"Na sua recusa em aceitar como finais as limitações impostas à liberdade
e à felicidade pelo princípio de realidade, na sua recusa em
esquecer o que pode ser, reside a função crítica da fantasia."
(EROS E CIVILIZAÇÃO, MARCUSE, ed 1995, Pag 138)
Em Freud, o que Marcuse chama de “forças mentais” trabalham como uma recusa do principio de realidade,, que se encaminha ao inconsciente, e que, também, são operadas pelo próprio inconsciente. De alguma forma, esse novo modo operante em relação ao principio de realidade, trabalha no campo da própria censura, aquela que o “real” nega, e o sujeito só tem acesso a partir da liberação das energias do lugar que dá abrigo ao material censurado, o inconsciente. Esse movimento apresenta uma recusa, ainda que inconsciente no sujeito – levando em conta toda sua estrutura social, determinações socioculturais, e consequentemente moldantes de seu aparelho psíquico -, sobre a própria realidade qual se encontra.
A capacidade de imaginar do sujeito, ou o movimento que esta capacidade pode criar, possibilita uma espécie de reconciliação do indivíduo com seu eu-primitivo, ou ainda com um momento em que sua mente não era determinada pelo principio da realidade, mas sim pelo principio do prazer . Em outras palavras: a fantasia.
A fantasia - ou imaginação - “desempenha uma função das mais decisivas na estrutura mental total: liga as mais profundas camadas do inconsciente aos mais elevados produtos da consciência (arte), o sonho com a realidade; preserva os arquétipos do gênero, as perpétuas, mais reprimidas ideias da memória coletiva e individual, as imagens tabus da liberdade”.(IDEM, MARCUSE, ed 1995, Pag 132)
Segundo Marcuse, a fantasia, quando Freud se debruça no tema, já era entendida como processo necessário, importante e autônomo na atividade mental, logo, o que faz que o tema seja desenvolvido de forma bastante particular, em Freud, é como se daria (gênese e conexão) - fantasia e principio do prazer:
“Enquanto o ego era anteriormente guiado e conduzido pela totalidade da sua energia mental, agora é orientado unicamente por aquela parte que se conforma ao princípio de realidade. Somente essa parte pode fixar os objetivos, normas e valores do ego; como razão, torna-se o repositório único do julgamento, verdade, racionalidade; decide o que é útil e inútil, bom e mau.* A fantasia, como processo mental separado, nasce e, simultaneamente, é abandonada pela organização do ego do prazer no ego da realidade. A razão prevalece; torna-se desagradável, mas útil e correta; a fantasia permanece agradável, mas torna-se inútil, inverídica um mero jogo, divagação.”(Ibid., MARCUSE, ed 1995, Pag 133)
Nossa apreensão mental estaria, então, determinada, pelo principio de realidade. A forma como que nos “apropriamos”, compreendemos a realidade, é desagradável, mas real e útil. A fantasia quando se separa do principio do prazer e é contrastada ao principio de realidade perdendo sua utilidade, como descrito por Marcuse no parágrafo acima.
Isto pode ser explicado pelo processo que nos torna indivíduos, sujeitos, ou de certo modo, quando crescemos (civilização). A fantasia mantém a sub-história do sujeito, ou seja, tudo aquilo que viria antes de nos constituirmos enquanto seres sociais, religiosos, políticos, culturais. Quando outrora não se tratava do principio da realidade, mas o principio do prazer. Nossos desejos, necessidades estariam ligados a essa busca de felicidade, comum ao que é humano, mas de forma totalmente desnudada, e muitos menos “recalcada”.
“A imaginação visiona a reconciliação do indivíduo com o todo, do desejo com a realização, da felicidade com a razão. Conquanto essa harmonia tenha sido removida para a utopia pelo princípio de realidade estabelecido, a fantasia insiste em que deve e pode tornar-se real, em que o conhecimento está subentendido na ilusão.”³(Ibid.., MARCUSE, ed 1995, Pag 134)
A fantasia – ou imaginação, tanto no indivíduo, quanto no coletivo, nas massas - funciona como um “protesto” contra a realidade que se impõe contra este próprio coletivo. A arte tem como instrumento central de seu movimento, a fantasia, que no seu movimento de libertação de pulsões reprimidas recria(ou cria), monta, subjetividades que acabam por se objetivar frente ao mundo “real”. Ou seja, a arte também age como esse protesto contra essa realidade, e acaba por criar, ou apenas sugerir, objetivar, sua própria realidade.
