"Edgar Allan Poe metido numa ambulância, Verlaine nas mãos de um médico qualquer, Nerval e Artaud diante dos psiquiatras. Que podia saber de poesia o médico que o sangrava e o matava de fome? Se os artistas guardam o silêncio a respeito de si mesmos, como é provável, os outros triunfam cegamente, sem qualquer má intenção, é claro, sem saber que aquele operado, aquele tuberculoso, aquele acidentado despido sobre a cama se encontra duplamente só, rodeado por seres que se movem como por trás de um vidro, num outro tempo...
Abrigando-se sob o portal de uma casa, acendeu um cigarro. A tarde caía, grupos de moças saíam das lojas, com necessidade de rir, de falar aos gritos, de se empurrarem, de se esponjarem, numa porosidade de um quarto de hora antes de voltarem ao filé e à revista semanal. Oliveira continuou andando. Sem necessidade de dramatizar, a mais modesta objetividade era uma abertura ao absurdo de Paris, da vida gregária. Já que pensara nos poetas, era fácil recordar-se de todos os que denunciaram a solidão do homem junto do homem, a irrisória comédia dos cumprimentos, o "perdão" ao se cruzar na escada, o assento que se cede às senhoras no metrô, a confraternização na política e nos esportes. Somente um otimismo biológico e sexual poderia dissimular o isolamento de alguém. Os contatos na ação e na raça e no escritório e na cama e no campo eram contatos de galhos e folhas que se entrecruzam e acariciam-se de árvore para árvore, enquanto os troncos erguem, desdenhosos e indiferentes, as suas paralelas inconciliáveis. "No fundo, poderíamos ser como na superfície", pensou Oliveira, "mas teríamos de viver de outra maneira. E o que quer dizer viver de outra maneira? Talvez viver absurdamente para acabar com o absurdo, sair de si mesmo com tal violência que o salto acabasse nos braços do outro. Sim, talvez o amor, mas o diferente, o outro, nos dura o que dura uma mulher, e além disso, somente no que toca a essa mulher. No fundo, não há o outro, apenas os iguais. É certo que isso já é alguma coisa... " Amor, cerimônia ontologizante, doadora de ser. E por isso lhe ocorria agora aquilo que, na verdade, deveria ter lhe ocorrido logo no início: se alguém não tem domínio sobre si, jamais poderia ter alcançado a singularidade. E, afinal, quem é que se dominava de verdade? Quem é que tinha a perfeita consciência de si, da solidão absoluta que significa nem sequer contar com a própria companhia, que significa ter de entrar num cinema ou num bordel, ou em casa de amigos ou numa profissão absorvente ou, ainda, no matrimônio para estar, pelo menos, só entre os demais? Assim, paradoxalmente, o cúmulo da solidão conduzia ao cúmulo do gregarismo, à grande solidão das companhias alheias, ao homem só na sala de espelhos e dos ecos. Todavia, pessoas como ele e tantas outras, que aceitavam a si mesmas ou que se rejeitavam, mas conhecendo-se de perto, caíam sempre no pior paradoxo; estar talvez á beira da singularidade e não poder alcançá-la. A verdadeira singularidade feita de delicados contatos, de maravilhosos ajustes com o mundo, não podia ser cumprida por um só lado: a mão estendida deveria receber outra mão, vinda de fora, vinda do outro".
(Julio Cortázar - trecho de O Jogo da Amarelinha)
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