FONTE: http://boitempoeditorial.wordpress.com/2011/10/11/a-tinta-vermelha-discurso-de-slavoj-zizek-aos-manifestantes-do-movimento-occupy-wall-street/
Slavoj Žižek visitou a Liberty Plaza, em Nova Iorque, para falar ao acampamento de manifestantes do movimento Occupy Wall Street
(Ocupe Wall Street), que vem protestando contra a crise financeira e o
poder econômico norte-americano desde o início de setembro deste ano.
O filósofo nos enviou a íntegra de seu discurso para publicarmos em nosso Blog, que segue abaixo em tradução de Rogério Bettoni.
***
Não
se apaixonem por si mesmos, nem pelo momento agradável que estamos tendo
aqui. Carnavais custam muito pouco – o verdadeiro teste de seu valor é o
que permanece no dia seguinte, ou a maneira como nossa vida normal e
cotidiana será modificada. Apaixone-se pelo trabalho duro e paciente –
somos o início, não o fim. Nossa mensagem básica é: o tabu já foi
rompido, não vivemos no melhor mundo possível, temos a permissão e a
obrigação de pensar em alternativas. Há um longo caminho pela frente, e
em pouco tempo teremos de enfrentar questões realmente difíceis –
questões não sobre aquilo que não queremos, mas sobre aquilo que
QUEREMOS. Qual organização social pode substituir o capitalismo vigente?
De quais tipos de líderes nós precisamos? As alternativas do século XX
obviamente não servem.
Então
não culpe o povo e suas atitudes: o problema não é a corrupção ou a
ganância, mas o sistema que nos incita a sermos corruptos. A solução não
é o lema “Main Street, not Wall Street”, mas sim mudar o sistema em que
a Main Street não funciona sem o Wall Street. Tenham cuidado não só com
os inimigos, mas também com falsos amigos que fingem nos apoiar e já
fazem de tudo para diluir nosso protesto. Da mesma maneira que compramos
café sem cafeína, cerveja sem álcool e sorvete sem gordura, eles
tentarão transformar isto aqui em um protesto moral inofensivo. Mas a
razão de estarmos reunidos é o fato de já termos tido o bastante de um
mundo onde reciclar latas de Coca-Cola, dar alguns dólares para a
caridade ou comprar um cappuccino da Starbucks que tem 1% da renda
revertida para problemas do Terceiro Mundo é o suficiente para nos fazer
sentir bem. Depois de terceirizar o trabalho, depois de terceirizar a
tortura, depois que as agências matrimoniais começaram a terceirizar até
nossos encontros, é que percebemos que, há muito tempo, também
permitimos que nossos engajamentos políticos sejam terceirizados – mas
agora nós os queremos de volta.
Dirão
que somos “não americanos”. Mas quando fundamentalistas conservadores
nos disserem que os Estados Unidos são uma nação cristã, lembrem-se do
que é o Cristianismo: o Espírito Santo, a comunidade livre e igualitária
de fiéis unidos pelo amor. Nós, aqui, somos o Espírito Santo, enquanto
em Wall Street eles são pagãos que adoram falsos ídolos.
Dirão
que somos violentos, que nossa linguagem é violenta, referindo-se à
ocupação e assim por diante. Sim, somos violentos, mas somente no mesmo
sentido em que Mahatma Gandhi foi violento. Somos violentos porque
queremos dar um basta no modo como as coisas andam – mas o que significa
essa violência puramente simbólica quando comparada à violência
necessária para sustentar o funcionamento constante do sistema
capitalista global?
Seremos
chamados de perdedores – mas os verdadeiros perdedores não estariam lá
em Wall Street, os que se safaram com a ajuda de centenas de bilhões do
nosso dinheiro? Vocês são chamados de socialistas, mas nos Estados
Unidos já existe o socialismo para os ricos. Eles dirão que vocês não
respeitam a propriedade privada, mas as especulações de Wall Street que
levaram à queda de 2008 foram mais responsáveis pela extinção de
propriedades privadas obtidas a duras penas do que se estivéssemos
destruindo-as agora, dia e noite – pense nas centenas de casas
hipotecadas…
Nós
não somos comunistas, se o comunismo significa o sistema que
merecidamente entrou em colapso em 1990 – e lembrem-se de que os
comunistas que ainda detêm o poder atualmente governam o mais implacável
dos capitalismos (na China). O sucesso do capitalismo chinês liderado
pelo comunismo é um sinal abominável de que o casamento entre o
capitalismo e a democracia está próximo do divórcio. Nós somos
comunistas em um sentido apenas: nós nos importamos com os bens comuns –
os da natureza, do conhecimento – que estão ameaçados pelo sistema.
