O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Delírios de Leitura.


As palavras do alemão ressoavam no meu cérebro:

“Vêem na miséria apenas a miséria, sem atentar para o aspecto revolucionário subversivo que irá enterrar a velha sociedade”.  

Quanto sentido em duas linhas! Afinal, quem vê? 

Poderia iniciar um comentário “por partes”, expressão que utilizo com relativa frequência. É difícil saber quando certas palavras costumeiras deixam de servir à inteligência, e se tornam muletas.  

Entretanto, porquanto, no entanto, pois é, isto é, quer dizer, então, ou seja, por conseguinte, na ordem do dia, revolução, enfim, etc. etc.”. Qual delas produz maior sensação de conforto mental? O termo menos espinhoso, mais recorrente? Enfim.

Certas palavras são exaustivas. Mas isso é apenas um sintoma, na superfície, de raciocínios exaustivos. Vejamos: quando digo “por partes”, me coloco na posição de um possível leitor. Imagino este, e, ao fazê-lo, lanço mão de recursos estilísticos para atingi-lo.  

Poderia dizer: “vamos por partes”. Mas seria muito pouco intransigente, já que o leitor imaginado - sendo eu mesmo, fora de mim - é um pequeno-burguês, razoavelmente, ou quase instruído.

Reparem como a discussão sobre a utilização de uma certa expressão (mais ou menos reduzida?) em conformidade com um leitor determinado, escorrega para a questão do didatismo.

Noutras palavras: se a expressão não fosse reduzida, o didatismo seria excessivo, para um tipo de leitor que presumimos ser minimamente capaz de andar por suas próprias pernas, levando em conta as condições reais de sua existência.

Mais do que isso: deveria saber que a reflexão por partes é inevitável quando se trata de algo tão complexo como o conceito de miséria... 


Talvez o didatismo, distante do jogo da exploração capitalista, não faça sentido algum. Aliás, deveríamos perguntar se ele pode sequer existir fora disso.   

Assim, as palavras se convertem em muletas em relação a um pensamento que necessita de muletas. De repente, o pensamento empaca: brota a palavra santa, como um milagre, e o raciocínio foi salvo em suas principais linhas de força... Ao abrigo do acaso.
                           
Na criação, na reflexão, quando dependemos de um milagre para evitar o naufrágio, não é isto o sinal de que já estamos naufragados? É óbvio: a linearidade e a regularidade de um processo é uma ilusão que devemos abandonar, tanto mais, então, quando se trata de um processo de contestação do atual estado de coisas.

A obsessão pela estabilidade é um vício burguês - praga que leva a uma duplicação estranha da personalidade.  

Por isso, não dá para confundir as coisas: salto, descontinuidade, alternância de ritmo, etc. é uma coisa. Paralisia é outra.

Vejamos: as palavras são forças produtivas. Nesse sentido - é dureza admitir -, um texto ou um poema mal escrito, desinteressado das questões técnicas, feliz na sua ignorância pacata, constitui, em escala minúscula, uma ação contra-revolucionária.

Em produção ampliada, um amontoado deles nas academias, nos saraus, no movimento humanista de salvação das baleias (paradoxo?), etc., tudo isso junto funciona, efetivamente, como força ideológica  para a manutenção do capitalismo.

Sempre haverá quem aponte o exagero de quem busca a função social de tudo. Mas nós sabemos: também esse discurso tem lá sua função social.

Aliás, falar na função das coisas é tão inevitável, que estes mesmos indivíduos, contribuindo para a coisificação do homem, são os primeiros a apontar razões de ordem moral, humanista-abstrata, constitucional, etc.

A função real é a que almejamos! Desde o conhecimento técnico aplicado na extração incessante de combustível fóssil, até o emprego de vírgulas num parágrafo, tudo, enfim, deve ser repensado segundo a ótica da revolução.

Em atraso: no contexto acima descrito, a morte da poesia se explica por si só.

De fato, constatar que a boçalidade humana beira a completa hostilidade em relação ao universo da criação verbal, poderosíssima força produtiva – das mais importantes, objetivamente falando -, a mim, particularmente, tal fato assusta mil vezes mais do que a degradação da camada de ozônio. Esta, de certo modo, é conseqüência daquela.

Arriscar com os conceitos fornecidos por Marx; é preciso mais do que nunca voltar a Maiakovski, sem mistificá-lo, mas com a energia e falta de pudor com que as massas consomem diariamente a novela das oito – isso é possível? Deixemos que Maiakovski responda.

A limpidez do pensamento é o escudo. Por mais profunda a obscuridade, jamais será insuficiente a clareza como recurso primordial de expressão. Adorno que nos perdoe, é respeitável toda forma de respeito consciencioso pelas contradições, mas só acordo com a simplicidade acessível dos escritos de Trotsky.

Foi o grito eterno dos trabalhadores russos em guerra contra o inimigo de classe que forneceu o sentido cortante de suas análises; do mesmo modo que, segundo esse mesmo Trotsky, é na velocidade das guilhotinas da grande Revolução Francesa que encontramos  a origem da arte de narrar, veloz e sempre interminável, dos romancistas franceses de XIX. “Continuarei com a pena o que Napoleão começou com a espada” (Balzac).

Clareza, por fim, que não é renuncia da experimentação. Somente esta última compreendida como meio de reaver as formas da sensibilidade humana das mãos de poucos, renovando-as para o alcance de todos. Fora disso a noção de experimentação é absolutamente incompreensível. 




João .






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