O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

A Multidão Domesticada

Hey, São Paulo,

Terra de arranha-céu,
A garoa rasga a carne,
É a torre de babel...

(Racionais)


Nada mais vago atualmente do que a expressão cultura de massa, nas ocasiões em que normalmente a empregamos. Na verdade, a falta de clareza não distingue mais falantes de ouvintes, todos perdidos no pântano do relativismo pós-moderno – ou pós-catástrofe (Kurz), conforme veremos. No final das contas, abusando da comparação, pode-se dizer que a incoerência se tornou tão natural e universal quanto a sua matriz histórica: o reino da mercadoria. No entanto, as palavras, a despeito de sua prostituição semântica, ainda guardam um sentido preciso, e histórico, que vale a pena rastrear.

O termo cultura de massa sinaliza o período em que a chamada atividade do espírito, ounecessidades espirituais, deparou-se, numa esquina da história (1), com o mercado, caindo assim, definitivamente, nas garras do capital. Na verdade, o contrário é mais plausível: o mercado esbarrou na cultura, e, sem dúvida, foi amor à primeira vista! Desse modo, a cultura, como toda mercadoria, não escapa de seu avesso inextrincável: o valor-de-troca. Aqui, normalmente, comete-se um equívoco. O traço distintivo mais importante da mercadoria, aparentemente, é o fato de destinar-se a um imenso mercado consumidor: os “expectadores”, a “massa”. Público indiferenciado, homogeneizado à força por uma colonização ideológica e desenfreada da vida subjetiva. Tal público existe, sim, e é imprescindível semelhante processo de reificação. Mas, também aqui, o fato mais importante é a alienação básica do âmbito produtivo.

Alguém poderia dizer: “É claro, como expectadores (de) formados, o povo deixa de ser produtor independente...”. Antes de qualquer coisa, é preciso saber que o “povo” nunca foi, a não ser de maneira relativa, um produtor autônomo de bens culturais (2). O fato é que a alienação do momento produtivo é o traço mais importante por uma razão muito simples: embora a “cultura” seja consumida em massa, invadindo, através da ideologia, os menores compartimentos inconscientes da cabeça das pessoas (moldando inclusive a personalidade e ocaráter de muitos), por trás disso há especialistas, monopólio de conhecimento, controle de grandes meios de comunicação (que são meios de produção), e aquilo que talvez constitua o fato mais importante: produtores que seguem à risca as demandas do mercado.

Como se vê, a expressão “cultura de massa” não encerra facilmente o sentido total da coisa,sobretudo pelo que sugere a palavra “massa”. Há um pressuposto histórico que precisa ser desenvolvido, para evitarmos contrabandos de toda espécie – como, por exemplo, dizer que a cultura de massa é popular, pois a mídia... “Dá o que o povo pede”, segundo as palavras do “culto” (e cretino) Pedro Bial. Aliás, este último é exemplo daqueles que dirigem e controlam o processo produtivo. O estrago perpetrado por sujeitinhos desta espécie, atingindo milhões de pessoas, como diria o provérbio, “não está no gibi!”.

O exemplo “produtivo” do cinema:

O cinema, hoje, constitui um dos maiores representantes da arte enquanto mantenedora dostatus quo de uma sociedade à deriva. (Como diz Eduardo Galeano: há mais naufrágios que tripulantes nesta barca). Muitas vezes, entretanto, o cinema é analisado como uma máquina de imagens, cujo fim se resume nisso, desprivilegiando o enfoque sobre a formação desta própria “máquina” enquanto meio de produção: seu surgimento e necessidade histórica.

Em sua própria formação o cinema já era baseado na divisão de funções, grau de importância e hierarquia, deixando claro o lugar dos patrões e de seus subalternos. As massas de expectadores narcotizados, e não o filme em si mesmo, é o verdadeiro “produto final” deste processo. Claro, não se trata, necessariamente, de impor como regra a direção coletiva de um filme – o que, entretanto, não deve ser descartado enquanto alternativa de produção. Mas deveríamos indagar se a ausência de uma direção coletiva, ou melhor de um novo direcionamento de produção para além da lógica comum, não seria uma das principais condições - hierarquia e profunda divisão do trabalho - para que o cinema exista como um dos principais meios de transferência de alienação, e, conseqüentemente, base da “cultura de massas”.

Diretor no topo, e produtor por cima: filmes apoiados com dinheiro público, não por renúncia fiscal, mas “leis de incentivo”. E, em outro caso, o produtor executivo(que pode ser o próprio diretor) ou apenas o patrocinador do filme: como no caso da lei rouanet, onde o dinheiro público é desviado para o setor privado, e o “artista” fica a mercê da empresa “patrocinadora”, embora, obviamente, seja refém também de sua própria incapacidade e imobilidade enquanto trabalhador. Exemplo disso é a torpeza da globo filmes: as bostas criadas por Wolf Maya, a “marca” Jô Soares, o “símbolo” Maria Bethânea, etc. Com toda a divisão do trabalho voltada para a produção de mercadorias (principalmente seu valor de troca), cria-se um ambiente em que a palavra "criação" só pode ser a expressão de um cinismo detestável ou uma triste ingenuidade.

