Filmar a fome não é dos
mais nobres ou tranqüilos desafios. Primeiro, há um problema de ordem
quase técnica: como materializar em imagens uma questão tão
universalmente debatida sem ao mesmo tempo recair em um didatismo
televisivo, em um pieguismo adocicado, em um reducionismo ligeiro do
próprio problema da fome? E, da própria opção em se filmar a fome,
decorre uma segunda questão: é ainda legítimo fazer cinema político?
Antes de se aventurar no premiado e polêmico Tropa de Elite, e após ser alçado ao estrelato por Ônibus 174, o cineasta José Padilha filmou um documentário sobre a fome. Garapa, que
somente agora estreará em circuito, filma o dia-a-dia de três famílias
cearenses miseráveis, e que sofrem com o problema da fome. As
peculiaridades de cada uma, presentes logo no começo do filme, ajudam
identificá-las com distinção.
Duas dessas famílias vivem no sertão, ambas possuem
muitos filhos. Em uma delas, no entanto, onde as crianças sempre
aparecem brincando, a conversa com Padilha é mais fluente; na outra, a
fala pausada dos pais geralmente é cortada pelo choro das crianças. De
Fortaleza, a terceira é atormentada pela loucura do pai, que passa o dia
profetizando e ameaçando trocar a comida da casa por bebida.
Padilha faz claras opções na condução do filme. Os
princípios do cinema direto - gênero de documentário onde se busca a
captação direta da realidade, sem intervenção - são seu cerne principal.
Poucas perguntas são feitas e a rotina das famílias corre livremente
aos olhos do espectador. Também não há a utilização de cor [é inevitável
pensar na semelhança com o Cinema Novo], trilha sonora e zoom, o que,
nas palavras de Padilha, foi uma tentativa de representar ao espectador o
vazio deixado pela fome.
Não necessariamente pela falta de cor ou de som, mas é
exatamente este vazio que sempre predomina. As três famílias parecem
viver em uma realidade à parte, em um nó obtuso onde o sistema de
políticas públicas jamais conseguirá chegar ou entender. Não se trata
apenas de passar fome. O que se vê é um buraco desconhecido, que por
desconhecido pouco pode ser preenchido.
Em uma das intervenções de Padilha, ele
pergunta ao pai dos brincalhões quanto tempo dura a cesta enviada
mensalmente pelo Fome Zero. O patriarca, consultando a mulher, responde
que mais ou menos doze dias. O diretor quer então saber o que é feito no
resto do mês. Ninguém responde. Em outra cena, a mãe de Fortaleza leva a
filha a uma assistente social, para verificar como anda a subnutrição
da pequena. A disponível funcionária ouve, dá recomendações sobre a vida
conjugal, critica o marido louco, pergunta sobre a escola. Por fim,
orienta sobre como alimentar melhor a menina e contornar os danos da
fome. A mãe responde que o alimento solicitado não existe em casa. A
funcionária tenta a segunda e a terceira opção. Nada. “Você não tem nada
do que peço. Assim, não poderei te ajudar”, conclui.
Cenas que parecem meio
surreais, quase inverossímeis ou produzidas, mas que ganham força pela
opção de Padilha. Começa aí o grande acerto do filme: a opção quase
naturalista ao se falar da fome. Há pouco a ser dramatizado ou
acrescentado quando a realidade é irrefutável. O filme transcorre quase
como que em uma exposição, árida e agreste, tentando canalizar a força
da imagem para representar um problema de proporções históricas e
devastadoras.
Ao longo dessa exposição, nota-se também um notável
trabalho de montagem. A passagem de uma cena para outra muitas vezes
parece linear, como se as famílias fossem as mesmas, como se os
problemas enfrentados por indivíduos tão distintos fossem sempre os
mesmos.
A tônica é a mesma no início, no meio e no fim, como
um pêndulo, em imagens que vão e voltam sempre. Repetição que acaba
criando um mapeamento abrangente e universal da fome e da miséria:
desemprego, falta de chuva, alcoolismo, homens omissos, mulheres
batalhadoras, crianças doentes, falta de planejamento, desesperança.
É, aliás, nessa desesperança das famílias que reside
uma das sensações mais angustiantes do filme. Os dias, salvo
provavelmente quando aparecem os serviços temporários, parecem
idênticas, cansativas repetições um dos outros. Não há novos desejos,
novos futuros, novos medos. É sempre a fome.
Longe da violência carioca, que marcou seus dois
grandes sucessos, Padilha faz aqui seu filme mais necessário. Obra que
universaliza e materializa um problema tão complexo, que tem a
força devida para reavaliar certos fantasmas nem tão mortos assim. A
fome, afinal, é um pêndulo. Um moto-contínuo.
20/11 Cine Afro Sembene Apresenta: "Zumbi Somos Nós" e "Orikí". Compareça e ajude a divulgar: http://tamboresfalantes.blogspot.com/2010/11/20-de-novembro-de-2010-cine-afro.html
ResponderExcluirCaro Oubi,
ResponderExcluirEstamos divulgando no blog o Cine Afro Sembene e estarei lá amanhã.
um abraço
Bruno