O mundo vai
acabar. A única razão pela qual poderia durar é que ele existe. Que razão
fraca, comparada a todas as que anunciam o contrário, particularmente esta: o
que tem o mundo que fazer sob o céu? Pois, supondo que continuasse a existir
materialmente, seria uma existência digna desse nome, isto é, digna de constar
no dicionário histórico? Não digo que o mundo será reduzido à desordem bufona
das repúblicas da América do Sul; e também não digo que retornaremos ao estado
selvagem, nem que vamos procurar um novo pasto através das ruínas gramadas de
nossa civilização, de fuzil na mão. Não; pois esse destino e essas aventuras
necessitam ainda de certa energia vital, eco das primeiras eras. Morreremos por
aquilo que acreditamos viver.
A mecânica nos
terá a tal ponto americanizado, o progresso terá tão bem atrofiado nosso
espírito, que nenhum devaneio sanguinário poderá se comparar a seus resultados.
Peço a todo homem pensante que me mostre, se for capaz, o que ainda resta da
vida. Virá o tempo em que a humanidade, como um bicho-papão vingador, arrancará
sua última migalha daqueles que acreditaram serem os herdeiros legítimos da
revolução. Ainda assim, não será esse o mal supremo.
Não é
particularmente por instituições políticas que se manifestará a ruína universal,
ou o progresso universal; pois pouco me importa o nome. Será pelo
embrutecimento dos corações. O pouco que restará de política se verá preso nos
braços da animalidade geral, e os governos serão forçados, para se manter e
para criar uma aparência de ordem, a tomar medidas que fariam estremecer nossa
humanidade atual. Então, o filho fugirá da família, não aos dezoito anos, mas
aos doze, emancipado por sua precocidade gulosa. Fugirá da família, não para
buscar aventuras heróicas, não para libertar uma mocinha aprisionada numa
torre, não para tornar-se imortal através de sublimes pensamentos, mas para
fundar um comércio, para se enriquecer, e para fazer concorrência a seu infame
papai, fundador e acionário de um jornal que espalhará as luzes da razão!
Então, as
mulheres errantes, as desclassificadas, as que tiveram alguns amantes, e que
chamamos de Anjos quando vemos o brilho da luz de seus olhos, luz do acaso, tais
mulheres, na sua existência maligna, não serão nada além do que a cruel
sabedoria, sabedoria que condenará tudo, exceto o dinheiro. A justiça,
se é que nessa época pode ainda existir justiça, mandará prender os cidadãos
que não são capazes de ganhar dinheiro. Tua esposa, tua casta metade guardiã
vigilante do seu lar e do seu cofre-forte, não será mais do que uma mulher
conservada. Tua filha, inutilidade infantil, sonhará, desde o berço, que se
vende por um milhão. E tu, menos poeta ainda do que és hoje, não acharás nada a
dizer a respeito; não te arrependerás de nada. Esses tempos estão talvez bem próximos;
quem sabe mesmo se já não chegaram, e se a grosseria de nossa natureza não é o
único obstáculo que nos impede de apreciar o meio no qual respiramos!
Quanto a mim,
que por vezes me sinto um profeta ridículo, perdido nesse mundo vilão,
acotovelado pelas multidões, sou como um homem relaxado que só enxerga atrás de
si os anos profundos da infância, e adiante, no futuro, uma tempestade que nada
de novo contém - nem ensinamento, nem dor. Na noite em que roubei do destino
algumas horas de prazer, arrastado em minha digestão lenta, esquecido – tanto
quanto possível – do passado, contente do presente e resignado do futuro,
embriagado no meu próprio sangue frio, orgulhoso de não ser tão baixo quanto os
homens que passam na minha frente, disse a mim mesmo ao contemplar a fumaça do
meu cigarro: “Que me importa onde vão essas consciências?”
Creio que acabei
de entrar naquilo que as pessoas entendidas chamam de “prato” ou “aperitivo”.
Por isso, deixarei estas páginas – porque quero datar minha cólera.
(Baudelaire)
(Baudelaire)
Fonte: Fusées
(publicado postumamente em 1897), feuillet 85.
Nenhum comentário:
Postar um comentário