“[...]Como processo mental independente e fundamental, a fantasia tem um valor próprio e autêntico, que corresponde a uma experiência própria nomeadamente, a de superar a antagônica realidade humana. ”*(Ibid..., MARCUSE, ed 1995, Pag 134)
A arte como caminho do reprimido de volta aos seus desejos; de suas possíveis realizações; da reconciliação de subjetivo e objetivo, felicidade e mundo material; ela – a arte - estaria em constante oposição ao status de realidade, que, obviamente nega o direito do individuo reprimido de, sequer, repensar seus desejos, a não ser no campo mais e ilusório e inútil de como está colocada a fantasia. Então, como a arte traria um conteúdo crítico, sem que passada a “contemplação” de seu objeto (filme, livro, música, dança, teatro, etc), o sujeito, após acompanhar, por exemplo, a trajetória de um herói - compartilhar de suas derrotas, vitórias, guinadas, fracassos -, voltasse à realidade após tal efeito catártico? O que, concomitantemente, produziria um novo estágio repressão, contrário a sua libertação. Neste caso, a fantasia estaria então a serviço da própria mantença da realidade, ou seja, prover algumas horas de suspensão do mundo realmente opressor, causar a sensação de libertação, para então reafirmar o próprio mundo externo. Novamente, a arte, como no caso do aparelho mental agora regido pelo principio da realidade e não do prazer, colocaria a fantasia num estágio de agradável e inútil ilusão – em oposição à razão, ou principio de realidade.
Haveríamos de trabalhar num outro registro, que não apenas suspendesse momentaneamente o sujeito, mas que “resgatasse” a sua própria possibilidade de sonhar, fantasiar, imaginar, tendo em vista não mais a realização de seus desejos como algo absurdo.
“[...]A arte somente sobrevive na medida em que se anula, na medida em que poupa a sua substância mediante a negação de sua forma tradicional e assim se negando à reconciliação; quer dizer, na medida em que se torna surrealista e atonal. Caso contrário, a arte compartilha do destino de toda a comunicação humana autêntica: extingue-os.[...]”(Ibid...., MARCUSE, ed 1995, Pag 139)
A fantasia, então, não poderia ser ditada, escravizada em seu próprio método, que, ironicamente, serviria para libertá-la no sujeito:
“Reduzir a imaginação à escravidão, mesmo que estivesse em jogo aquilo a que grosseiramente se chama felicidade, é privarmo-nos de tudo o que encontramos, no nosso íntimo mais profundo,de justiça suprema. Somente a imaginação me diz o que pode ser.” (André Breton, Les Manifestes du Surréalisme; Paris: Editions du Sagitaire, 1946), pág. 15”)
A frase de Breton parece o caminho agora proposto por Marcuse, que diferente ao como a fantasia opera no aparelho mental, ou seja, na reconciliação de indivíduo e todo, a arte deveria romper com qualquer possibilidade reconciliação, de modo que o contraste entre arte e realidade se tornasse gritante o bastante, a ponto de que o indivíduo se reencontrasse com o mais primitivo de sua história, ou apenas voltasse a imaginar, fantasiar, criar uma nova realidade. A arte construiria, sem os ditames do mundo real, a própria possibilidade de indivíduo e todo, contudo sem a ideia de conciliação, e não mais como utopia, na forma imposta pelo principio de realidade levou a se compreender a condição de homem e mundo.
