O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Centro do Meio



Independentemente de suas prováveis fraquezas, dedico esse pequeno texto à força vital do diálogo. Aos poucos, e raros momentos em que a luz da compreensão e do respeito conseguem ultrapassar a miséria da guerra cotidiana pela sobrevivência. Devemos à camaradagem o resgate diário de nossas energias vitais.

Também dedico esse texto aos habitantes de "Centro do Meio", Maranhão.



Num dos momentos altos de Quarup (Antonio Callado) uma espécie de comitiva sai em busca do centro geográfico do Brasil, no Xingu. Simultaneamente, na capital do país, João Goulart é deposto pelos militares. Para além da simples coincidência (estamos falando de um romance, afinal de contas), notemos como os grandes acontecimentos históricos por vezes encontram explicação fora de sua órbita imediata. 

Assim, o conhecimento dos personagens de Quarup, de suas motivações íntimas - que, supostamente, explicam o desejo de conhecer o centro geográfico do país em plena derrocada de seu centro político -, ensina muitas coisas a respeito do momento histórico em que se vivia. 

Podemos recordar ainda a posição geográfica e temporal de Macondo (Cien Años de Soledad). O não-lugar que - de tão absoluto em sua inexistência - pode ser todos os lugares. Posição dos invisíveis, aquém dos centros de decisão onde o futuro, no entanto, repentinamente ganha corpo. Macondo, em relação à "vida real", encontra-se numa distância que jamais será percorrida. Este o segredo, talvez, da sua verossimilhança.

Seja como for, é notável a vigência temática da relação centro/periferia na literatura latino-americana. Como lembra Antonio Cândido: "As áreas de subdesenvolvimento e os problemas de subdesenvolvimento (ou atraso) invadem o campo da consciência e da sensibilidade do escritor, propondo sugestões, erigindo-se em assunto que é impossível evitar, tornando-se estímulos positivos ou negativos da criação" ("Literatura e subdesenvolvimento"). 

Que se leia, a título de exemplo, o emblemático conto de Borges, "As Ruínas Circulares", ou de seu conterrâneo Cortázar, "A auto-estrada do sul". Exemplos não faltam. À parte a diversidade das soluções formais em cada país, o fato é a permanência instigante (e instrutiva) do problema, que as transformações econômicas e políticas das últimas décadas - a chamada globalização - pretensamente colocam em suspensão, enquanto motor da criação artística. 

Desse modo, em vários contextos, a superação do atraso parece derivar unicamente da "universalização" do acesso à informação, por exemplo. No entanto, a oposição compartilha, com muita frequência, o pressuposto do inimigo, aceitando os termos da discussão: estaria em jogo uma definição mais precisa do verdadeiro poder dos meios de comunicação. Questão real, sem dúvida, mas antecedida por outra. Na verdade, trata-se, mais uma vez e sempre, do próprio conceito de "atraso". Com muita facilidade renegamos o esforço dos mais velhos. 

Talvez devamos, além disso, identificar a defesa positiva da globalização como construto ideológico puro. Ou, de outro modo: olhar a realidade, para ver até que ponto ela desmente a atualidade (formal e política) do problema. O reconhecimento da complexidade da questão, no plano literário (que apresenta saldo objetivo, isto é, formal) atingiu níveis altos, contrastando com as respostas no plano político. No Brasil, por exemplo, a esquerda ainda não extraiu devidamente o saldo político da ditadura.

Qual o balanço da experiência política dos trabalhadores com o regime militar? Há muita especulação em jogo. Ignora-se, sem mais, não a experiência com a miséria, mas a experiência dos próprios miseráveis. E o erro repete-se: atualmente, há uma séria dificuldade em mensurar o alcance dos estragos, e extrair as perspectivas resultantes, da dominação petista.

Evidentemente, a tarefa não é fácil: os desdobramentos históricos do atual esgotamento político não se encontram ao alcance do braço. Porém, a letargia em levantar os braços rumo ao futuro, à ideia de uma nova vida, enfim, paralisa o ímpeto. A esquerda carece de um objeto digno de desejo. 

A dificuldade em escorregar para o ponto de vista dos derrotados, dos invisíveis, beira o desespero. Como diria Mário de Andrade: "Há sempre um jeito de escorregar num ângulo de visão, numa escolha de valores, num embaraço duma lágrima que avolumem ainda mais o insuportável das condições atuais do mundo". 

De outro lado, é possível encontrar o sonho desse deslocamento depositado na experiência literária. Que deve servir de contraste, ou, pelo menos, de meio eficaz para manter intacta as figuras elementares de um velho sonho, constitutivo da dignidade necessária, e desejável, do amanhã. 

Para terminar, fiquemos com um exemplo das últimas semanas, que ilustra a tese inicial: o atual momento histórico, por vezes, encontra explicação fora do alcance de nossas vistas.

No Maranhão, há um povoado chamado "Centro do Meio" (já o nome, na sua quase-redundância, é significativo, ainda mais se pensarmos que, até ontem, praticamente não existia... ), que situa-se no município de Pio XII, em homenagem ao papa eleito 1939. 

Pois bem. No último dia 30/07, domingo, houve um jogo de futebol no povoado "Centro do Meio". O árbitro da partida, rapaz de 20 anos, expulsou um jogador de um dos times. Inconformado, este resolveu acertar contas com o árbitro, que, por sua vez, esfaqueou o rapaz.

Com isso, a família da "vítima" e amigos resolveram apedrejar e lixar o árbitro, e depois o amarraram a uma árvore. 

Aguardaram, até que chegou a notícia: o rapaz esfaqueado pelo árbitro morreu no hospital! O final da vingança encerra o caso, e traz inesperadamente Centro do Meio para o centro dos noticiários. Ocorre que, depois de saberem da morte do rapaz, no hospital, familiares e amigos resolveram esquartejar o árbitro. 

Braços e pernas decepados. Cabeça, idem: pendurada na ponta de uma cerca. 

Já circula fotos na internet, para aqueles que, acostumados ao "espetáculo da vida", necessitem de "mais vivas impressões". Ao que dizem, a brutalidade do ocorrido chocou os moradores de povoados vizinhos, a ponto de cortarem relações com os habitantes de Centro do Meio. Como se, de fato, estivessem enfeitiçados por algum espírito maligno. Eterna noite dos esquecidos.

Já os moradores de Centro do Meio, crianças e velhos, reclamam a mudança no trato: além da brutalidade ocorrida, tem de suportar a exclusão dos vizinhos...  

O evento que marcou o povoado de Centro do Meio, em Pio XII, ocorreu na mesma semana em que o papa Francisco visitava o Brasil. Segundo dizem, Pio XII é conhecido pela sua fria indiferença em relação ao Holocausto. Mera coincidência, enfim.

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