhoras no metrô, a confraternização na política e nos esportes. Somente um otimismo biológico e sexual poderia dissimular o isolamento de alguém. Os contatos na ação e na raça e no escritório e na cama e no campo eram contatos de galhos e folhas que se entrecruzam e acariciam-se de árvore para árvore, enquanto os troncos erguem, desdenhosos e indiferentes, as suas paralelas inconciliáveis. "No fundo, poderíamos ser como na superfície", pensou Oliveira, "mas teríamos de viver de outra maneira. E o que quer dizer viver de outra maneira? Talvez viver absurdamente para acabar com o absurdo, sair de si mesmo com tal violência que o salto acabasse nos braços do outro. Sim, talvez o amor, mas o diferente, o outro, nos dura o que dura uma mulher, e além disso, somente no que toca a essa mulher. No fundo, não há o outro, apenas os iguais. É certo que isso já é alguma coisa... " Amor, cerimônia ontologizante, doadora de ser. E por isso lhe ocorria agora aquilo que, na verdade, deveria ter lhe ocorrido logo no início: se alguém não tem domínio sobre si, jamais poderia ter alcançado a singularidade. E, afinal, quem é que se dominava de verdade? Quem é que tinha a perfeita consciência de si, da solidão absoluta que significa nem sequer contar com a própria companhia, que significa ter de entrar num cinema ou num bordel, ou em casa de amigos ou numa profissão absorvente ou, ainda, no matrimônio para estar, pelo menos, só entre os demais? Assim, paradoxalmente, o cúmulo da solidão conduzia ao cúmulo do gregarismo, à grande solidão das companhias alheias, ao homem só na sala de espelhos  e dos ecos. Todavia, pessoas como ele e tantas outras, que aceitavam a si mesmas ou que se rejeitavam, mas conhecendo-se de perto, caíam sempre no pior paradoxo; estar talvez á beira da singularidade e não poder alcançá-la. A verdadeira singularidade feita de delicados contatos, de maravilhosos ajustes com o mundo, não podia ser cumprida por um só lado: a mão estendida deveria receber outra mão, vinda de fora, vinda do outro".


(Julio Cortázar -  trecho de O Jogo da Amarelinha)


quarta-feira, 21 de agosto de 2013

CURTA "O EMPREGO"




Direção: Grasso 'Bou' Santiago
Roteiro: Patricio Plaza
Animação: Santiago Grasso / Patricio Plaza
Produção: Opusbou

terça-feira, 20 de agosto de 2013

1º gesto da RECUSA: ato em frente ao hotel Jaraguá-SP

retirado do site http://passapalavra.info/

No último sábado, 17 de agosto, grupos culturais de diversas linguagens junto ao Movimento Passe Livre-SP fizeram a primeira manifestação da recém criada Rede Cultural de Solidariedade Autônoma (RECUSA) em frente ao hotel Jaraguá no centro de São Paulo, onde acontecia o II Seminário Procultura do Ministério da Cultura  (MinC) com empresários e produtores culturais.

A participação no evento oficial estava condicionada ao pagamento de R$ 250,00 para os convites comprados com antecedência e R$ 350,00 no dia do seminário. Lá a proposta era discutir o projeto de lei do Procultura (6722/2010), que institui novas regras para o fomento e o incentivo à cultura, como o abatimento fiscal de 4% para 6% para todas as empresas que financiarem projetos culturais. O projeto ainda precisa ser aprovado pela Câmara e pelo Senado.

Entretanto, do lado de fora, recusando a política do cafezinho às portas fechadas, trabalhadores da cultura, ativistas, agitadores culturais e integrantes de movimentos populares se organizavam num café de rua – “Café Batucada: também quero decidir!” – para denunciar as negociações do MinC e dialogar com a população sobre cultura como direito e não como mercadoria.

A manifestação começou às 10h da manhã do sábado e numa mistura de recusa, festa, denúncia, ironia e provocação estendeu toalhas na calçada do hotel Jaraguá e serviu um grande café da manhã coletivo, com direito a frutas, bolachas, pães, bolos, sucos e, claro, café para os passantes, que puderam ouvir o som da Fanfarra do M.A.L  (Movimento Autônomo Libertário), a rádio poste e cenas com personagens ilustres como a ministra Marta Suplicy e Carmem Miranda.

Ao meio-dia, os manifestantes ocuparam o teatro do hotel Jaraguá, onde acontecia o evento oficial. Sem conflitos, apresentaram seu gesto de recusa através das marchinhas compostas pelo grupo, batucada, jogral e até uma rádio novela, produzida especialmente para o ato, “O casamento de Governoso Minquel Pau-Mandado com Bradesca Itaulícia do Patrocínio“. Com o constrangimento causado nos convidados do Seminário, a RECUSA conseguiu deixar seu recado: disposição para experimentar novos formatos de se manifestar sem negar a necessidade de se correr riscos – da ação direta.

A rede em construção

A RECUSA se formou a partir de conversas chamadas pelo Movimento Passe Livre-SP, após a jornada de lutas pela redução da tarifa em São Paulo, com diversos coletivos e grupos culturais em torno da construção de uma rede de articulação e fortalecimento das lutas de trabalhadores, ativistas, agitadores da cultura e movimentos populares. Essa rede está aberta e em construção e terá seu próximo encontro no dia 02 de setembro, no Espaço Cultural Carlos Mariguella, em Guaianases, zona leste.

Veja abaixo o vídeo do ato de sábado.


Ato da Recusa no Novotel Jaraguá from Passa Palavra on Vimeo.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

APOIO À CAMPANHA DE ARRECADAÇÃO - COLETIVO TELA SUJA FILMES

Nosso próximo projeto é o curta-metragem COICE NO PEITO que necessita de uma força para ser realizado. Para colaborar, dê uma olhada no vídeo e contribua, doando quanto for possível até 13 de setembro de 2013. Precisamos arrecadar R$15.000,00. Se não conseguirmos atingir o mínimo possível para realizar este filme, devolveremos todas as doações.
Abaixo do vídeo, mais informações sobre COICE NO PEITO.



“Interiorizam o comportamento mas observam o homem de longe, podendo desmistificá-lo e acabar com todo romantismo.”
(Rogério Sganzerla)
         
COICE NO PEITO é o novo projeto do coletivo Tela Suja Filmes. Nesse filme buscamos pesquisar a linguagem do realismo e as relações sociais numa região do Brasil que junta elementos de nossa contemporaneidade e de nosso passado simples e rural.
Pretendemos abordar a coexistência do velho e o novo. Com o “progresso”, velhas funções como a de charreteiro ainda tentam se reinventar para sobreviver na nova sociedade capitalista avançada, se relocando à serviço do turismo pelo dinheiro de quem dele desfruta.
O filme COICE NO PEITO abordará como DITO, empreendedor charreteiro, lida com uma tragédia pessoal e extraordinária: a morte de seu filho ainda criança; e como esta tragédia revela a tragédia social ordinária a qual DITO está preso.   

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

MÃES DE MAIO E O PRÉ-RANCOR

"MUITA GENTE TEM NOS PERGUNTADO SOBRE O 'FORA DO EIXO'...

Nosso movimento não tem como foco esta polêmica (temos a busca por Amarildos, Ricardos e Justiças como prioridade todos os dias), nem vamos entrar em qualquer onda de denuncismo, de crítica ética-moral ou fulanização da história. Reduzir qualquer crítica social mais profunda, da exploração capitalista e suas lógicas renovadas de lucro, ao tema da “corrupção” é sempre mais interessante para o próprio sistema capitalista – corrupto e corruptor na sua estrutura histórica - do que para os reais interesses de nós trabalha-dores. Temos visto muito essa manobra midiática nas ruas atualmente...

Enquanto movimento social autônomo, achamos que as experiências populares não podem ser capturadas de maneira nenhuma por empresas, ONGs, mídias comerciais, políticos ou outros intermediários de nossa cultura de resistência. Ninguém fala, muito menos capitaliza, em nosso nome! Isso vale para o campo da cultura e comunicação, onde acreditamos que os coletivos de artistas e comunicadores populares devem cada vez mais empoderarem-se e serem fortalecidos diretamente – sem intermediários. Isso vale também para as iniciativas sociais que lutam diretamente contra o genocídio da população preta, pobre e periférica, que sempre foi e continuará sendo nosso foco prioritário, e cuja luta não está à venda.

Autonomia pressupõe empoderamento da própria vida e ação coletiva direta, "Nóis por Nóis", e pressupõe também a liberdade de colocar o dedo em todas as feridas críticas necessárias (a começar frente ao próprio Estado), que a sociedade tem que colocar para a sua transformação radical. Por isso nunca embarcamos nessa história-pra-boi-dormir de "pós-rancor" e de falsa conciliação “amorosa” das lutas sociais que temos no presente, afinal de contas bem pesadas, e, se Nós quisermos, vamos ter ainda mais fortes daqui pra frente.

