O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

domingo, 4 de setembro de 2011

Hegel e Brecht: Personagem-Sujeito ou Personagem-Objeto

Relendo o ótimo livro de Augusto Boal "Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas", senti vontade de compartilhar um dos textos que compõem o capítulo "Hegel e Brecht: Personagem-Sujeito ou Personagem-Objeto". Digitalizaria o livro todo, por agora não é possível, mas espero que gostem deste texto, que acredito que traça muito bem, também, o momento que passamos dentro do Coletivo Cinefusão de Trans-Formação social-artística.


Conceito de Épico

A maior dificuldade para compreender as extraordinárias transformações que sofre o teatro, com a contribuição do pensamento marxista, consiste na deficiente utilização de certos termos. Justamente porque essas gigantescas transformações não foram imediatamente percebidas, as novas teorias foram explicadas com o velho vocabulário: para designar novas realidades se utilizaram velhas palavras, tentaram-se utilizar novas conotações para palavras já cansadas e exaustas por suas velhas denotações.

Tomemos um exemplo: que quer dizer épico? No começo, Bertold Brecht chamou seu novo teatro com essa velha palavra. Aristóteles, é verdade, não fala de teatro épico, mas sim de poesia épica, de tragédia e de comédia. Estabelece diferenças entre poesia épica e tragédia que se referem ao verso, para ele necessariamente presente nas duas formas, a duração da ação e finalmente ao que é mais importante, ao fato de que a poesia épica é formalmente narrativa, ao contrário do que acontece com a tragédia,. Nesta, a ação ocorre no presente; naquela, a ação,  ocorrida no passado, é agora recordada. Aristóteles acrescenta que todos os elementos da poesia épica se encontraram na tragédia, mas nem todos os elementos da tragédia são encontráveis na poesia épica. Fundamentalmente, ambas "imitam" as ações de personagens de "tipo superior".

Erwin Piscator, contemporâneo de Brecht, utiliza um conceito completamente diferente do "épico": faz um teatro oposto ao preconizado por Aristóteles e usa, para designá-lo, a mesma palavra. Piscator utilizou, pela primeira vez em um espetáculo teatral, o cinema, os slides, os gráficos de uma infinidade de mecanismos e recursos extra-teatrais que podiam ajudar a explicar a realidade verdadeira na qual a peça se baseava. Esta absoluta liberdade formal, com a inclusão de qualquer elemento até então insólito era chamada por Piscator "forma épica. Essa imensa riqueza formal rompia a ligação empática convencional e produzia um efeito de distanciamento; este efeito  foi depois aprofundado por Brecht , e já o estudaremos mais adiante. Quando Piscator montou As Moscas, de Satre, em Nova York, para que nenhum espectador deixasse de entender que Satre estava falando da França ocupada pelas forças nazistas, exibiu, antes do espetáculo, um filme sobre guerra sobre a ocupação, a tortura e outros males do capitalismo. Piscator não queria permitir que se pensasse que a obra tratava dos gregos, que eram aqui simples elementos simbólicos de uma fábula que contava coisas pertinentes do mundo atual.

Hoje em dia a palavra "épico" está outra vez de moda em uma nova acepção, em relação a certos filmes sobre o assassinato maciço de índios pelas tropas estadunidenses, ou filmes sobre a guerra expansionista norte-americana contra o México. Em resumo, filmes a "céu aberto". Esta é a concepção mais frequente que tem a palavra: um filme com muitos personagens, com muitos cavalos e tiros e lutas e ocasionalmente algumas cenas de amor, no meio de mortes, sangue de ketchup, violações e estupros, tudo isso embrulhado num pacote para maiores de 18 anos.

Em todas esta acepções, a palavra épico tem a ver com tudo que seja amplo, exterior, objetivo, a longo prazo, etc. Também na acepção de Brecht a palavra tem estas características e algumas outras.

Brecht usa a expressão "teatro épico" principalmente em contraposição à definição de "poesia épica" que nos da hegel. Na verdade, toda a Poética de Brecht é, basicamente, uma resposta e uma contraproposta à Poética idealista hegeliana. Quero que isto fique claro: a poética de Brecht não é uma categoria(épica) de uma poética anterior, mas se constitui, ao contrário, em uma poética inteiramente nova que inclui(como a de Hegel) os gêneros lírico, épico e dramático. A confrontação central entre estas duas Poéticas (hegeliana e brechiana) se dá no conceito de liberdade do personagem , como já veremos: para Hegel, o personagem é inteiramente livre quer se trate da poesia lírica, épica ou dramática; para Brecht (e para Marx) o personagem é objeto de forças sociais.

Para que se entenda o que significa "épico" para Hegel é necessário lembrar inicialmente que, dentro do seu "Sistema das Artes", ele atribuiu importância fundamental ao maior ou menor grau em que "o espirito se liberta da matéria". Para explicá-lo melhor, digamos que Arte, para Hegel, era "o luzir da verdade através da matéria". Por isso, dividia as artes em simbólicas, clássicas e românticas. Nas primeiras predomina a matéria e o espírito é muito pouco visível. Neste caso está, por exemplo, a arquitetura. No segundo caso, o espírito já se liberta um pouco mais da matéria e consegue o equilíbrio, é o caso da escultura: o rosto de um homem, sua fisionomia, sua expressão, seu pensamento, sua dor, conseguem transparecer através do mármore. Finalmente, as artes chamadas românticas são aquelas em que o espírito se consegue libertar completamente da matéria. Neste caso  está a poesia. A matéria da poesia são as palavras e não o cimento ou o mármore. Por isso, o espírito pode alcançar, na poesia, refinamentos impossíveis na arquitetura, onde pesadamente predomina a matéria, a pedra, a terra.

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