O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Queremos ser modernos ou eternos?


Mais uma em cheio, do nosso querido bipolar Arnaldo Jabor.


Ando com fome de "universais". A frase é ridícula, mas ando mesmo. Não estou aguentando mais a celebração dos fragmentos, das irrelevâncias como portas da percepção para novas visões de mundo. Quero "sínteses", sim, caminhos mais claros a seguir sobre o Brasil como nos bons e velhos tempos. Ouço neste momento jovens filhos da web, os hackers da arte rindo de mim. Danem-se, tuiteiros... Por isso, lembro a frase de Drummond: "Cansei de ser moderno, quero ser eterno...". ("frase manjada", dirão meus inimigos...); tudo bem, mas eu quero o manjado, o óbvio, eu quero a volta do tempo em que alguma "síntese", mesmo ilusória, nos era oferecida. No cinema então, não aguento mais ver a gostosa adesão de tantos filmes brasileiros a fórmulas cada vez mais escrotas do cinema americano atual, feito de 3D, porrada, vampiros, comediazinhas românticas de bosta, tudo sempre com orquestras tocando plágios de Stravinski e outros (quem diria, hein? Beethoven só serve hoje para musicar os Transformers).

Falo isso porque, ontem, eu revi uma obra-prima: Written in the Wind (Palavras ao Vento) do Douglas Sirk, um filme de 1955 com Rock Hudson, Lauren Bacall e Dorothy Malone. Genial. E aí, dá para ver como os filmes "comerciais" antigos eram muito melhores que essas bostas de hoje, pelas quais o público pós-utópico baba... Palavras ao Vento foi feito com o exclusivo desejo de faturar uma grana, como Cantando na Chuva ou Sunset Boulevard e tantas obras geniais.

Hoje é essa merda que está contaminando o cinema brasileiro e dividindo-o em blockbusters filhos da última safra americana e em filmes que jamais serão vistos, com cineastas se enganando em pequenos festivais, na ilusão digital de que serão vistos para sempre na web - a nova forma de viver numa sociedade sem carne nem osso. Na maioria dos filmes americanos de hoje, os produtores nem se preocupam mais com o babaca do diretor e não deixam sobrar nem um leve resquício de arte invadir seus diagramas para faturar. O negócio é que minha geração sonhava com respostas para o mundo e não pode se contentar com mixarias, pequenos tweets, piadinhas inúteis e filminhos sem talento, só porque estão na rede e são os arautos de um novo tempo de irrelevâncias.

Alguns intelectuais, com pânico de envelhecer, estão zelosamente garimpando besteiras e "faits divers" da cultura internacional pop, na esperança secreta de que elas encerrem uma "grande narrativa", uma revelação ainda oculta, ainda se formando de fragmentos. Talvez, talvez.... mas tenho saudades, sim, da esperança de sentido.

Por isso, me lembrei do Cinema Novo e de Glauber Rocha, que hoje não é sequer entendido por "descoladinhos" que acham a ignorância uma nova forma de ver o mundo. Lembro-me da primeira vez que vi Deus e o Diabo na Terra do Sol, que fascinou até Buñuel e Visconti...

Às oito e meia da noite de 16 de marco de 1964, eu não sabia que minha vida ia mudar. Às nove horas, ia passar pela primeira vez o filme de Glauber. E estava ali no cinema Ópera, em Botafogo. A esquerda estava toda eufórica achando que o socialismo ia vencer; isso, a 15 dias de sua grande derrota, com o golpe de 64. Todos nos achávamos o "sal da terra" que venceria em breve nossa revolução imaginaria. Claro que fomos esbofeteados pela verdade de uma sociedade reacionária que virou nosso sonho em pesadelo por 21 anos.

No entanto, houve sim uma revolução vencida ali, no cinema. Na época, as manifestações culturais importantes mexiam em nossas vidas. A cultura mudava qualitativamente e não era apenas esse labirinto de informações inúteis de hoje. Deus e o Diabo ficou e deu filhos como o tropicalismo, por exemplo, e dezenas de obras nossas no cinema.

Aí, o filme começou. Um plano aéreo muito alto do sertão de Cocorobó, com musica de Villa-Lobos. Corte súbito para um superclose do olho morto de boi, roído de sol. Nossos olhos eram feridos por imagens absolutamente novas. Não era apenas um bom filme que víamos; era um país que nascia à nossa frente. Era uma realidade já lida no Os Sertões, em Graciliano, em Rosa, mas que, no olho, era a primeira vez.

Nosso vocabulário visual foi aprofundado nessa época: a lama, a fome, a favela, os presépios de miséria, a estupidez da classe média.

A realidade nos via. Ela nos incluía, nós éramos descobertos por este mundo de secura e violência que aparecia na tela. A partir daquela noite, nós éramos personagens também de um Brasil que não estava "fora" de nós. Assim como em Os Sertões, os miseráveis eram colocados pela primeira vez como sujeitos em nossa história, em Deus e o Diabo o herói era um pobre miserável e o matador não era um óbvio vilão. Bons e maus andavam num deserto metafísico, shakespeariano, em plena caatinga. Quem partira para fazer filmes neorrealistas foi atingido pelo raio de um cinema épico. As personagens se contorciam numa danação de heróis e vítimas em uma complexidade que não conhecíamos ainda. Nem sabíamos que essa ignorância seria a causa principal de nosso fracasso de 1.º de abril de 64.

O Brasil, que analisávamos com linearidade óbvia duas horas antes, tinha virado um vórtice, um redemoinho com Deus e o Diabo misturados. Glauber fez a primeira crítica importante do pensamento fracassado da velha esquerda e por isso foi massacrado mais tarde, quando imaginou, desesperado, uma reviravolta progressista de alguns militares ligados a Golbery.

Depois, veio 1964, veio 68, veio a luta suicida. Três anos depois em Terra em Transe ele ataca a burrice dessas mesmas esquerdas. Passaram muitas ilusões, mas Deus e o Diabo não era ilusão. Aquela ficção era a realidade. Sérgio Augusto na época, lembro-me, disse que precisávamos de algo que trouxesse de volta a ideia de "grandeza". Hoje, precisamos disso mesmo: de "grandeza" e de um novo filme como Deus e o Diabo na Terra do Sol. Aluguem em vídeo e vejam o que deveria ser o futuro de nosso cinema. 


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