Como falar de “pós-rancor” em meio a mais de 570.000 dos nossos encarcerados neste momento em todo país?! Como “sorrir” com outras mais de 30.000 crianças e adolescentes penando em FEBEMs por todo território, aprisionando junto suas Mães e familiares?! Como ser “amável” com cerca de 60.000 pessoas do nosso povo assassinadas, mortas ou desaparecidas, todos os recentes anos no Brasil (estamos falando de cerca de 5.000 corpos dos nossos POR MÊS, ou 166 pessoas e famílias destruídas POR DIA), entendeu?! “Pós-rancor”?! É muita treta pra Vinicius de Morais ou Amorais...

Passar um verniz ideológico de “amor” sobre essa dor real que sentimos, produto da exploração e da opressão cotidiana de todo um povo por uma elite civil-militar secular, sempre nos soou como uma manobra oportunista do interesse apenas dessa elite patrocinadora da miséria, da violência continuada, e da sua cínica tentativa de disfarce “cordial e democrático”. Nenhum fim justifica esses meios!

Somos do “movimento pré-rancor” e da "mídia capoeira", e ao invés de entrar nessa mais nova histeria sobre o Fora do Eixo e seus Ninjas, preferimos seguir a construção cotidiana e rancorosa do verdadeiro Amor revolucionário.

Se nos permitirem uma citação, o "Manifesto da Antropofagia Periférica" do Sérgio Vaz, escrito lá no já longínquo ano de 2007: "A Periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor. / Dos becos e vielas há de vir a voz que grita contra o silêncio que nos pune. (...) / Contra o capital que ignora o interior a favor do exterior. Miami pra eles? “Me ame pra nós!” / Contra os carrascos e as vítimas do sistema. / Contra os covardes e eruditos de aquário. / Contra o artista serviçal escravo da vaidade. / Contra os vampiros das verbas públicas e arte privada. / A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza. / Por uma Periferia que nos une pelo amor, pela dor e pela cor."

Nós não somos dessa guerra de memes, nem dessa "paz". Nossa História, nossa Caminhada, nossa Campanha é Otra."

Mães de Maio da Democracia Brasileira

domingo, 11 de agosto de 2013

Os medos do regime (Bertolt Brecht)

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I

Um estrangeiro, voltando de uma viagem ao Terceiro Reich
Ao ser perguntado sobre quem realmente governa lá, respondeu:
O medo.


II

Amedrontado
O erudito para no meio de uma discussão e observa
Pálido, as paredes finas de seu gabinete. O professor
Não consegue dormir, preocupado
Com uma frase ambígua que o inspetor deixou escapar.
A velha senhora na mercearia
Coloca os dedos trêmulos sobre a boca, para conter
O xingamento sobre a farinha ruim.
Amedrontado
O médico vê as marcas de estrangulamento em seu paciente, e cheios
de medo
Os pais olham os filhos como se olhassem para traidores.
Mesmo os moribundos
Amortecem a voz que sai com dificuldade, ao
Despedirem-se dos seus parentes.


III

Mas também os policiais (camisas-marrons)
Tem medo do homem que não levanta os braços
E ficam aterrorizados diante daquele
Que lhes deseja um bom dia.
As vozes agudas dos que dão ordens
Tem tanto medo quanto os guinchos
Dos porcos, a esperar a faca do açougueiro, e os mais gordos traseiros
Transpiram medo nas cadeiras do escritório.
Impelidos pelo medo
Eles irrompem nas casas e fazem buscas nos sanitários
E é o medo que os faz
Queimar bibliotecas inteiras. Assim
O temor domina não apenas os dominados, mas também
Os dominadores.


IV

Por que
Temem tanto a palavra clara?


V

Em vista do poder imenso do regime
De seus campos de concentração e câmaras de tortura
De seus bem nutridos policiais
Dos juízes intimidados ou corruptos
De seus arquivos com listas de suspeitos
Que ocupam prédios inteiros até o teto
Seria de acreditar que o poder não temeria
Uma palavra clara de um homem simples


VI

Mas esse regime lembra
A construção do assírio Tar, aquela fortaleza poderosa
Que, diz a lenda, não podia ser tomada por nenhum exército, mas que
Através de uma única palavra clara, pronunciada no interior
Desfez-se em pó.


(Bertolt Brecht)

Memes, mentiras e vídeo-tapes

texto publicado originalmente pelo Coletivo Zagaia (http://zagaiaemrevista.com.br/memes-mentiras-e-video-tapes/)

A salada é geral no tubo de imagens. Fora do Eixo com Mídia NINJA, uma combinação explosiva. Seja o novo homem, seja a avatar de Deus, não importa: nada e tudo os representa. Caminhos antigos que recebem uma nova vestimenta digital. E uma logomarca com cara despojada, sem compromisso com nada além, é claro, de editais e regalias empresariais, funcionando no calor da cultura.  De repente, todos aqueles vídeos que qualquer um poderia fazer de seus dispositivos eletrônicos, parecem ganhar uma cara: como se este modo de mostrar diretamente a truculência do Estado tivesse como eixo a face oculta  de um NINJA. 

Cultura? Lugar certo para as metamorfoses ambulantes: o que seria a publicidade dos bancos sem a Lei Rouanet? Como justificar a atrocidade sem os editais públicos que conferem às ONGs de empresas com fins lucrativos um espaço digno em que se gerencia a miséria dos outros? É a cultura o grande canal. E a difusão midiática, sua grande companheira. Pois não se pode fazer os beneméritos sem uma boa campanha de divulgação… 

Eis o sorriso de Monalisa que escancara os beiços e consola os Torturrados! O enigma em forma de arte, desafiando a todos que procuram decifrar seus mistérios. Sabemos que quando o “pobre” Capilé (CEO da empresa Fora do Eixo)  declara publicamente que a margem de lucro da “Fora do Eixo corporation” gira em torno de 3 a 5 milhões não pode estar falando sério. Não há imaginação matemática que explique este volume! 

NINJA e FdE, tudo a ver! 

E os Ninja´s? Não há nome melhor para a sigla. Afinal, todos sabem que estes eram especialistas em infiltração a serviço do governo feudal japonês. Sujeitos nada confiáveis, ao menos para os samurais, que combatiam com alguma honra em um Japão à beira da Modernidade. Em geral, ninjas seguem a onda do poder, qualquer que seja o partido. Basta o pagamento. O que vale é a prática de como se infiltrar nos jogos da cultura e da política, como travar as guerras obscuras e levar o lucro através da esquerda enquanto marca.   

Pois não há fenômeno mais pervertido do que este: uma esquerda que é marca de si mesmo, um empreendimento que não tem medo de fazer seu nome. No fundo, não é o jogo entre esquerda e direita que se trava para os NINJA. Parte dos que se declaram contra os projetos de lei nefastos sobre o corpo da mulher, há um tempo atrás integravam a campanha de Marina Silva, deusa da Natura! 

Mas o que importa mesmo:  tudo acaba tangenciado pela concorrência do capital simbólico que os Ninjas procuram obter. Na cortina de fumaça destes guerreiros sem honra, pouco se disse sobre o que seria uma cobertura militante dos fatos (isso não interessa para ninguém do jornalismo, seja industrial, seja pós-industrial). O modo como os NINJAs se relacionam com os movimentos que registram é extremamente questionável. Bruno Torturra chega a defender um olhar sem comprometimento, de imagens-denúncia dos movimentos em luta. As transmissões são longas e chatas – o próprio Torturra declarou isso. Um mídia-ativismo mesclado a jornalismo sem trabalho algum de reflexão. Afinal, como sempre: é o outro que deve trabalhar (isto é o tal “pós-industrial”). A imagem fala por si (como no antigo princípio de neutralidade do jornalismo). De modo que, se você é a favor do movimento, a imagem tem um significado; se é contra, outro. No fim das contas, nada se altera a partir do relato. Todas as partes ficam satisfeitas. E os NINJAs saem limpos vendendo sua marca: a imagem instantânea de cenas de conflito. 

Isto diz muito da posição dos NINJAs na estratégia FdE: como eles rastejam silenciosos nas sombras deste novo negócio – um capitalismo precarizado, seja no trabalho 24 horas em suas Casas FdE (com arquitetura mais próxima da pós-indústria têxtil que escraviza bolivianos e afins, do que de uma comunidade alternativa), seja na desvalorização do pagamento dos artistas que trabalham mais que Criolo doido (veja a matéria do Passapalavra). No interior disso, os NINJAs representam a base comunicativa desta nova estampa. 

Aliados ao empreendimento cultural FdE, os NINJA absorvem o impacto da comunicação. Comunicação & cultura: lugares explosivos para levar nossos imaginários em uma narrativa descomprometida. E eis o jogo de espelhos que une os dois empreendimentos. É como disse nosso pobre Capilé em recente entrevista ao Roda Viva: não se trata de uma mídia de massas, mas de uma “massa de mídias”: inversão propícia para um capitalismo em crise: no momento de sua agonia, nada melhor do que a multiplicação de suas armadilhas. Inovação que mimetiza, eis a grande oferta dos NINJAS às velhas najas da imprensa brasileira. 