A arte então deveria trabalhar a fantasia, reanimar o sujeito que imagina, elabora, como atividade não apartada da vida. Em outras palavras que não distanciasse a arte, o prazer, dos objetivos externos à vida do sujeito, como uma mera suspensão da realidade:
“A separação entre o útil e o necessário do belo e da fruição constitui o início de um desenvolvimento que, por um lado, abre a perspectiva para o materialismo da práxis burguesa e, por outro lado, para o enquadramento da felicidade e do espírito num plano à parte da “cultura” (MARCUSE, 1997, p.90)
Se analisarmos o argumento sobre a sociedade, verificaremos que para burguesia o conceito se afastará cada vez mais da noção de utilidade, constituindo-se em um território da satisfação e do prazer. De certo modo, a burguesia estaria renunciando à possibilidade de todos viverem e satisfazerem suas necessidades cotidianas, por isso, estaria sinalizando para a possibilidade ideal de satisfação e realização da felicidade em esfera superior da existência. “A origem de tal proposição já se encontraria na antiga Grécia onde a arte, a ciência e o prazer encontravam-se apartados da vida cotidiana e dos objetivos exteriores da existência, só que naquela sociedade as esferas superiores da existência eram determinadas apenas para um grupo seleto da sociedade”¹
Para Marcuse, assim como para Freud, a fantasia daria origem a uma imagem que com o advento da civilização, seria “jogada” - ou transferida - para o inconsciente como mera fantasia, inútil. A diferença entre os dois pensadores é que para Freud esse processo não poderia ser invertido. Tentar fazer o que chegaram a propor os surrealistas, de que essa imagem formada pela fantasia, de algum modo, substituísse a realidade era um retrocesso para Freud. Não passaria de uma grande utopia:
“Na teoria de Freud a liberdade contra a repressão é uma questão do inconsciente, do passado sub-histórico e até sub-humano, dos processos biológicos e mentais primordiais; por consequência, a ideia de um princípio de realidade não-repressivo é uma questão de retrocesso”
Para Marcuse a arte deveria “resignificar” a utopia:
“Se a construção de um desenvolvimento instintivo não-repressivo se orientar, não pelo passado sub-histórico, mas pelo presente histórico e a civilização madura, a própria noção de utopia perde seu significado”
A utopia deixaria de existir na medida em que o caminho até ela se baseia não pela oposição àquilo que estanca suas possibilidades de “vir à tona”, mas na sua própria lógica de negação histórica à utopia.
A utopia deixaria de existir na medida em que o caminho até ela se baseia não pela oposição àquilo que estanca suas possibilidades de “vir à tona”, mas na sua própria lógica de negação histórica à utopia.
O capitalismo, como sabemos, se baseia, sobretudo, na disputa de mercado, a competição, exploração de trabalho, extração de mais-valia, etc. O que faz com que a própria arte tenha seu “valor universal” subordinado às relações sociais dominantes. "É neste contexto, que o conceito de cultura, contendo a noção de civilização, será substituído por uma noção de cultura que remeteria à separação entre o mundo espiritual e a realidade. A imagem produzida pela fantasia – a própria cultura - aparecerá, a partir daí, como um falso universal. Enfim o mundo espiritual seria posto contra o mundo real. "²
Com essa separação, aquilo – neste caso a fantasia – que é diferente ao principio de realidade sendo colocado como sem finalidade, perderia totalmente seu diálogo com o mundo “real”.
“(...) a arte por si nunca poderia cumprir essa transformação, podendo, entretanto, liberar a percepção e a sensibilidade necessitadas para a transformação. E, uma vez a mudança social houvesse ocorrido, a arte, forma da imaginação, poderia guiar a construção da nova sociedade. E à medida que os valores estéticos são valores não agressivos por excelência, a arte como tecnologia e como técnica também viria a implicar a emergência de uma nova racionalidade na construção de uma sociedade livre, isto é, a emergência de novos mundos e novas metas do próprio progresso técnico” (ibidem, p. 251)
***
Breve nota sobre o trabalho artístico em oposição à realidade e a “colonização do imaginário”
Apesar do crescimento cada vez maior da ideia de pluralidade, incentivada pelo esvaziamento político, e arte puramente formal, ecleticismo, há um número considerável de artistas da esquerda, que visam a arte não mais como um mero instrumento de suspensão da realidade, mas algo que pode trabalhar a comunicação entre as condições reais e os horizontes utópicos.
São exemplos disso, por exemplo na cidade de São Paulo, os grupos de teatro, que além das próprias peças, intervenções, ações, participam ativamente do debate politico, social, não só no âmbito de viabilização das peças, mas diretamente sobre as condições do sujeito no capitalismo, sobretudo do trabalhador.
Contudo, essa produção apesar de bem intencionada e de convicção política coerente e definida, sofre, em alguns momentos, daquilo que o próprio Marcuse coloca como uma “nova forma de repressão” que aqui chamo de colonização do imaginário. Em outras palavras, alguns desses trabalhos, não unicamente espetáculo em si, mas muitas vezes o debate pós-espetáculo, a explicação dos símbolos, o que se propunha com tais elementos cênicos, etc. parece tentar modelar a imaginação de quem assiste ao tal espetáculo, de forma com que sua capacidade de elaboração, imaginação, e divertimento, - elementos que possibilitariam a identificação de uma brutal oposição entre prazer(fantasia, arte) e desprazer(realidade) – parecem mais engessar a subjetividade do público de modo que se quebra a fantasia, a ponto de se equivaler ao status de realidade, qual outrora a arte tentava se opor. Fazendo com que, apesar da forma ser diferente, o fim seja o mesmo do principio de realidade, a adestração da subjetividade, a colonização do imaginário.
