Uma crônica sem nenhuma relação com a realidade
Não
é, nem de perto, tentativa minha proliferar qualquer tipo de compaixão,
compadecimento - ainda que se assim fizesse, seria inútil, até porque
não pretendo semear a morte, tentando colher um pouco de vida - entre
mim e aqueles que estejam lendo isso agora. Já aviso antes,
protegendo-me também dos que me chamariam de niilista, esquerdista de
merda, metido a intelectual, diletante, vagabundo e etc.
De
qualquer forma, nessa semana tive uma sensação muito grande que iria
morrer - muito provavelmente por problemas emocionais, nervosos, que
aumentaram durante dias meus batimentos cardíacos e me traziam uma
sensação de falta de ar muito grande, também provavelmente fisicamente
inexistente, contudo o corpo não vive sem a mente. Bem, isso não é uma
consulta.
O
fato é que mesmo sendo uma doença burguesa, ou ainda mais um mimo
pequeno burguês - como me acusariam até os mais próximos companheiros -
aconteceu que isso me aproximou de forma mais crua das relações humanas
de nosso tempo, como sabemos cruéis, desgastadas e obviamente
desumanas. Me fez pensar, sobretudo, no cinema.
Eduardo Galeano descreve em curtos textos dois tipos diferentes de experiências com a morte:
O
primeiro conta que "nem dez pessoas iam aos últimos recitais do poeta
espanhol Blas de Otero. Mas quando Blas de Otero morreu, muitos milhares
de pessoas foram à homenagem fúnebre feita numa arena de touros em
Madri. Ele não ficou sabendo"
O
segundo "foi na selva, na Amazônia equatoriana. Os índios shuar estavam
chorando a avó moribunda. Choravam sentados, na margem de sua agonia.
Uma pessoa, vinda de outros mundos, perguntou:
– Por que choram na frente dela, se ela ainda está viva?
E os que choravam responderam:
– Para que ela saiba que gostamos muito dela."
Todo
este emaranhado de ideias aparentemente confusas e desconexas, me fez
lembrar dos filmes do Coutinho e de algumas coisas que Schopenhauer
escreveu sobre o sujeito e a vontade.
O
filmes do Coutinho nunca precisaram de uma epígrafe definidora de sua
poética-política, nem precisou voz off nenhuma dizer que seu filme era
humanista, ou ainda sim não necessitou de um título escrachadamente
marxista. E mesmo assim, mostrou melhor que ninguém as entranhas dos
"comuns". Aqueles que não tem página na revista.
Muito
semelhante, inclusive, a fase pré-pós-moderna genial de Caetano Veloso,
cuja a trajetória de ambos se cruza, não necessariamente por
aproximação estética, por uma única razão: a celebração da vida, ainda
que incubada num corpo-cabra "marcado para morrer". Passeia, pisa, sobre
o invólucro da desumanidade.
Schopenhauer,
que aqui resumo brutal e deselegantemente, em suas reflexões sobre a
"vontade", diria que o homem é guiado por uma vontade, que não visa o
outro, mas de forma egoísta e cruel visa seu próprio desejo. Contudo há
dentro deste mesmo homem uma compaixão, comum em todos os homens, que se
encontrada, de certa forma romperia com esta ditadura do eu, gerando
"mundos no mundo" - parafraseando Caetano.
Ainda
sim, não parece claro a aproximação de ambos. Mas se nos ativermos ao
método de cada um, veremos que enquanto Schopenhauer constata essa
compaixão possível, num sujeito aparentemente cruel e mesquinho, para
Coutinho, como ele mesmo diz, o que interessa é a superfície do sujeito é
próprio invólucro, mas que de tão cavucado, acaba por ser uma
tentativa, senão igual, maior que a do filósofo, de extirpar o tumor de
uma vez por todas, não só dos "outros", mas de "nós", que acabam por ser
a mesma coisa, e que não ao mesmo tempo.
Só
que trata-se de um revestimento moribundo que incuba a vida, que
despotencializa o verdadeiro sentido da beleza, da potencialidade
humana.
No
mais, que sentido faz um filme, "homenagem" ao poeta, ou ao seu zé,
depois de morto? Senão, por muitas vezes, a auto-promoção.
Aliás, homenagear não: "celebrar-criticar-querer- mudar-suas-nossas-vidas".
Quando
usamos da arte para celebrar outra vida, única e simplesmente, porque
outro é extensão do "eu", no final das contas, estamos pensando apenas
no "eu". Dificil é celebrar a vida do Eu que é Outro e por ser outro
quero que ele viva - mais uma vez caetano, em uma de suas mais belas
canções e burramente tornada menor:" Existe alguém em nós.Em muitos
dentre nós. Esse alguém. Que brilha mais do que. Milhões de sóis. E que a
escuridão. Conhece também[...]"
Esse
é o nosso papel, celebrar os vivos, extrair de nós e dos outros o
tumor-terror holocáustisco, e junto dele desincubar a vida abraçado pela
embalagem moribunda.
Romper com o invólucro dos mortos que perambula por entre nós.
Começo
e termino este texto, muito provavelmente dentro de horas digitalizado,
com uma caneta que existe, um papel que existe, e um medo que também
existe.
Aos meus amigos,
SP, Janeiro 2011
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