Infelizmente, diante das recentes denúncias, os Ninjas lançam suas estrelas shurikens para todos os lados em defesa do seu feudo. Deprimidos ou raivosos, memetizam seus desgostos, nada falando da abertura de contas disto que se diz novo… Afinal, como sempre fizeram, vale mais captar com um celular os movimentos da grande massa, criar campanhas no facebook, do que entregar o ouro:  

Afinal, como sempre fizeram, vale mais tomar à frente das mídias das campanhas do facebook que, porventura, teriam algum público relevante (numericamente, claro): rachtags  variadas, memetizadas ao infinito pelos twiteiros escravizados (ou melhor, pagos com Cubecard!), segundo recentes denúncias, fazendo da imagem do movimento de protesto uma marca conectada ao lançamento NINJA. Vai que cola? 

Pouco importam os rachtags: Amarildos, Guarani-Kaiowás, AmoremSP, VetaDilma: impávidos, o que vale para os notáveis NINJAs é tornar tudo o mesmo caldo geral. Sorrateiros, não é que os guerreiros podem conquistar aquilo que o capitalismo há muito tenta obter: o coração e a mente da galera conectada? 

Guerrilha Simbólica X Propaganda 

Empreendimento muito diverso de movimentos mais reflexivos, que buscam a narrativa dos movimentos – como o CMI, Passapalavra, Vídeo Popular de Ação Direta – ou de redes de divulgação das lutas e campanhas como as Mães de Maio e o Cordão da Mentira, Rede 02 de Outubro. Movimentos que denunciam a  escravidão e o extermínio pós-industriais. 

No meio disso tudo, não devemos nos ater aos detalhes conhecidos das críticas da velha imprensa aos NINJA. Na hora do bote, Najas e NINJAs chegarão a um entendimento. 

Aliás, já é tempo de não sermos mais reféns de estratégias miúdas dos jogos de guerra da contrainformação. Nada mais contrário à energia criativa que tanto precisamos do que ficar entre uma ou outra bandeirola, seguindo os caminhos seguros, sem os riscos da mudança radical que as ruas demandaram. 

Entretanto, e para além disso, o problema é como sair da armadilha e criar um canal de informação que faça a esquerda se reconhecer sem medo: saber narrar nossas próprias histórias, colocar à prova uma sensibilidade diversa. Despovoar nosso imaginário da ordem privada  das logomarcas sinistras para encontrar uma nova constelação.  Fazer uma guerrilha simbólica não é abraçar o primeiro comando de divulgação de ideias. Nada mais publicitário do que isso. Guerrilha simbólica não é consumo de imagens, mas produzir o próximo passo.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

As Ruínas Circulares (Jorge Luis Borges)



And if he left off dreaming about you... 
Through the Looking-Glass, VI

    Ninguém o viu desembarcar na unânime noite, ninguém viu a canoa de bambu sumindo-se no lodo sagrado, mas em poucos dias ninguém ignorava que o homem taciturno vinha do Sul e que sua pátria era uma das infinitas aldeias que estão águas acima, no flanco violento da montanha, onde o idioma zenda não se contaminou de grego e onde é infreqüente a lepra. O certo é que o homem cinza beijou o lodo, subiu as encostas da ribeira sem afastar (provavelmente, sem sentir) as espadanas que lhe dilaceravam as carnes e se arrastou, mareado e ensangüentado, até o recinto circular que coroa um tigre ou cavalo de pedra, que teve certa vez a cor do fogo e agora a da cinza. Esse círculo é um templo que os incêndios antigos devoraram, que a selva palúdica profanou e cujo deus não recebe honra dos homens. O forasteiro estendeu-se sob o pedestal. O sol alto o despertou. Comprovou sem assombro que as feridas cicatrizaram; fechou os olhos pálidos e dormiu, não por fraqueza da carne, mas por determinação da vontade. Sabia que esse templo era o lugar que seu invencível propósito postulava; sabia que as árvores incessantes não conseguiram estrangular, rio abaixo, as ruínas de outro templo propício, também de deuses incendiados e mortos; sabia que sua imediata obrigação era o sonho. Por volta da meia-noite, despertou-o o grito inconsolável de um pássaro. Rastros de pés descalços, alguns figos e um cântaro advertiram-no de que os homens da região haviam espiado respeitosos seu sonho e solicitavam-lhe o cuidado ou temiam-lhe a mágica. Sentiu o frio do medo e na muralha dilapidada buscou um nicho sepulcral e se tapou com folhas desconhecidas.
    O objetivo que o guiava não era impossível, ainda que sobrenatural. Queria sonhar um homem: queria sonhá-lo com integridade minuciosa e impô-lo à realidade. Esse projeto mágico esgotara o inteiro espaço de sua alma; se alguém lhe perguntasse o próprio nome ou qualquer traço de sua vida anterior, não teria acertado na resposta. Convinha-lhe o templo inabitado e derruído, porque era um mínimo de mundo visível; a vizinhança dos lavradores também , porque estes se encarregam de suprir suas necessidades frugais. O arroz e as frutas de seu tributo eram pábulo suficiente para seu corpo, consagrado à única tarefa de dormir e sonhar.
    No começo, eram caóticos os sonhos; pouco depois, foram de natureza dialética. O forasteiro sonhava-se no centro de um anfiteatro circular que era de certo modo o templo incendiado: nuvens de alunos taciturnos fatigavam os degraus; os rostos dos últimos pendiam há muitos séculos de distância e a uma altura estelar, mas eram absolutamente precisos. O homem ditava-lhes lições de Anatomia, de Cosmografia, de magia: as fisionomias concentravam-se ávidas e procuravam responder com entendimento, como se adivinhassem a importância daquele exame, que redimiria em cada um a condição de vã aparência e o interpolaria no mundo real. O homem, no sonho e na vigília, considerava as respostas de seus fantasmas, não se deixava iludir pelos impostores, previa em certas perplexidades uma inteligência crescente. Buscava uma alma que merecesse participar no universo.
    Depois de nove ou dez noites, compreendeu, com alguma amargura, que não podia esperar nada daqueles alunos que passivamente aceitavam sua doutrina e sim daqueles que arriscavam, às vezes, uma contradição razoável. Os primeiros, embora dignos de amor e afeição, não podiam ascender a indivíduos; os últimos preexistiam um pouco mais. Uma tarde (agora também as tardes eram tributárias do sonho, agora velava apenas um par de horas no amanhecer) licenciou para sempre o vasto colégio ilusório e ficou com um só aluno. Era um rapaz taciturno, citrino, indócil às vezes, de feições afiladas repetindo as de seu sonhador. A brusca eliminação de seus condiscípulos não o desconcertou por muito tempo; seu progresso, no fim de poucas lições particulares, pôde maravilhar o mestre. Não obstante, sobreveio a catástrofe. O homem, um dia, emergiu do sono como de um deserto viscoso, olhou a luz vã da tarde que, à primeira vista, confundiu com a aurora e compreendeu que não sonhara. Toda essa noite e todo o dia, contra ele se abateu a intolerável lucidez da insônia. Quis explorar a selva, extenuar-se; somente alcançou entre a cicuta aragens de sonho débil, listradas fugazmente de visões do tipo rudimentar: inaproveitáveis. Quis congregar o colégio e apenas havia articular algumas breves palavras de exortação, este se deformou, se apagou. Na quase perpétua vigília, lágrimas de ira queimavam-lhe os velhos olhos.
    Compreendeu que o empenho de modelar a matéria incoerente e vertiginosa de que se compõem os sonhos é o mais árduo que pode empreender um homem, ainda que penetre todos os enigmas da ordem superior e da inferior: muito mais árduo que tecer uma corda de areia ou amoedar o vento sem efígie. Compreendeu que um fracasso inicial era inevitável. Prometeu esquecer a enorme alucinação que no começo o desviara e buscou outro método de trabalho. Antes de exercitá-lo, dedicou um mês à recuperação das forças que o delírio havia exaurido. Abandonou toda premeditação de sonhar e quase imediatamente conseguiu dormir uma razoável parte do dia. As raras vezes que sonhou, durante esse período, não reparou nos sonhos. Para reatar a tarefa, esperou que o disco da lua fosse perfeito. Logo, à tarde, purificou-se nas águas do rio, adorou os deuses planetário, pronunciou as sílabas lícitas de um nome poderoso e dormiu. Quase subitamente, sonhou com um coração que pulsava.
    Sonhou-o ativo, caloroso, secreto, do tamanho de um punho fechado, cor grená na penumbra de um corpo humano, ainda sem rosto ou sexo; com minucioso amor sonhou-o, durante quatorze lúcidas noites. Cada noite, percebia-o com maior evidência. Não o tocava: limitava-se a testemunhá-lo, observá-lo, talvez corrigi-lo com o olhar. Percebia-o, vivia-o, de muitas distâncias e ângulos. Na décima quarta noite, roçou a artéria pulmonar com o indicador e após todo o coração, por fora e por dentro. O exame o satisfez. Deliberadamente não sonhou durante uma noite: logo retomou o coração, invocou o nome de um planeta e empreendeu a visão de outro dos órgãos principais. Antes de um ano chegou ao esqueleto, às pálpebras. O pêlo inumerável foi talvez a mais difícil tarefa. Sonhou um homem inteiro, um moço, mas este não se incorporava nem falava, nem podia abrir os olhos. Noite após noite, o homem sonhava-o adormecido.
    Nas cosmogonias gnósticas, os demiurgos amassam um vermelho Adão que não consegue pôr-se de pé; tão inábil e tosco e elementar como esse Adão de pó era o Adão de sonho que as noites do mago tinham fabricado. Uma tarde, o homem quase destruiu toda a sua obra, mas se arrependeu. (Mais lhe teria valido destruí-la.) Esgotados os votos aos numes da terra e do rio, arrojou-se aos pés da efígie que talvez fosse um tigre e talvez um potro, e implorou seu desconhecido socorro. Nesse crepúsculo, sonhou com a estátua. Sonhou-a viva, trêmula: não era um atroz bastardo de tigre e potro, mas simultaneamente essas duas criaturas veementes e também um touro, uma rosa, uma tempestade. Esse múltiplo deus revelou-lhe que seu nome terrenal era Fogo, que nesse templo circular (e noutros iguais) prestavam-lhe sacrifícios e culto e que magicamente animaria o fantasma sonhado, de tal sorte que todas as criaturas, exceto o próprio Fogo e o sonhador, julgassem-no um homem de carne e osso. Ordenou-lhe que uma vez instruído nos ritos, remetesse-o ao outro templo derruído, cujas pirâmides persistem águas abaixo, para que alguma voz o glorificasse naquele edifício deserto. No sonho do homem que sonhava, o sonhado despertou.
    O mago executou essas ordens. Consagrou um prazo (que finalmente abrangeu dois anos) para desvendar-lhe os arcanos do universo e do culto do fogo. Intimamente, doía-lhe separar-se dele. Com o pretexto da necessidade pedagógica, dilatava diariamente as horas dedicadas ao sonho. Também refez o ombro direito, talvez deficiente. Às vezes, inquietava-o uma impressão de que tudo isso havia acontecido... Em geral, eram-lhe felizes os dias; ao fechar os olhos pensava: Agora estarei com meu filho. Ou, mais raramente: O filho que gerei me espera e não existirá se eu não for.
    Gradualmente, habituou-o à realidade. Uma vez determinou-lhe que embandeirasse um cume longínquo. No outro dia, flamejava a bandeira no cimo. Esboçou outras experiências análogas, cada vez mais audazes. Compreendeu com certo desgosto que seu filho estava pronto para nascer – e talvez impaciente. Nessa noite beijou-o pela primeira vez e enviou-o ao outro templo cujos despojos branqueiam rio abaixo, a muitas léguas de inextricável selva e pântano. Antes (para que nunca soubesse que era um fantasma, para que se acreditasse um homem como os outros) infundiu-lhe o esquecimento total de seus anos de aprendiz.
    Sua vitória e sua paz ficaram embaciadas de fastio. Nos crepúsculos do entardecer e da alba, prostrava-se diante da figura de pedra, talvez imaginando que seu filho irreal praticasse idênticos ritos, noutras ruínas circulares, águas abaixo; de noite, não sonhava, ou sonhava como fazem todos os homens. Percebia com certa palidez os sons e formas do universo: o filho ausente se nutria dessas diminuições de alma. O propósito de sua vida fora atingido; o homem persistiu numa espécie de êxtase. No fim de um tempo que certos narradores de sua história preferem computar em anos e outros em lustros, dois remadores o despertaram, à meia-noite: não pôde ver seus rostos, mas lhe falaram de um homem mágico, num templo do Norte, capaz de tocar o fogo e não queimar-se. O mago recordou que de todas as criaturas que constituem o orbe, o fogo era o único que sabia ser seu filho um fantasma. Essa lembrança, apaziguadora no princípio, acabou por atormentá-lo. Temeu que seu filho meditasse nesse privilégio anormal e descobrisse de alguma maneira sua condição de mero simulacro. Não ser um homem, ser a projeção do sonho de outro homem, que humilhação incomparável, que vertigem! A todo pai interessam os filhos que procriou (que permitiu) numa simples confusão ou felicidade; é natural que o mago temesse pelo futuro daquele filho, pensado entranha por entranha e traço por traço, em mil e uma noites secretas.
    O final de suas cavilações foi brusco, mas o anunciaram alguns sinais. Primeiro (no término de uma longa seca) uma remota nuvem numa colina, leve como um pássaro; logo, para o Sul, o céu que tinha a cor rosa da gengiva dos leopardos; depois as fumaradas que enferrujam o metal das noites; depois a fuga pânica das bestas. Porque se repetiu o acontecido faz muitos séculos. As ruínas do santuário do deus do fogo foram destruídas pelo fogo. Numa alvorada sem pássaros, o mago viu cingir-se contra os muros o incêndio concêntrico. Por um instante, pensou refugiar-se nas águas, mas em seguida compreendeu que a morte vinha coroar sua velhice e absolvê-lo dos trabalhos. Caminhou contra as línguas de fogo. Estas não morderam sua carne, estas o acariciaram e o inundaram sem calor e sem combustão. Com alívio, com humilhação, com terror, compreendeu que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Centro do Meio