Isso nos levaria ainda a pensar que a arte como instrumento de transformação social, e sobretudo, do indivíduo, poderia só ser útil enquanto existisse um principio de realidade socialmente injusto? E se finalmente chegássemos ao horizonte utópico desejado, ela perderia seu valor, deixaria de existir?
Me parece que a arte, mesmo onde se colocaria no seu mais livre exercício, ainda sim estaria para suprir necessidades que a vida, a realidade são conseguiria. Como diz Ferreira Gullar: “A arte existe porque a vida não basta”.
¹ e ² ALTAIR REIS DE JESUS, ANTÔNIO DA SILVA CÂMARA, “Autonomia e utopia da arte e da cultura em Herbert Marcuse”, 2007
EROS E CIVILIZAÇÃO, Hebert Marcuse, 1995(3° edição)
AUTONOMIA E UTOPIA DA ARTE E DA CULTURA EM HERBERT MARCUSE, Altair Reis de Jesus, Antônio da Silva Câmara (Trabalho apresentado no III ENECULT – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura)
LES MANIFESTES DU SURRÉALISME, ANDRÉ BRETON,; Paris: Editions du Sagitaire, 1946
O risco de perda da dimensão do prazer, visível, por exemplo, entre artistas de esquerda - aproveitando o gancho - pode ser notado de modo semelhante em relação ao pensamento do próprio Marcuse. Frequentemente - considerando todos os seus equívocos, sobretudo políticos -, frequentemente reduzem seu pensamento a um mero "idealismo". Não ao idealismo propriamente dito, mas à palavra com sua costumeira conotação depreciativa e vulgar - posto que o "idealismo" mesmo, propriamente dito, não se reduz a uma simples palavra.
ResponderExcluirInteressante que essa interpretação fechada, e reducionista, não compreende, por exemplo, a legitimidade da própria tentativa de Marcuse: nota-se uma dimensão libertária na experiência estética, e identificamos imediatamente essa dimensão com o prazer que a arte proporciona - no ato! Nada mais simples, e ao mesmo tempo indiscutível: o que nos prende a um romance, ou a um filme, é outra coisa que não o prazer e a satisfação de experimental livremente novas composições com elementos dados pela realidade que nos circunda?
A noção da arte como não-suspensão, mas prazer que ecoa pra além da própria experiência artística, isto é, tornando viável uma imaginação aplicada ao real, ou a utopia como realização de si mesma - de fato, sonhar, nesse mundo, é como realizar um sonho -, não é questionável para qualquer pessoa que já tenha experimentado minimamente o poder de humanização da arte. Enfim... grande obra de Marcuse!
Abraços!
João.
De alguma forma, e percebo esta inquietação nas sua palavras também, João, temos de nos preocupar muito o como a própria esquerda vê e se relaciona com a arte - claro, que auto-crítica parece mais ter seccionado a possibilidades de crescimento da esquerda, do que ter ajudado a contruir uma oposição real, forte e necessária contra o capitalismo; muito provavelmente pela própria forma com que, sobretudo, os intelectuais de esquerda se adaptaram à forma de pensamento totalmente institucionalizada(prêmios, competições infantis, mais uma vez o ego que se sobrepõe a qualquer noção de extensão coletiva.
ResponderExcluirCuidado este que temos de tomar, e que tem de nos levar a necessária radicalização politica, e artistica, que nos permite, inclusive, fazer todo aquele tipo de arte que outrora seriamos, burramente, chamados de pequenos burgueses, sem compreensão do mundo, que se resumi na burra ideia de "arte para as massas". É claro, que nossa intenção é que a classe de trabalhadores tome os meios de produção, que o humano seja finalmente humano, que a pessoas tomem consciência que a arte que tem os meios para se reproduzir é majoriatriamente burguesa e mantenedora do status quo.
Temos que dizer não a esse mundo, a essa politica, a essa arte, a essa realidade. E para isso, teremos de abdicar de fetiches, e de lugares comuns que criamos, mesmo sobre a "superfície da subversão".
Temos não só que denunciar essa realidade, mas temos também de ter coragem de levantar, fazer, exibir nossas obras - sem medo de errar - experimentais, complicadas, pretensiosamente revolucionárias, e não nos deixarmos atingir pela burrice insucionalizada do principio da razão.