Um cineasta conhecido conta um caso interessante: toda sua equipe é contratada. Não há um processo de conhecimento, pois ele mesmo já não acredita na possibilidade de reunir uma equipe que vise o trabalho, - não mais como meio, mas como fim em si e para si. Num dia de filmagem, em que se preparava para fazer uma bonita cena de futebol de várzea, o pessoal da técnica, antes mesmo de reunir os atores para a partida, começaram a desligar todos os fresneis, e guardar os equipamentos, pois... as horas de trabalho já estavam por ser excedidas. Óbvio: tudo que falamos até agora se encaminha para uma crítica também da exploração do trabalho, inevitavelmente. Mas, ao mesmo tempo, trata-se de trabalhadores que se levantam contra o filme, contra o processo de criação e experimentação estética, e contra um suposto “patrão”, que, na temática do filme em questão, por exemplo, pretendia falar, subliminarmente, a "favor" dos próprios trabalhadores. 

Nesse sentido, não se opunham ao diretor por conta da hierarquia, ou por acharem que estavam sendo explorados – embora estivessem de fato -, mas simplesmente por alienação. É aí que toda a dignidade do trabalhador vai por água abaixo, tornando-se, particularmente na produção artística, uma ferramenta de extorsão, devido à deseducação ideológica e o analfabetismo político de tais trabalhadores, no universo da mercadoria.

O exemplo mostra como a divisão do trabalho - sem a desculpa do processo criativo, quando, por exemplo, um ator não sabe o roteiro por intenção estética do próprio diretor - se estende à equipe cinematográfica, afunilando-se tanto, que não é incomum, num set de filmagem, a existência de técnicos que não sabem sequer o tema do filme que é produzido.

Uma questão de classe:

Mundo real, ou realities shows domésticos da burguesia cinematográfica?

Tamanha estrutura torna-se possível, também, porque as novas produtoras, mais ativas, são formadas pelas classes mais abastadas da sociedade. A maior parte – no Brasil e mais especificamente em São Paulo – são oriundas de duas das mais “expressivas” (do ponto de vista da mercadoria, claro!) escolas de cinema de São Paulo. Fato significativo é o valor pago por cada aluno nestas instituições: valores acima de mil reais. É um sonho tornarem-se objetos de fetiche, tais como aqueles que admiram. Mercadorias humanas. Mescla-se o modo de produção cinematográfico hollywoodiano, e o trejeito anárquico do cinema francês. Porém, ambas as influências se anulam, compondo um quadro bizzarro, movimento estranho, quase esquizofrênico.

A estrutura de exploração e dominação de classe de suas próprias famílias se transfere para o cinema, assaltando e monopolizando os meios de produção, para efetivar suas perversidades patronais sobre aqueles que julgam inferiores, mas, em todo caso, “importantes para o filme”. O maior sonho de uma produtora, advinda de uma destas grandes escolas, é ter uma equipe - não para o filme, mas para que possam, efetivamente, exercer comando, dominar como patrões. Reproduzem-se relações de classe bem datadas historicamente, mas disfarçadas por trás de um verniz modernizante. Tornam-se inalcançáveis, gritam, sobrepujam massas e massas de trabalhadores, e saem ilesos... Saltando para fora de seu círculo familiar habitual – onde a figura paterna é quem manda - e do marasmo autoritário do universo doméstico em que subjugam desde o jardineiro, passando pela empregada doméstica nordestina, até o tio pobre a quem dão “assistência”. Rédea solta, como se vê, para o tráfico de influências e relações de favor.

A produção atual – e nos é permitido generalizar, já que as exceções provam a regra -, sobretudo no Brasil, transfere as estruturas de dominação de classe e alienação das massas para o próprio processo fílmico, que, por sua vez, retorna para o público numa espécie de ciclo espiritual incontornável, depositando, mais uma e infinitas vezes, toda esta mórbida aridez no inconsciente das “massas”.
O Estado corrobora a situação com seus editais, direcionados para as panelas cinematográficas – isto é: às classes mais abastadas, aos estudantes de cinema de Higienópolis, atores consagrados, filhos de banqueiros, etc. -, cinco iluminados de Pernambuco, outros seis ou sete de São Paulo, alguns do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, e fim de papo! Todos, com algum bom dinheiro público em mãos produzem aquilo que Jabor, acertando no alvo, caracterizou como:

“... essa merda que está contaminando o cinema brasileiro e dividindo-o em blockbusters filhos da última safra americana e em filmes que jamais serão vistos, com cineastas se enganando em pequenos festivais, na ilusão digital de que serão vistos para sempre na web - a nova forma de viver numa sociedade sem carne nem osso. Na maioria dos filmes americanos de hoje, os produtores nem se preocupam mais com o babaca do diretor e não deixam sobrar nem um leve resquício de arte invadir seus diagramas para faturar. O negócio é que minha geração sonhava com respostas para o mundo e não pode se contentar com mixarias, pequenos tweets, piadinhas inúteis e filminhos sem talento, só porque estão na rede e são os arautos de um novo tempo de irrelevâncias.”  (3)


O que devemos esperar? Um novo Glauber Rocha, circulando nestas classes? É este o quadro da atual produção cultural.
                    