Independentemente de suas prováveis fraquezas, dedico esse pequeno texto à força vital do diálogo. Aos poucos, e raros momentos em que a luz da compreensão e do respeito conseguem ultrapassar a miséria da guerra cotidiana pela sobrevivência. Devemos à camaradagem o resgate diário de nossas energias vitais.

Também dedico esse texto aos habitantes de "Centro do Meio", Maranhão.



Num dos momentos altos de Quarup (Antonio Callado) uma espécie de comitiva sai em busca do centro geográfico do Brasil, no Xingu. Simultaneamente, na capital do país, João Goulart é deposto pelos militares. Para além da simples coincidência (estamos falando de um romance, afinal de contas), notemos como os grandes acontecimentos históricos por vezes encontram explicação fora de sua órbita imediata. 

Assim, o conhecimento dos personagens de Quarup, de suas motivações íntimas - que, supostamente, explicam o desejo de conhecer o centro geográfico do país em plena derrocada de seu centro político -, ensina muitas coisas a respeito do momento histórico em que se vivia. 

Podemos recordar ainda a posição geográfica e temporal de Macondo (Cien Años de Soledad). O não-lugar que - de tão absoluto em sua inexistência - pode ser todos os lugares. Posição dos invisíveis, aquém dos centros de decisão onde o futuro, no entanto, repentinamente ganha corpo. Macondo, em relação à "vida real", encontra-se numa distância que jamais será percorrida. Este o segredo, talvez, da sua verossimilhança.

Seja como for, é notável a vigência temática da relação centro/periferia na literatura latino-americana. Como lembra Antonio Cândido: "As áreas de subdesenvolvimento e os problemas de subdesenvolvimento (ou atraso) invadem o campo da consciência e da sensibilidade do escritor, propondo sugestões, erigindo-se em assunto que é impossível evitar, tornando-se estímulos positivos ou negativos da criação" ("Literatura e subdesenvolvimento"). 

Que se leia, a título de exemplo, o emblemático conto de Borges, "As Ruínas Circulares", ou de seu conterrâneo Cortázar, "A auto-estrada do sul". Exemplos não faltam. À parte a diversidade das soluções formais em cada país, o fato é a permanência instigante (e instrutiva) do problema, que as transformações econômicas e políticas das últimas décadas - a chamada globalização - pretensamente colocam em suspensão, enquanto motor da criação artística. 

Desse modo, em vários contextos, a superação do atraso parece derivar unicamente da "universalização" do acesso à informação, por exemplo. No entanto, a oposição compartilha, com muita frequência, o pressuposto do inimigo, aceitando os termos da discussão: estaria em jogo uma definição mais precisa do verdadeiro poder dos meios de comunicação. Questão real, sem dúvida, mas antecedida por outra. Na verdade, trata-se, mais uma vez e sempre, do próprio conceito de "atraso". Com muita facilidade renegamos o esforço dos mais velhos. 

Talvez devamos, além disso, identificar a defesa positiva da globalização como construto ideológico puro. Ou, de outro modo: olhar a realidade, para ver até que ponto ela desmente a atualidade (formal e política) do problema. O reconhecimento da complexidade da questão, no plano literário (que apresenta saldo objetivo, isto é, formal) atingiu níveis altos, contrastando com as respostas no plano político. No Brasil, por exemplo, a esquerda ainda não extraiu devidamente o saldo político da ditadura.

