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(faltou
o futebol na República)
Alguma coisa aproxima o
futebol do esporte na antiguidade; algo que se comunica profundamente com nossa
condição humana mais imediata. Uns dizem que é o imprevisível. Outros se referem à sua possibilidade inventiva,
criativa etc. Imprevisão, criação, beleza construtiva, elemento intuitivo, tudo
isso, de fato, aproxima o jogo da arte. Resta saber de que modo isso dialoga
com a vida real.
Peguemos o imprevisível,
o imponderável. Em qualquer outro esporte, sempre existe a possibilidade de
outros fatores prevalecerem sobre a capacidade técnica. Aliás, sustento que
esse “além da técnica” é um dos muitos conteúdos
emancipatórios que pode haver no esporte – num mundo dominado pelo cálculo.
Assim, por exemplo, o
vôlei. Vemos que um time é claramente superior do ponto de vista técnico;
executa com mais perfeição os fundamentos da coisa. O adversário é inseguro, porém
com mais domínio de si mesmo, e,
estranhamente, faz mais pontos. É que, talvez, o time bem preparado
tecnicamente, não o era psicologicamente.
Isto, que geralmente
constitui exceção em outros esportes, no futebol é regra. Talvez na luta também (e não só na luta esportiva, mas, sobretudo nas classes em luta).
O esporte, nesse sentido,
é humaniza-dor. Nele, a técnica é
indispensável, e ao mesmo tempo insuficiente. Se dependesse apenas do preparo,
e da execução calculada, ou, melhor dizendo: caso a execução correspondesse
exatamente ao cálculo, então, dois times bem preparados empatariam eternamente.
A contradição fica como
que suspensa no ar, num equilíbrio que
distribui a tensão. Não se trata do ar que entra pelos pulmões, nem tampouco do
ar que sai – é o momento exato, fração de segundos, entre uma coisa e outra (o não-ser do ser, diriam alguns). Momento
frágil, sem dúvida. Mas que, como demonstra o capitalismo, pode perdurar ao
longo de séculos.
No esporte o homem
revela-se limitado e sonhador.
Limitado, pois acredita que a técnica conduz invariavelmente para os braços da
vitória. Mas sonhador, porque tem a esperança de que esta regra não funcione
com o adversário.
Talvez limitado por
excesso de sonho. Com certeza não. Lênin dizia que é preciso sonhar, porém é necessário criar as condições reais para que
os sonhos se realizem. É preciso ler dialeticamente essa afirmação. Ela
pressupõe outra, oposta e complementar: sim, é preciso criar as condições para
realizarmos os sonhos, mas é necessário sonhar.
Afinal, o que são as
condições necessárias para tornar o sonho realidade, senão a realidade
necessária para novos sonhos? O direito à
realidade do sonho não é maior do que o direito ao sonho da realidade.
Sobretudo nos tempos atuais.
O caminho em direção a consciência
é múltiplo. E frequentemente passa por indagações simplórias, do tipo: “quantas
formas de injustiça conhecemos na vida?”. Tanto quanto nossa imaginação
concebe. Mas é pouco, muito pouco, pois a injustiça danifica inclusive nossa
capacidade de imaginar. E de sonhar – daí a atualidade da frase de Lênin,
quando a invertemos.
Mas voltando. Como
dizíamos, o imprevisível no futebol chega ao ponto de familiarizar seus
torcedores com a própria sensação da
injustiça. Nesse sentido, como o futebol - esporte do imponderável, e
frequentemente injusto - poderia não atrair as pessoas, que sobrevivem na
injustiça real de cada dia?
Alguém pode argumentar: “Ora,
mas se a vida mesma já é injusta, porque as pessoas procuram justamente o
esporte da injustiça? Talvez se trate de masoquismo. Não deveria ser o
contrário?”. Não, e não se trata de masoquismo.
É inegável que existe
alguma espécie de alívio na sensação de um torcedor quando seu time perde
injustamente, pois, ao contrário da vida, a injustiça do futebol não é real –
ou letal.
Assim, lá no fundo da consciência mora a esperança de que um dia as injustiças realmente existentes possam não
mais produzir os efeitos destrutivos que produzem – isto é: deixarão de
existir.
Porque, no futebol, as
injustiças serão revertidas, e todo mundo sabe disso. Como exemplo, uma
digressão de torcedor que explica o paradoxo: no ano de 2000 o time do Boca Júniors,
como todos sabem, venceu o Palmeiras na final da taça Libertadores. Todos
sabem, também, que aquela vitória foi absolutamente
injusta. A superioridade técnica do Palmeiras foi vencida pelas “tendências
subjetivas” da arbitragem.
Ontem – a despeito de
rivalidades – a justiça foi feita. No futebol, tudo se equilibra na balança do
tempo; mesmo em tempos de total desequilíbrio.
De todo modo, é
impossível negar que a sensação de alívio do torcedor, ou a sensação de
justiça, transfere a carga de opressão da vida para aquele momento (Augenblick). O futebol é uma sessão de descarrego. Porque,
no futebol, como na vida, a questão da justiça está sempre colocada.
Ontem, portanto, os corintianos
desfrutaram do mais belo e gozoso sentimento que existe; que é o sentimento da
justiça cumprida. E fizeram todo aquele barulho... Imaginemos então o barulho
que não faríamos se a justiça real
fosse cumprida. Sim, “cumprida”, no duplo sentido da pronuncia: de realização
efetiva e durabilidade. É o que nos convém.
Para terminar, rapidamente,
Platão. O conceito de justiça é um dos pilares da sua famosa obra, a Republica. Porém, me arrisco a dizer:
faltou o futebol. O caso é que, se Platão tivesse colocado ali o futebol, como
momento indispensável na formação dos cidadãos, todo aquele edifício idealizado
ficaria comprometido.
Como sabemos, trata-se de
uma república fundada numa espécie de hierarquização
da capacidade humana. O futebol seria o último capítulo, concluindo: “Nele,
todos podem participar!”.
No tempo de Platão,
naturalmente, ainda padecíamos da ingenuidade de acreditar que é possível
torcer pela arbitragem. Nem é preciso dizer que Sócrates seria um bom técnico.
E, seguramente, corintiano. Mas ele jogou
efetivamente no Corinthians. Morreu um ano antes de ver seu clube
conquistar finalmente a América. A questão da justiça é realmente muito séria.
João .
João que liberta essa mente que esteve cansada de tentar se explicar pela passionalidade. Belo Texto.
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