O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

O vírus incubado da vida sob o invólucro dos mortos – Viver à vida, ou ficar mais um pouco

Uma crônica sem nenhuma relação com a realidade


Não é, nem de perto, tentativa minha proliferar qualquer tipo de compaixão, compadecimento - ainda que se assim fizesse, seria inútil, até porque não pretendo semear a morte, tentando colher um pouco de vida - entre mim e aqueles que estejam lendo isso agora. Já aviso antes, protegendo-me também dos que me chamariam de niilista, esquerdista de merda, metido a intelectual, diletante, vagabundo e etc.

De qualquer forma, nessa semana tive uma sensação muito grande que iria morrer - muito provavelmente por problemas emocionais, nervosos, que aumentaram durante dias meus batimentos cardíacos e me traziam uma sensação de falta de ar muito grande, também provavelmente fisicamente inexistente, contudo o corpo não vive sem a mente. Bem, isso não é uma consulta.

O fato é que mesmo sendo uma doença burguesa, ou ainda mais um mimo pequeno burguês - como me acusariam até os mais próximos companheiros -  aconteceu que isso me aproximou de forma mais crua das relações humanas de nosso tempo, como sabemos cruéis, desgastadas e obviamente desumanas. Me fez pensar, sobretudo, no cinema.

Eduardo Galeano descreve em curtos textos dois tipos diferentes de experiências com a morte:

O primeiro conta que "nem dez pessoas iam aos últimos recitais do poeta espanhol Blas de Otero. Mas quando Blas de Otero morreu, muitos milhares de pessoas foram à homenagem fúnebre feita numa arena de touros em Madri. Ele não ficou sabendo"

O segundo "foi na selva, na Amazônia equatoriana. Os índios shuar estavam chorando a avó moribunda. Choravam sentados, na margem de sua agonia. Uma pessoa, vinda de outros mundos, perguntou:

– Por que choram na frente dela, se ela ainda está viva?
E os que choravam responderam:
– Para que ela saiba que gostamos muito dela."

Todo este emaranhado de ideias aparentemente confusas e desconexas, me fez lembrar dos filmes do Coutinho e de algumas coisas que Schopenhauer  escreveu sobre o sujeito e a vontade.

O filmes do Coutinho nunca precisaram de uma epígrafe definidora de sua poética-política, nem precisou voz off nenhuma dizer que seu filme era humanista, ou ainda sim não necessitou de um título escrachadamente marxista. E mesmo assim, mostrou melhor que ninguém as entranhas dos "comuns". Aqueles que não tem página na revista.

Muito semelhante, inclusive, a fase pré-pós-moderna genial de Caetano Veloso, cuja a trajetória de ambos se cruza, não necessariamente por aproximação estética, por uma única razão: a celebração da vida, ainda que incubada num corpo-cabra "marcado para morrer". Passeia, pisa, sobre o invólucro da desumanidade.

Schopenhauer, que aqui resumo brutal e deselegantemente, em suas reflexões sobre a "vontade", diria que o homem é guiado por uma vontade, que não visa o outro, mas de forma egoísta e cruel visa seu próprio desejo. Contudo há dentro deste mesmo homem uma compaixão, comum em todos os homens, que se encontrada, de certa forma romperia com esta ditadura do eu, gerando "mundos no mundo" - parafraseando Caetano.

Ainda sim, não parece claro a aproximação de ambos. Mas se nos ativermos ao método de cada um, veremos que enquanto Schopenhauer constata essa compaixão possível, num sujeito aparentemente cruel e mesquinho, para Coutinho, como ele mesmo diz, o que interessa é a superfície do sujeito é próprio invólucro, mas que de tão cavucado, acaba por ser uma tentativa, senão igual, maior que a do filósofo, de extirpar o tumor de uma vez por todas, não só dos "outros", mas de "nós", que acabam por ser a mesma coisa, e que não ao mesmo tempo.

Só que trata-se de um revestimento moribundo que incuba a vida, que despotencializa o verdadeiro sentido da beleza, da potencialidade humana.

No mais, que sentido faz um filme, "homenagem" ao poeta, ou ao seu zé, depois de morto? Senão, por muitas vezes, a auto-promoção.

Aliás, homenagear não: "celebrar-criticar-querer-mudar-suas-nossas-vidas".

Quando usamos da arte para celebrar outra vida, única e simplesmente, porque outro é extensão do "eu", no final das contas, estamos pensando apenas no "eu". Dificil é celebrar a vida do Eu que é Outro e por ser outro quero que ele viva - mais uma vez caetano, em uma de suas mais belas canções e burramente tornada menor:" Existe alguém em nós.Em muitos dentre nós. Esse alguém. Que brilha mais do que. Milhões de sóis. E que a escuridão. Conhece também[...]"

Esse é o nosso papel, celebrar os vivos, extrair de nós e dos outros o tumor-terror holocáustisco, e junto dele desincubar a vida abraçado pela embalagem moribunda.
Romper com o invólucro dos mortos que perambula por entre nós.

Começo e termino este texto, muito provavelmente dentro de horas digitalizado, com uma caneta que existe, um papel que existe, e um medo que também existe.
                                                                                                                                                                 
   Aos meus amigos,
                                                                                 
                                                                                                                                                                      Eu, ou o Outro.

SP, Janeiro 2011

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