Qual o balanço da experiência política dos trabalhadores com o regime militar? Há muita especulação em jogo. Ignora-se, sem mais, não a experiência com a miséria, mas a experiência dos próprios miseráveis. E o erro repete-se: atualmente, há uma séria dificuldade em mensurar o alcance dos estragos, e extrair as perspectivas resultantes, da dominação petista.

Evidentemente, a tarefa não é fácil: os desdobramentos históricos do atual esgotamento político não se encontram ao alcance do braço. Porém, a letargia em levantar os braços rumo ao futuro, à ideia de uma nova vida, enfim, paralisa o ímpeto. A esquerda carece de um objeto digno de desejo. 

A dificuldade em escorregar para o ponto de vista dos derrotados, dos invisíveis, beira o desespero. Como diria Mário de Andrade: "Há sempre um jeito de escorregar num ângulo de visão, numa escolha de valores, num embaraço duma lágrima que avolumem ainda mais o insuportável das condições atuais do mundo". 

De outro lado, é possível encontrar o sonho desse deslocamento depositado na experiência literária. Que deve servir de contraste, ou, pelo menos, de meio eficaz para manter intacta as figuras elementares de um velho sonho, constitutivo da dignidade necessária, e desejável, do amanhã. 

Para terminar, fiquemos com um exemplo das últimas semanas, que ilustra a tese inicial: o atual momento histórico, por vezes, encontra explicação fora do alcance de nossas vistas.

No Maranhão, há um povoado chamado "Centro do Meio" (já o nome, na sua quase-redundância, é significativo, ainda mais se pensarmos que, até ontem, praticamente não existia... ), que situa-se no município de Pio XII, em homenagem ao papa eleito 1939. 

Pois bem. No último dia 30/07, domingo, houve um jogo de futebol no povoado "Centro do Meio". O árbitro da partida, rapaz de 20 anos, expulsou um jogador de um dos times. Inconformado, este resolveu acertar contas com o árbitro, que, por sua vez, esfaqueou o rapaz.

Com isso, a família da "vítima" e amigos resolveram apedrejar e lixar o árbitro, e depois o amarraram a uma árvore. 

Aguardaram, até que chegou a notícia: o rapaz esfaqueado pelo árbitro morreu no hospital! O final da vingança encerra o caso, e traz inesperadamente Centro do Meio para o centro dos noticiários. Ocorre que, depois de saberem da morte do rapaz, no hospital, familiares e amigos resolveram esquartejar o árbitro. 

Braços e pernas decepados. Cabeça, idem: pendurada na ponta de uma cerca. 

Já circula fotos na internet, para aqueles que, acostumados ao "espetáculo da vida", necessitem de "mais vivas impressões". Ao que dizem, a brutalidade do ocorrido chocou os moradores de povoados vizinhos, a ponto de cortarem relações com os habitantes de Centro do Meio. Como se, de fato, estivessem enfeitiçados por algum espírito maligno. Eterna noite dos esquecidos.

Já os moradores de Centro do Meio, crianças e velhos, reclamam a mudança no trato: além da brutalidade ocorrida, tem de suportar a exclusão dos vizinhos...  

O evento que marcou o povoado de Centro do Meio, em Pio XII, ocorreu na mesma semana em que o papa Francisco visitava o Brasil. Segundo dizem, Pio XII é conhecido pela sua fria indiferença em relação ao Holocausto. Mera coincidência, enfim.

terça-feira, 30 de julho de 2013

CARTA ABERTA DA ABD-SP AO MINISTÉRIO DA CULTURA E À SECRETARIA DO AUDIOVISUAL

CARTA ABERTA DA ABD-SP (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DOS DOCUMENTARISTAS – SEÇÃO SÃO PAULO) AO MINISTÉRIO DA CULTURA E À SECRETARIA DO AUDIOVISUAL SOBRE A SITUAÇÃO ATUAL DA CINEMATECA BRASILEIRA


São Paulo, 25 de julho de 2013.

Carta aberta à Exmª Sra. Ministra da Cultura Marta Suplicy


Ao Exmº Sr. Secretário do Audiovisual Leopoldo Nunes

A memória audiovisual do país está em grande parte depositada na Cinemateca Brasileira, o maior arquivo de imagens em movimento da América Latina. Além da sua missão primordial de zelar pela preservação desse patrimônio, a instituição tem papel fundamental em todos os setores do audiovisual, da produção à difusão do cinema brasileiro. A Cinemateca foi fundada há 74 anos, e somente em 1984 foi transformada em órgão do governo federal. Na última década, a captação e gestão de recursos pela Sociedade dos Amigos da Cinemateca possibilitou o seu fortalecimento em diversos aspectos. Não era o modelo ideal, mas, independentemente dos prós e contras do arranjo institucional que viabilizou esse crescimento, progressos indiscutíveis aconteceram na Cinemateca nesse período.

Num primeiro momento, a exoneração do antigo diretor Carlos Magalhães poderia ser interpretada como um sinal do desejo do Ministério da Cultura de fortalecer e dar novos rumos à gestão da Cinemateca Brasileira. O que seguiu-se, porém, foi um verdadeiro desmonte da instituição, com a demissão de grande parte dos funcionários altamente capacitados e especializados. A transparência na gestão de recursos públicos é fundamental, mas a realização da auditoria das prestações de contas da Sociedade dos Amigos da Cinemateca pela Controladoria Geral da União não justifica a inação do governo federal diante desse desmonte. O abandono da Cinemateca tem potencial devastador para a cultura do país, e as consequências já estão sendo sentidas.

Atualmente, é quase impossível depositar ou retirar um negativo ou cópia de filme, assim como requisitar uma pesquisa no acervo, prática corrente na produção de documentários. Mostras tradicionais no calendário cultural não estão sendo produzidas, e apenas alguns dos projetos, aprovados antes do congelamento total dos recursos, ainda estão sendo realizados. Eventos cinematográficos perderam seu maior espaço de exibição e debate. Uma das duas salas de projeção está ociosa desde o início do ano. Projetos de difusão de alcance nacional como a Programadora Brasil e Cine Mais Cultura foram interrompidos. Até o final de 2013, se nenhuma providência for tomada, até mesmo as atividades de restauração estarão comprometidas, com graves consequências para nosso patrimônio audiovisual.

A Cinemateca já sofreu perdas irreparáveis, em episódios trágicos como o incêndio de 1957, que consumiu aproximadamente um terço dos filmes e a totalidade da documentação. Mais recentemente, mesmo contando com boa estrutura material e profissional, e sendo considerada um dos principais arquivos cinematográficos do mundo, a Cinemateca Brasileira não consegue trabalhar na escala e ritmo necessários para evitar a perda irremediável de filmes. A deterioração dos suportes físicos é rápida e inexorável. O modelo utilizado até 2012 permitia que grande parte das atividades de preservação se viabilizasse por meio de projetos incentivados que “salvavam” emergencialmente alguns títulos. Mostras e projetos de difusão importantes também foram realizados graças a esse modelo. Por um lado, ele propiciou um aumento notável nos recursos da Cinemateca, e uma melhora na realização de suas atividades, com contratação de pessoal e aquisição de equipamentos. Por outro lado, implicou na incerteza que agora ameaça sua existência, privada dos recursos que permitiam que funcionasse. Implicou também na injusta forma de contratação de funcionários fixos como pessoas jurídicas, portanto sem direitos trabalhistas, agora demitidos. Uma instituição de interesse público como a Cinemateca Brasileira não pode ser dependente de projetos pontuais, com todo o mérito que tenham. A participação do Secretário do Audiovisual em debate da Mostra de Cinema Ouro Preto, em junho passado, era ansiosamente aguardado. Esperava-se a apresentação de propostas do governo federal para solucionar a crise da Cinemateca Brasileira, e para a preservação audiovisual no Brasil de maneira geral, mas o encontro foi cancelado, e desde então nenhum caminho foi apontado.

Para tornar pública nossa apreensão com a gravidade da situação, demandamos ao Ministério da Cultura e à Secretaria do Audiovisual a proposição de um projeto consistente de longo prazo de reestruturação e fortalecimento da Cinemateca Brasileira, e um plano emergencial para a retomada imediata das suas atividades normais. Acreditamos que o Ministério da Cultura tem a responsabilidade histórica de conduzir esse processo, em amplo diálogo com a sociedade, e manifestamos nosso interesse em participar e contribuir da maneira que pudermos no reerguimento em bases mais sólidas da Cinemateca Brasileira.

Cordialmente,

Associação Brasileira de Documentaristas – Seção São Paulo

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Abaixo-assinado pela continuidade das atividades no espaço do Dolores

Para quem não sabe, o Coletivo Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes configura-se como um grupo de trabalhadores que exerce, entre todos os percalços, o direito de expressar o mundo que lhe atravessa através da arte.