Eles
dirão que vocês estão sonhando, mas os verdadeiros sonhadores são os
que pensam que as coisas podem continuar sendo o que são por um tempo
indefinido, assim como ocorre com as mudanças cosméticas. Nós não
estamos sonhando; nós acordamos de um sonho que está se transformando em
pesadelo. Não estamos destruindo nada; somos apenas testemunhas de como
o sistema está gradualmente destruindo a si próprio. Todos nós
conhecemos a cena clássica dos desenhos animados: o gato chega à beira
do precipício e continua caminhando, ignorando o fato de que não há chão
sob suas patas; ele só começa a cair quando olha para baixo e vê o
abismo. O que estamos fazendo é simplesmente levar os que estão no poder
a olhar para baixo…
Então,
a mudança é realmente possível? Hoje, o possível e o impossível são
dispostos de maneira estranha. Nos domínios da liberdade pessoal e da
tecnologia científica, o impossível está se tornando cada vez mais
possível (ou pelo menos é o que nos dizem): “nada é impossível”, podemos
ter sexo em suas mais perversas variações; arquivos inteiros de
músicas, filmes e seriados de TV estão disponíveis para download; a
viagem espacial está à venda para quem tiver dinheiro; podemos melhorar
nossas habilidades físicas e psíquicas por meio de intervenções no
genoma, e até mesmo realizar o sonho tecnognóstico de atingir a
imortalidade transformando nossa identidade em um programa de
computador. Por outro lado, no domínio das relações econômicas e
sociais, somos bombardeados o tempo todo por um discurso do “você não pode”
se envolver em atos políticos coletivos (que necessariamente terminam
no terror totalitário), ou aderir ao antigo Estado de bem-estar social
(ele nos transforma em não competitivos e leva à crise econômica), ou se
isolar do mercado global etc. Quando medidas de austeridade são
impostas, dizem-nos repetidas vezes que se trata apenas do que tem de
ser feito. Quem sabe não chegou a hora de inverter as coordenadas do que
é possível e impossível? Quem sabe não podemos ter mais solidariedade e
assistência médica, já que não somos imortais?
Em
meados de abril de 2011, a mídia revelou que o governo chinês havia
proibido a exibição, em cinemas e na TV, de filmes que falassem de
viagens no tempo e histórias paralelas, argumentando que elas trazem
frivolidade para questões históricas sérias – até mesmo a fuga fictícia
para uma realidade alternativa é considerada perigosa demais. Nós, do
mundo Ocidental liberal, não precisamos de uma proibição tão explícita: a
ideologia exerce poder material suficiente para evitar que narrativas
históricas alternativas sejam interpretadas com o mínimo de seriedade.
Para nós é fácil imaginar o fim do mundo – vide os inúmeros filmes
apocalípticos –, mas não o fim do capitalismo.
Em
uma velha piada da antiga República Democrática Alemã, um trabalhador
alemão consegue um emprego na Sibéria; sabendo que todas as suas
correspondências serão lidas pelos censores, ele diz para os amigos:
“Vamos combinar um código: se vocês receberem uma carta minha escrita
com tinta azul, ela é verdadeira; se a tinta for vermelha, é falsa”.
Depois de um mês, os amigos receberam a primeira carta, escrita em azul:
“Tudo é uma maravilha por aqui: os estoques estão cheios, a comida é
abundante, os apartamentos são amplos e aquecidos, os cinemas exibem
filmes ocidentais, há mulheres lindas prontas para um romance – a única
coisa que não temos é tinta vermelha.” E essa situação, não é a
mesma que vivemos até hoje? Temos toda a liberdade que desejamos – a
única coisa que falta é a “tinta vermelha”: nós nos “sentimos livres”
porque somos desprovidos da linguagem para articular nossa falta de
liberdade. O que a falta de tinta vermelha significa é que, hoje, todos
os principais termos que usamos para designar o conflito atual – “guerra
ao terror”, “democracia e liberdade”, “direitos humanos” etc. etc. –
são termos FALSOS que mistificam nossa percepção da situação em vez de
permitir que pensemos nela. Você, que está aqui presente, está dando a
todos nós tinta vermelha.
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