Qualquer semelhança com a realidade é apenas uma certa propensão a destruí-la
Não se podia chamar de corriqueiro, e talvez algum ecochato diria
ser a resposta da natureza contra o homem. De qualquer forma, naquela
noite, o frio me rachava os lábios, lacrimejava o olhos, nunca o
havia sentido de tal forma em São Paulo.
Calças jeans, meias grossas, um par de tênis velho e apertado,
cachecol em volta do pescoço, mas ele ainda me penetrava.
Andava pela paulista, em direção a Vila Madalena, ponto comum e
destino inevitável de classe média, média alta, que oscila entre a
vontade de mudar o mundo, e o conforto do apartamento de dois ou três
quartos, e um de empregada. Entrementes, a noite não parecia
encaminhar a mais bela poesia de Chico Buarque, mas o mais “sujo”
conto de Loyola de Brandão.
Mas naquela noite, não saí. Voltei para as casa de meu pais, onde a
região oscila de forma diferente, entre a felicidade de comprar um
carro, uma TV de plasma em setenta vezes, de agregar um
nordestino à família a quem dará trabalho e assim fará
parte do progresso e da erradicação da miséria; e o hino de todo
escravinho feliz “eu só quero é ser feliz, andar
tranquilamente na favela em que eu nasci, e poder me orgulhar,
e ter a consciência que o pobre tem seu lugar.
A única coisa que queria naquela noite, aparentemente, era chegar em
casa, comer algo – sem fome -, olhar algo na internet, ver um filme
qualquer, ler um texto de dois mil anos atrás, e dormir mal, o que
costumeiramente fazia, lamentando os males do mundo. Ainda olhei para
o teto durante um bom tempo – escutei alguma coisa andar pelo
assoalho, pode ser um rato? -. Meu corpo morto, e o pior de tudo, a
sensação de ser um estorvo, um erro, torto, ou simplesmente um
babaca entre a casa dos pais e estadias nas casas de
amigos.
Naturalmente, isto me assustava. E como um bom
aprendiz de junkie, me “entreguei à vida”, sob um dos mais
odiosos clichês: “viver intensamente”. Só que “viver
intensamente”, inevitavelmente, o torna escravo de sua própria
liberdade, de sua própria solidão. Que estupidez! - Não que eu me
arrependa, ou não, de qualquer forma isso seria mais um clichê, e
daqui pro final, tentarei parar de soltá-los.
Quanto eu,
não espalhei por aí? Quanto boca, não enfiei na minha – sem se
importar de onde vinha-?
Quanta boceta, não lambi, enquanto mandava a sociedade - e seja lá
que porra for chamada esse emaranhado de zumbis, montante de carne e
ossos ambulante – para a casa do caralho?
Sei lá, eu queria
mesmo era um apartamento, ou não. Tá tudo tão frágil, cuidadoso,
ruidoso, tudo meio mais ou menos, não grita nem cala.
Houve um tempo, talvez quando também acreditava que ser humano
significava alguma coisa - essa porra toda: andar, falar, pensar,
amar, sofrer -, em que o choro de uma criança, assim como o sorriso,
me impressionava, comovia. Hoje, quando penso na possibilidade de ter
uma, tenho arrepios, me desconcerto dos pés à cabeça, saio do eixo,
calo, é meu maior medo.
Neste tempo, as coisas parecem se apresentar de uma forma um pouco mais dura, crua. É a garantia de sua vida, em detrimento de outra,
ainda que seja você. A mim, por exemplo, seria duro demais, ainda
que conseguisse “manter as duas vidas”, saber que em algum lugar
no mundo poderia haver uma parte de mim, sobre a qual não teria o
mínimo controle.
Não sou muito adepto a ligações lógicas. Já que se calcular
a intensidade que levei a vida durante um tempo, o resultado poder
ser o meu maior medo.
Talvez seja este meu medo que, junto a uma boa dose de covardia,
fizesse com que recorresse a tudo que fosse possível para que
impedisse que meu medo viesse à tona. Escolhi a clandestinidade.
Assim, se meu medo andasse por aí, ou estivesse por ascender às
coisas terrenas, não me encontraria.
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