Como trabalhadores, eles se movimentam enquanto classe e assumem as consequências que esta posição política os coloca.

E agora estão com um abaixo-assinado pela continuidade e ampliação das atividades do CDC Vento Leste - Cidade Patriarca, onde realizam suas atividades desde sua formação, e que agora estão ameaçados de perder o espaço. Abaixo, o manifesto de petição por apoio nessa luta:

- Queremos que o mesmo permaneça como espaço cultural-desportivo, assim como tem funcionado há mais de dez anos. E pedimos sua ajuda nessa empreitada!

Nós, do Dolores e dos demais grupos que ocupam o espaço, somos contra as investidas para mudança de uso do local ou fracionamento de seu terreno - que já foi fracionado para a construção de um posto de saúde e de uma escola municipal.

O CDC Patriarca é o único equipamento cultural-desportivo público da região, sendo autogerido pelos grupos ocupantes, com a realização de assembleias públicas quinzenais. É um espaço de lazer e aprendizado para todas as idades e que está se tornando referência em São Paulo.

Ali acontecem peças de teatro gratuitas frequentemente, como foi o caso das quatro temporadas d'A Saga do Menino Diamante - Uma ópera periférica, com média de público de 300 pessoas vindas de toda a cidade e até de outras localidades. Além das peças, acontecem shows, aulas de capoeira, campeonatos de futebol e basquete, oficinas de teatro e música, palestras, reuniões de recuperação para dependentes químicos, aulas de dança de salão para a terceira idade, entre outras atividades.

Em breve teremos também as oficinas de Permacultura (com início para 03 de agosto, num sábado) e Serralheria, além da pista de caminhada, que já está em processo de construção.

No segundo semestre realizaremos o II Festival de Teatro Mutirão e inauguraremos um jardim de esculturas para a comunidade.

Os grupos que ocupam o espaço são:
- Grupo Esquadrão Arte Capoeira;
- Grupo Amigos Para Sempre de Dança de Salão;
- Grupo Teatral Parlendas;
- Coletivo Teatral Albertina;
- Coletivo Teatral Dolores Boca Aberta;
- Comunidade Boliviana; 
- Comunidade Paraguaia;
- Grupo de Recuperação para Dependentes Químicos;
- Banda Nhocuné Soul.

Para assinar, clique no link abaixo e acesse a página da Petição Pública, onde está hospedado nosso abaixo-assinado.


Assine e ajude a divulgar para o maior número de pessoas!

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Mesa Cinema e Luta de Classes

Mesa Cinema e Luta de Classes - Debate com Coletivos de Audiovisual

FESTIVAL LATINO AMERICANO DE CINEMA

DEBATEDORES:
Adirley Queiroz (integrante do CEICINE - Coletivo de Cinema em Ceilândia); 
Diogo Noventa (integrante da Companhia Estudo de Cena e Coletivo Tela Suja Filmes); 
Ana Chã (integrante da Brigada de Audiovisual da Via Campesina e do Coletivo de Cultura do MST). 

MEDIAÇÃO:
Thiago Mendonça (integrante da ABD-SP e do Coletivo Zagaia)

DATA: 12/07/2013 - sexta-feira
HORÁRIO: 19h30
LOCAL: Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo – Anexo dos Congressistas – Memorial da América Latina
ENDEREÇO: Avenida Auro S. De Moura Andrade, 664 – Portão 13 – Barra Funda (ao lado do metrô Barra Funda)

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Mostra no Engenho Teatral

Quem conhece o Engenho Teatral sabe: desde 2005 o mês de julho é reservado para uma mostra com espetáculos significativos, que já se tornou referência para o público, estudantes, pesquisadores, profissionais. Este ano, porém, ela quase foi cancelada por absoluta falta de recursos.

Aí veio a solidariedade. Vários coletivos teatrais se reuniram e avisaram: nós vamos fazer a mostra!

Engenho Mostra um Pouco Do Que Gosta VIII  vai acontecer, sim!

E será obra do apoio, carinho e solidariedade da Cia. Estável, Brava Cia., Trupe Lona Preta, Cia. Antropofágica, Cia. Estudo de Cena, Cia. do Feijão, Folias D’Arte e muitos outros parceiros.

PROGRAMAÇÃO
de 06 de julho a 04 de agosto de 2013
Sábados e Domingos às 19h
Grátis

A EXCEÇÃO E A REGRA (CIA ESTÁVEL)


A Exceção e a Regra, um dos textos mais montados do alemão Brecht, principal autor e formulador teatral do século 20, tem morte, julgamento e razões opostas. A disputa não se dá entre concorrentes mas entre o livre empreendedorismo exemplar e o trabalhador comum. Adivinha quem tem razão? Ou melhor, quem ganha num jogo de cartas marcadas? Quer dizer, qual é mesmo a regra? Qual é a exceção?

Dias 06 e 07 de julho, sábado e domingo, 19:00 horas
Grátis
1 hora de duração – Livre

EXPERIMENTOS CÊNICOS DA BRAVA COMPANHIA




Em duas peças curtas, a Brava Companhia, com seu humor particular, traça uma crítica aguda ao ideário neoliberal e presta uma homenagem ao autor Reinaldo Maia, que em vida militou por um teatro crítico, divertido e socialmente engajado.

QUADRATURA DO CÍRCULO
 Feita para a rua, a montagem mostra a pregação fraudulenta que cultiva a fé no dinheiro e no sucesso.

JÚLIO E ADERALDO – Um dia na vida de dois sobreviventes
Uma dupla de artistas de rua (Júlio, o cego, e Aderaldo, o guia) entra num bar e provoca uma seqüência de equívocos, pois o cego pensa estar num templo religioso.

Dias 13 e 14 de julho, sábado e domingo, 19:00 horas
Grátis
80 minutos de duração – Recomendado para maiores de 12 anos
Não se proíbe a entrada de crianças acompanhadas

O PERRENGUE DA LONA PRETA (TRUPE LONA PRETA)



Durante uma hora, os palhaços Rabiola e Chico Remela reconstroem, de forma divertida, os símbolos pretensamente eternos da ordem vigente. Nada melhor do que um palhaço para tratar de coisas “sagradas” como o “direito” à propriedade privada dos meios de produção e outros símbolos da cultura oficial.

Dias 20 e 21 de julho, sábado e domingo, 19:00 horas
Grátis
1 hora de duração – Recomendado para maiores de 12 anos
Não se proíbe a entrada de crianças acompanhadas


KABARÉ ANTROPOFÁGICO (CIA ANTROPOFÁGICA)



Um banquete cênico-musical com música, poesia e cenas do repertório acumulado pela companhia ao longo dos 10 anos de pesquisa e criação, degustando episódios da história do Brasil desde a colônia até acontecimentos contemporâneos. O carnaval aparente não esconde seu foco: desmonta a história e a visão oficial do país e aponta seu arsenal cênico contra os poderosos.

Dias 27 e 28 de julho, sábado e domingo, 19:00 horas
Grátis
1 hora de duração – Recomendado para maiores de 14 anos
Não se proíbe a entrada de crianças acompanhadas

A FARSA DA JUSTIÇA (CIA ESTUDO DE CENA)


O espetáculo narra o julgamento de um sobrevivente do massacre de Eldorado dos Carajás que se fingiu de morto para garantir a vida. Após o espetáculo, o ENGENHO encerra a mostra apresentando três cenas curtas do seu TEATRO DE BOLSO.

Dias 03 e 04 de agosto, sábado e domingo, 19:00 horas
Grátis
45 minutos de duração (+ 30 minutos com o Engenho)
Recomendado para maiores de 12 anos
Não se proíbe a entrada de crianças acompanhadas



retirado do site http://engenhoteatral.wordpress.com/

Engenho Teatral
Clube Escola Tatuapé – Estação Carrão do metrô
Rua Monte Serrat, 230 – fone: 2092-8865
Estacionamento gratuito no local
eteatral@gmail.com

COMO CHEGAR
O Engenho Teatral é um teatro móvel e no momento está montado na Radial Leste, dentro do Clube Escola Tatuapé (parque da Prefeitura que alguns moradores ainda conhecem como “Sampaio Moreira”).

PARA QUEM VAI DE METRÔ:
Pegue a linha Leste-Oeste e desça na estação Carrão. Passando as catracas, vire à esquerda, siga até o final da passarela que fica sobre a avenida e desça pela última escada à esquerda (você estará no terminal de ônibus, de onde se avista o Teatro à direita, um enorme iglu branco). Terminando a escada, siga em frente até a próxima esquina (Rua Monte Serrat) e vire à direita, contornando o muro do parque, até chegar no portão de entrada. Entre e vire de novo à direita, seguindo as placas de Teatro e Estacionamento.