Perdeu-se de vista o sentido – sempre frágil - da cultura brasileira. Todos enfiados e locupletados no mito da globalização. Imagens que acabaram, se desgastaram, mas perambulam mortas no interior da consciência das pessoas, e, por extensão, na tela de seus visores mágicos. Artistas que não passam de vermes dominantes, pseduo-sensiveis-pós-modernos, que querem ser iguais aos seus próprios objetos de fetiche. A prostituição não precisa ser carnal. Trata-se, antes, do espírito e da saúde mental das pessoas.

Efeitos Catastróficos:

Devemos reconhecer, agora, os efeitos concretos ou empíricos, deste estado de coisas num nível mais geral. É praticamente impossível que os indivíduos atinjam um grau de passividade maior que o atual, enquanto células idiotizadas do processo produtivo, a não ser que perdessem até mesmo a existência física. De fato, para muitos a existência física tornou-se uma fonte incalculável de sofrimentos. Além disso, poderíamos catalogar, principalmente no Brasil, a variedade de modos diferentes de paralisia, pelos quais as pessoas literalmente vegetam. Isso ocorre, por exemplo, naquilo que poderíamos chamar o “ventre ideológico” da sociedade atual: a internet. Gestante de ideologias altamente suspeitas.

Claro que o processo de anomia pode intensificar-se a ponto de romper o tecido social, diluindo os vínculos mais elementares de sociabilidade, como sugere a epígrafe do texto, ao referir-se a São Paulo como uma Torre de Babel. Na história bíblica, sabe-se que esta é atorre do desentendimento, a ausência total de comunicação devido à quantidade infinita de línguas faladas por seus habitantes. Cada indivíduo, um país!

A grande questão, conforme nos ensinou Debord, é que os despojos ideológicos não permitem mais identificar a fronteira entre o mundo real e as ficções dos realities shows, das telenovelas, ou, por que não, para não perder a oportunidade, as ficções da própria academia. Podemos ainda mobilizar outros aspectos e conhecimentos da atualidade, como, por exemplo, o urbanismo.

Os grandes centros urbanos dão mostras diárias do nível de vida das “massas”, desde as menores relações interpessoais, passando pelo acúmulo catártico de automóveis, até a especulação imobiliária cega, em que a construção de imensas favelas determina-se pelos caprichos e flutuações do mercado. Tamanha catástrofe não poderia prolongar-se sem o controle exercido pela propaganda e pelos grandes meios de comunicação. A imagem de macro-favelas exibidas diariamente nos telejornais não se diferencia em nada dos casos amorosos da protagonista da novela das oito. É preciso prevenir novamente: os agentes que atuam na perpetuação cega deste modo de produção não são fantasmas, existem, e foram parcialmente identificados.  

De fato, não é muito sensato supor que a situação atual por si só fará com que as pessoas reajam. Dos textos do alemão Robert Kurz pode-se retirar um consolo paradoxal nesse sentido. Mas, como não há consolo onde existem “paradoxos” (isto é: contradições que desencadeiam processos de crise), e como, por outro lado, consolo é sinônimo de enfraquecimento de consciência nos tempos que correm – e isto nós não queremos -, cabe lembrar, aqui, o desconsolo de Kurz. Segundo o alemão, o capitalismo dá os seus últimos suspiros; seu fim estaria mais próximo do que se imagina. Ora, como isso é possível no auge de sua auto-promoção? Ou, por outras palavras: se nada aconteceu, como pode findar-se? Justamente... mas, que o leitor tire suas próprias conclusões.


Notas:

1 – Termo sugerido pelo título do livro de Valério Arcary, “As Esquinas Perigosas da História”, em que o autor enfatiza, em linhas gerais, a variação de ritmo dos processos históricos, sob a força propulsora e irreprimível da luta de classes.

2 – “No capitalismo não existe classe que, por sua posição produtiva, esteja voltada para a criação da cultura. (...) Da mesma maneira que a independência dos homens das preocupações de sustento imediato e a livre utilização de suas próprias forças como fim em si são as condições sociais preliminares à cultura, assim, tudo o que a cultura produz pode ter valor cultural autêntico só quando tem valor para si. No momento em que assume o caráter de mercadoria e entra no sistema de relações que o transforma em mercadoria, cessa sua autonomia, e a possibilidade da cultura”. (Georg Lukács, “Nova e Velha Cultura”).

3 – “Queremos ser modernos ou eternos?”, Arnaldo Jabor, O Estado de São Paulo, 12 de Julho de 2011.



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