O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

O mundo vai acabar. (Charles Baudelaire)


O mundo vai acabar. A única razão pela qual poderia durar é que ele existe. Que razão fraca, comparada a todas as que anunciam o contrário, particularmente esta: o que tem o mundo que fazer sob o céu? Pois, supondo que continuasse a existir materialmente, seria uma existência digna desse nome, isto é, digna de constar no dicionário histórico? Não digo que o mundo será reduzido à desordem bufona das repúblicas da América do Sul; e também não digo que retornaremos ao estado selvagem, nem que vamos procurar um novo pasto através das ruínas gramadas de nossa civilização, de fuzil na mão. Não; pois esse destino e essas aventuras necessitam ainda de certa energia vital, eco das primeiras eras. Morreremos por aquilo que acreditamos viver.

A mecânica nos terá a tal ponto americanizado, o progresso terá tão bem atrofiado nosso espírito, que nenhum devaneio sanguinário poderá se comparar a seus resultados. Peço a todo homem pensante que me mostre, se for capaz, o que ainda resta da vida. Virá o tempo em que a humanidade, como um bicho-papão vingador, arrancará sua última migalha daqueles que acreditaram serem os herdeiros legítimos da revolução. Ainda assim, não será esse o mal supremo.

Não é particularmente por instituições políticas que se manifestará a ruína universal, ou o progresso universal; pois pouco me importa o nome. Será pelo embrutecimento dos corações. O pouco que restará de política se verá preso nos braços da animalidade geral, e os governos serão forçados, para se manter e para criar uma aparência de ordem, a tomar medidas que fariam estremecer nossa humanidade atual. Então, o filho fugirá da família, não aos dezoito anos, mas aos doze, emancipado por sua precocidade gulosa. Fugirá da família, não para buscar aventuras heróicas, não para libertar uma mocinha aprisionada numa torre, não para tornar-se imortal através de sublimes pensamentos, mas para fundar um comércio, para se enriquecer, e para fazer concorrência a seu infame papai, fundador e acionário de um jornal que espalhará as luzes da razão!

Então, as mulheres errantes, as desclassificadas, as que tiveram alguns amantes, e que chamamos de Anjos quando vemos o brilho da luz de seus olhos, luz do acaso, tais mulheres, na sua existência maligna, não serão nada além do que a cruel sabedoria, sabedoria que condenará tudo, exceto o dinheiro. A justiça, se é que nessa época pode ainda existir justiça, mandará prender os cidadãos que não são capazes de ganhar dinheiro. Tua esposa, tua casta metade guardiã vigilante do seu lar e do seu cofre-forte, não será mais do que uma mulher conservada. Tua filha, inutilidade infantil, sonhará, desde o berço, que se vende por um milhão. E tu, menos poeta ainda do que és hoje, não acharás nada a dizer a respeito; não te arrependerás de nada. Esses tempos estão talvez bem próximos; quem sabe mesmo se já não chegaram, e se a grosseria de nossa natureza não é o único obstáculo que nos impede de apreciar o meio no qual respiramos!

Quanto a mim, que por vezes me sinto um profeta ridículo, perdido nesse mundo vilão, acotovelado pelas multidões, sou como um homem relaxado que só enxerga atrás de si os anos profundos da infância, e adiante, no futuro, uma tempestade que nada de novo contém - nem ensinamento, nem dor. Na noite em que roubei do destino algumas horas de prazer, arrastado em minha digestão lenta, esquecido – tanto quanto possível – do passado, contente do presente e resignado do futuro, embriagado no meu próprio sangue frio, orgulhoso de não ser tão baixo quanto os homens que passam na minha frente, disse a mim mesmo ao contemplar a fumaça do meu cigarro: “Que me importa onde vão essas consciências?”

Creio que acabei de entrar naquilo que as pessoas entendidas chamam de “prato” ou “aperitivo”. Por isso, deixarei estas páginas – porque quero datar minha cólera.


(Baudelaire)

Fonte: Fusées (publicado postumamente em 1897), feuillet 85.


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