PARA QUEM VAI DE CARRO
- Sentido Centro-bairro:
Pegue a Radial Leste. Passando o metrô (e Shopping) Tatuapé, mantenha a direita. Debaixo da passarela do metrô Carrão, entre à direita na bifurcação, passe bem ao lado do terminal de ônibus e vire na primeira à direita (Rua Monte Serrat), contornando o muro do parque até o portão, poucos metros à frente. Entre no parque e vire à direita no estacionamento, que fica à frente do teatro. Estacione, tranque o carro e leve as chaves com você. É tudo de graça.

- Sentido Bairro-centro:

Pegue a Radial Leste em direção ao centro. Depois da Av. Aricanduva, mantenha a esquerda. Assim que passar por baixo da passarela da estação Carrão do metrô, faça a conversão à esquerda no semáforo, pegando a Radial no sentido oposto, mas não pela pista principal e sim pela marginal que passa ao lado do terminal de ônibus. Vire na primeira à direita (Rua Monte Serrat), contornando o muro do parque até o portão, poucos metros à frente. Entre no parque e vire à direita no estacionamento, que fica à frente do teatro. Estacione, tranque o carro e leve as chaves com você. É tudo de graça.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

ENTREVISTA COM PAULO ARANTES


Enfim concedida a revogação dos aumentos das tarifas de transporte nas duas principais metrópoles brasileiras, Rio de Janeiro e São Paulo, a tarde de quinta-feira se anunciava como o momento de comemoração para o movimento cívico e apartidário que tomou as ruas do País nas últimas duas semanas. O que se viu, no entanto, foi a expansão incontrolável dos protestos, com mais de 1 milhão de pessoas em cerca de cem cidades brasileiras. E, embora o tom geral das massas de manifestantes se mostrasse pacífico, cenas de conflito e vandalismo foram vistas por toda parte. Em Brasília, três ministérios foram depredados. No Rio, 62 pessoas ficaram feridas. No interior paulista, um jovem manifestante morreu atropelado e, em Belém, uma gari perdeu a vida após inalar gás lacrimogêneo lançado pela polícia.

No calor de acontecimentos que atingem proporções inéditas desde a redemocratização brasileira, o filósofo Paulo Arantes desfia, na entrevista a seguir, as perplexidades do "país do futuro" - que afinal chegou, trazendo consigo antigas contradições. "A vida no Brasil sem dúvida melhorou, e muito, nestas duas décadas de ajuste ao capitalismo global. No entanto, ninguém aguenta mais", afirma o professor aposentado da USP e doutor pela Universidade de Paris X, Nanterre.

Para Arantes, nunca é demais lembrar que o Maio de 1968 na França também eclodiu em um contexto de crescimento econômico, pleno emprego e políticas de bem-estar social. Comparação que, no entanto, para por aí. E que se as "jornadas de junho" nacionais, como o filósofo as chama, referenciam-se de fato em rebeliões altermundistas como a de Seattle-1999 ou de Nova York-2011, encontram no Brasil ambiente ainda mais explosivo, "tamanha a desagregação social em que nos enfiamos". E avisa: para evitarmos o risco de uma derivação autoritária, será preciso que governantes municipais, estaduais e federais deixem de lado suas "cabeças de planilha" e levem a sério a reivindicação radical de cidadania expressa nas ruas.

‘Perplexidade’ foi a palavra mais usada na descrição dos últimos acontecimentos em todo o País. O sr. também ficou surpreso?

É verdade, só hoje de manhã li pelo menos três artigos confessando "perplexidade" diante dessas realmente espantosas "jornadas de junho". Cada um com o seu assombro diante da "mais expressiva, surpreendente e rápida vitória popular de nossa história", nas palavras do cientista político Rubens Figueiredo, que atribui a rendição dos governantes locais, Estado e município, à "potência e capacidade de mobilização das redes sociais". O que os ideólogos da sociedade em rede estão chamando de autocomunicação, Kant falaria em uso público da razão. Seja como for, mais um motivo de espanto. Voltemos às três visões perplexas. O cronista, que admite não estar entendendo nada e exige a mesma franqueza dos demais, da imprensa, dos políticos e dos próprios manifestantes; o correspondente internacional, que talvez tenha vivido anestesiado pela rotina da profissão, cobrindo anos de prosperidade festejada pelos investidores estrangeiros; o veterano do mundo petista agoniado pelos sinais alarmantes de fadiga da estratégia de mudanças sem ruptura, com dez anos de conquistas dentro da ordem e níveis coreanos de aprovação eleitoral arriscando ir para o vinagre à menor gota d’água.

Como entender esses sinais, em um contexto de baixo desemprego e de crescimento, ainda que modesto, na economia?

A vida no Brasil sem dúvida melhorou, e muito, nestas duas décadas de ajuste ao capitalismo global. No entanto, ninguém aguenta mais. Essa a dissonância básica, ainda mais estridente quando o contexto é de baixo desemprego, como você bem lembrou. Não seja por isso. Sei que a comparação frisa o disparate, mas não custa recordar que o maior movimento contestatário da segunda metade do século 20, disparado pelo maio francês de 1968, ocorreu justamente no auge de um ciclo inédito de crescimento econômico, pleno emprego e Estado social a todo vapor, sendo que três meses antes da explosão o mais acatado colunista da época publicara um artigo descrevendo a França como um país entorpecido pela autossatisfação. A herança do Maio, entretanto, já se disse, é uma herança impossível. E a moçada do Passe Livre sabe muito bem disto: onde havia um horizonte de superação, existe uma ratoeira. Essa armadilha é o Brasil do futuro que afinal chegou. Como disse um poeta, "o horizonte sorri de longe e arreganha os dentes de perto". Por exemplo, a brilhante dentadura do PM baixando o porrete no casal de namorados num bar da Av. Paulista.

De que maneira o Passe Livre, que teve início em 2005, se aproxima e se diferencia dos movimentos sociais a que estávamos acostumados no Brasil?

O Movimento Passe Livre, como de resto seus congêneres nascidos da galáxia altermundista, sobretudo os descendentes da velha tradição da Ação Direta, discrepa dos movimentos sociais clássicos, para não falar é claro, dos partidos da esquerda histórica, embora seja igualmente temático como os demais movimentos, e obviamente de esquerda. É filho de Chiapas, Seattle, etc., das lutas contra a OMC, Alca & cia. Sua família é por certo a dos autonomistas. E, embora restrito a um foco único, é maximalista, como estamos vendo agora: a meta é a tarifa zero. Cuja razoabilidade demonstrada nas suas cartilhas de clareza igualmente máxima são exemplares como introdução prática à crítica da economia política. Pelo tênue fio da tarifa é todo o sistema que desaba, do valor da força de trabalho a caminho de seu local de exploração à violência da cidade segregada rumo ao colapso ecológico. Simples assim, por isso, fatal, se alcançar seu destinatário na hora social certa, como parece estar ocorrendo agora.

Daí a ressonância de uma causa como a da ‘tarifa zero’, tida como inviável?

Exato. E são tão afiados no manejo do melhor argumento contra a aberrante insensatez do atual modelo de transporte coletivo - e socialmente convincentes, como estamos vendo -, que, em contraste, as planilhas dos governantes parecem, elas sim, cifras fantasiosas ornamentando o jogo das concessionárias que se conhece. Mas de tanto levarem às cordas essas raposas das planilhas criativas, a expertise adquirida no processo foi aos poucos colando, num só personagem, o libertário e o gestor ideal de políticas públicas "igualitárias". Não estou insinuando que cedo ou tarde esses jovens estarão operando do outro lado do balcão - como já o fazem no âmbito da cultura digital, no qual a livre associação de livres produtores revelou-se o melhor caminho para gerar empreendedores shumpeterianos e novos formatos de negócios, como se diz no jargão do capitalismo cognitivo. Não à toa, demonstra-se por a+b que a circulação urbana planejada à luz de uma tarifa zerada exponenciaria a performance econômica de uma cidade, e estenderia o direito à cidade. Uma ruptura de época está nos arrastando para uma outra praia não menos conflagrada e na qual os europeus já vivem há tempos: onde em torno dessas famigeradas políticas públicas de gestão de um presente congestionado - da segurança à moradia - um grupo se amotina e as correspondentes instituições coercitivas fecham o cerco. Por isso na Av. Paulista um dia é pau outro dia é flor.

Além da reivindicação ‘irrealista’ da proposta de tarifa zero, fala-se muito sobre o ‘caráter difuso’ dos protestos. O sr. concorda?

Me parece muito mais insensata a hipótese contrária, de que centenas de milhares de pessoas ganhem as ruas para pedir a Lua. O engenheiro Lúcio Gregori, secretário de Transportes na cidade de São Paulo no governo Luiza Erundina, tem dito para quem quiser ouvir que só a horrenda política tributária no Brasil impede a gratuidade no transporte coletivo, tão viável quanto o SUS, escolas públicas e coleta de lixo. Quanto ao "caráter difuso" das demandas, trata-se de um bordão pejorativo porque, em sua infinita variedade, além de serem de uma espantosa precisão - nada menos do que tudo, como o Terceiro Estado em 1789 queria tudo por não ser nada -, elas sugerem um limiar que no fundo ainda não se ousou transpor.

Muitos têm dito também que as manifestações são o equivalente brasileiro de movimentos como o da Primavera Árabe e o Occupy Wall Street. A comparação procede?

A Primavera Árabe são outros quinhentos. Salvo a tática de ocupação de um local emblemático e o ímpeto do enfrentamento, nada a ver. Da geopolítica - estão no olho do furacão de uma guerra pela ordem mundial - à mescla de trabalhadores pobres e populações destituídas com uma religião militante e suas violentas divisões sectárias. Já o similar do Occupy americano reproduziu-se por aqui há dois anos, mas passou desapercebido, encoberto pela melhora dos índices de Gini no País. Na Turquia sim, um par de analogias salta aos olhos, porém não mais do que isso, pois estamos falando de um país-membro da Otan e implicado numa guerra civil no vizinho árabe: também um estopim com cara de causa menor, a desfiguração de uma praça entregue à especulação imobiliária, do outro lado da barreira, um governante com altos índices de aprovação e por isso mesmo acometido da apoteose mental que conhecemos bem, enterrado até o pescoço em megaprojetos para lá de duvidosos. Quanto aos Indignados espanhóis, é inegável o ar de família, menos quanto ao desfecho conservador, embora ninguém saiba qual será o nosso, tamanha a desagregação social em que nos enfiamos: uma imponderável deriva à direita pode ocorrer a qualquer momento. O fato é que há mesmo muita "indignação" de um tipo novo nas ruas brasileiras em ebulição, tão nova essa indignação que ousou tocar no santo dos santos, a Copa. E olhe que acompanho futebol desde 1950, nunca vi ninguém se atrever a tamanha profanação. O papa não perde por esperar...

A imagem de estádios de Primeiro Mundo em contraponto a serviços públicos de terceiro deu força à tal ‘revolta da catraca’?

O estopim da tarifa também passou por aí, e para além do importante movimento dos atingidos por megaeventos, alcançou a imaginação da massa infeliz condenada à catraca: queremos tarifa com padrão Fifa - bem como hospitais, escolas, creches, no mesmo padrão Fifa de qualidade. Humor popular direto ao ponto, porém um tantinho inquietante: então seria esse o metro da "cidadania social" a que se aspira? Luxo e apropriação direta dos fundos públicos? A proximidade com os Indignados europeus dá mesmo o que pensar. Fica no ar a dúvida: e se tivermos ingressado finalmente na era dos protestos desengajados - como os qualificou um sociólogo britânico -, quando protestar se tornou uma questão estritamente pessoal, e o ativismo, a rigor, um estilo de vida? Em fevereiro de 2003 1 milhão de pessoas foram às ruas na Grã Bretanha em protesto contra a iminente invasão do Iraque. Recolhidos cartazes e bandeiras, não deixaram nenhum rastro social ou político pelo caminho, salvo a palavra de ordem famosa "não em meu nome", isto é, não me envolvam nessa barganha de sangue por petróleo. Na mesma linha, outro conhecedor da cena inglesa observou que os europeus que promovem festa e casamento durante os protestos o fazem porque sabem que as demonstrations só demonstram para os próprios demonstradores. Quando a maré virou, e a vara de condão da PM "transformou" vândalos em indignados pacificamente distribuídos por nichos genéricos de demandas, a narrativa midiática dos acontecimentos não precisou forçar a mão para desviar-se do gatilho do movimento - e apresentar a manifestação como um fim em si mesma. Essa a moldura do imortal "está lindo vocês nas ruas".

Essa alternância entre vandalismo e cidadania foi o que tornou os protestos tão difíceis de decifrar?

Acho que há menos mistificação do que supõe a socióloga da FGV Silvia Viana, ao notar, num ótimo artigo, que são tantas as negativas - "não são só os 20 centavos, não é só o transporte, não é só a Copa..." - que o movimento parece um protesto por nada. Mas não é o que diz uma jovem manifestante, ao ser indagada sobre as motivações de sua presença no ato: "Olha, eu não consigo imaginar uma razão para não estar aqui". O teórico alemão Wolfgang Streek traduziria um pouco à la bruta: vim consumir política, no caso, repudiar um sem-número de "produtos", a saber tais e tais políticas públicas que não me satisfazem. Se não me engano, foi esse o ponto da entrevista do professor José Garcez Ghirardi (Em Trânsito", 16/6), domingo passado neste mesmo caderno. Alguém observou que muitas palavras de ordem nos protestos decalcavam slogans publicitários, a começar pelo "Grande Despertar" de uma marca de uísque.

E o próprio ‘vem pra rua’, da propaganda de uma fábrica de automóveis...

Puro agitpub: o autor da boutade acrescentou que se tratava menos de ouvidos treinados por jingles do que casos de detournement espontâneo à maneira dos situacionistas franceses. Mas, e se não for bem assim? À notícia da capitulação, o bom senso tático da esquerda tradicional recomendaria uma pausa para consolidação das conquistas. Parece não ser mais o caso. Nas palavras de um ativista, não só em solidariedade às outras cidades que ainda estão na luta, mas porque uma pauta puxa a outra, "a mobilização não pode parar, a cultura da mobilização não deve parar". Mas precisamos, sim, parar para pensar, antes de celebrar o que quer que seja, salvo a derrota acachapante dos reis da planilha. Um coletivo de estudiosos e militantes da questão social no Brasil poderia muito bem dizer que essa mobilização permanente tem menos a ver com a mobilização total de uma sociedade de consumo do que com a implicação, e o "engajamento", das pessoas arrastadas pelo novo assalariamento vulnerável, que estão ralando e padecendo e no entanto engajadas em duas frentes, a do trabalho que ninguém gosta de ver estropiado por chefias despóticas e avaliações espúrias e a do senso do vínculo social a ser reconquistado que decorre dessas engrenagens desenhadas para infligir sofrimento. Quem sabe não virá também dessa outra fonte de energia social o som e a fúria que se vê nas ruas?

Do ponto em que estamos, já é possível vislumbrar em que isso tudo vai dar?

Até agora mais ou menos cem cidades com manifestações marcadas ou já ocorrendo. Era de 70% de aprovação no Datafolha, segundo consta, o índice do Movimento das Diretas no seu começo. Como lhe dizer que estou entendendo o que seria inconcebível dez dias atrás? E olhe que o povo lulista - na acepção precisa que lhe deu o cientista político André Singer - mal começou a dar o ar de sua graça: tarifa zero dentro da ordem seria demais para o seu "horizonte de desejo", para usar a ótima expressão de Wanderley Guilherme? E quando o desemprego voltar com o tremendo arrocho fiscal pela frente? Deixará de lado a saída empreendedorista pela ação coletiva? Como reagiria a classe média, que até agora extravasou seu ressentimento atávico contra um pouco de tudo, na hora em que a gente diferenciada deixar de ser apenas uma ameaça virtual? Salvo a Copa, o consenso em torno do Brasil emergente ainda não foi arranhado. Se em algum momento se sentir sob ataque, reagirá como de hábito, cerrando fileiras em torno de um campo popular ad referendum, os cenários pré-64 sairão das gavetas mais uma vez, etc. Muitas dissonâncias portanto nessa unanimidade toda, além do mais fabricada pelos âncoras transmitindo ao vivo o impensável na pasmaceira dos últimos anos.

Na sexta-feira, já ficava clara não só a apreensão da Fifa em relação à Copa do ano que vem, mas a do Comitê Olímpico Internacional sobre a Olimpíada de 2016 no Rio de Janeiro. São preocupações fundadas?

A Copa do Mundo não está indo para o vinagre apenas porque está ficando cada vez mais claro o engodo da redenção urbana operada por megaeventos do gênero. A ficha que caiu agora é o escândalo do seu tremendo custo público alavancando lucros privados inconcebíveis. Temos um ano pela frente, num cenário de retrocesso econômico, de volta à ortodoxia do primeiro mandato de Lula, tempo suficiente para que amadureça a percepção pública do real significado da Lei da Copa, essa sim uma verdadeira lei de exceção. Veremos de perto, entre outras derrogações e violações, o exercício da soberania corporativa sobre territórios e populações. Não faltarão gatilhos para outra onda de manifestações em cascata: tem muita gente com coceira nos dedos.

O sr. disse certa vez que o pensamento crítico brasileiro encontrava-se em ‘coma profundo’. Parafraseando um dos slogans mais cantados nos atuais protestos (‘o povo acordou’), acha que ele pode despertar agora?

Vasto assunto. Como o dito pensamento crítico brasileiro prestou relevantes serviços à inteligência nacional, por que não deixá-lo descansar em paz?