O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Libertadores ou Justiça?


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(faltou o futebol na República)


Alguma coisa aproxima o futebol do esporte na antiguidade; algo que se comunica profundamente com nossa condição humana mais imediata. Uns dizem que é o imprevisívelOutros se referem à sua possibilidade inventiva, criativa etc. Imprevisão, criação, beleza construtiva, elemento intuitivo, tudo isso, de fato, aproxima o jogo da arte. Resta saber de que modo isso dialoga com a vida real.

Peguemos o imprevisível, o imponderável. Em qualquer outro esporte, sempre existe a possibilidade de outros fatores prevalecerem sobre a capacidade técnica. Aliás, sustento que esse “além da técnica” é um dos muitos conteúdos emancipatórios que pode haver no esporte – num mundo dominado pelo cálculo.

Assim, por exemplo, o vôlei. Vemos que um time é claramente superior do ponto de vista técnico; executa com mais perfeição os fundamentos da coisa. O adversário é inseguro, porém com mais domínio de si mesmo, e, estranhamente, faz mais pontos. É que, talvez, o time bem preparado tecnicamente, não o era psicologicamente.

Isto, que geralmente constitui exceção em outros esportes, no futebol é regra. Talvez na luta também (e não só na luta esportiva, mas, sobretudo nas classes em luta).

O esporte, nesse sentido, é humaniza-dor. Nele, a técnica é indispensável, e ao mesmo tempo insuficiente. Se dependesse apenas do preparo, e da execução calculada, ou, melhor dizendo: caso a execução correspondesse exatamente ao cálculo, então, dois times bem preparados empatariam eternamente.

A contradição fica como que suspensa no ar, num equilíbrio que distribui a tensão. Não se trata do ar que entra pelos pulmões, nem tampouco do ar que sai – é o momento exato, fração de segundos, entre uma coisa e outra (o não-ser do ser, diriam alguns). Momento frágil, sem dúvida. Mas que, como demonstra o capitalismo, pode perdurar ao longo de séculos.

No esporte o homem revela-se limitado e sonhador. Limitado, pois acredita que a técnica conduz invariavelmente para os braços da vitória. Mas sonhador, porque tem a esperança de que esta regra não funcione com o adversário.

Talvez limitado por excesso de sonho. Com certeza não. Lênin dizia que é preciso sonhar, porém é necessário criar as condições reais para que os sonhos se realizem. É preciso ler dialeticamente essa afirmação. Ela pressupõe outra, oposta e complementar: sim, é preciso criar as condições para realizarmos os sonhos, mas é necessário sonhar.

Afinal, o que são as condições necessárias para tornar o sonho realidade, senão a realidade necessária para novos sonhos? O direito à realidade do sonho não é maior do que o direito ao sonho da realidade. Sobretudo nos tempos atuais.

O caminho em direção a consciência é múltiplo. E frequentemente passa por indagações simplórias, do tipo: “quantas formas de injustiça conhecemos na vida?”. Tanto quanto nossa imaginação concebe. Mas é pouco, muito pouco, pois a injustiça danifica inclusive nossa capacidade de imaginar. E de sonhar – daí a atualidade da frase de Lênin, quando a invertemos.

Mas voltando. Como dizíamos, o imprevisível no futebol chega ao ponto de familiarizar seus torcedores com a própria sensação da injustiça. Nesse sentido, como o futebol - esporte do imponderável, e frequentemente injusto - poderia não atrair as pessoas, que sobrevivem na injustiça real de cada dia?

Alguém pode argumentar: “Ora, mas se a vida mesma já é injusta, porque as pessoas procuram justamente o esporte da injustiça? Talvez se trate de masoquismo. Não deveria ser o contrário?”. Não, e não se trata de masoquismo.

É inegável que existe alguma espécie de alívio na sensação de um torcedor quando seu time perde injustamente, pois, ao contrário da vida, a injustiça do futebol não é real – ou letal. 

Assim, lá no fundo da consciência mora a esperança de que um dia as injustiças realmente existentes possam não mais produzir os efeitos destrutivos que produzem – isto é: deixarão de existir.

Porque, no futebol, as injustiças serão revertidas, e todo mundo sabe disso. Como exemplo, uma digressão de torcedor que explica o paradoxo: no ano de 2000 o time do Boca Júniors, como todos sabem, venceu o Palmeiras na final da taça Libertadores. Todos sabem, também, que aquela vitória foi absolutamente injusta. A superioridade técnica do Palmeiras foi vencida pelas “tendências subjetivas” da arbitragem.

Ontem – a despeito de rivalidades – a justiça foi feita. No futebol, tudo se equilibra na balança do tempo; mesmo em tempos de total desequilíbrio.

De todo modo, é impossível negar que a sensação de alívio do torcedor, ou a sensação de justiça, transfere a carga de opressão da vida para aquele momento (Augenblick). O futebol é uma sessão de descarrego. Porque, no futebol, como na vida, a questão da justiça está sempre colocada.

Ontem, portanto, os corintianos desfrutaram do mais belo e gozoso sentimento que existe; que é o sentimento da justiça cumprida. E fizeram todo aquele barulho... Imaginemos então o barulho que não faríamos se a justiça real fosse cumprida. Sim, “cumprida”, no duplo sentido da pronuncia: de realização efetiva e durabilidade. É o que nos convém.

Para terminar, rapidamente, Platão. O conceito de justiça é um dos pilares da sua famosa obra, a Republica. Porém, me arrisco a dizer: faltou o futebol. O caso é que, se Platão tivesse colocado ali o futebol, como momento indispensável na formação dos cidadãos, todo aquele edifício idealizado ficaria comprometido.

Como sabemos, trata-se de uma república fundada numa espécie de hierarquização da capacidade humana. O futebol seria o último capítulo, concluindo: “Nele, todos podem participar!”.

No tempo de Platão, naturalmente, ainda padecíamos da ingenuidade de acreditar que é possível torcer pela arbitragem. Nem é preciso dizer que Sócrates seria um bom técnico. E, seguramente, corintiano. Mas ele jogou efetivamente no Corinthians. Morreu um ano antes de ver seu clube conquistar finalmente a América. A questão da justiça é realmente muito séria.

João .


Um comentário:

  1. João que liberta essa mente que esteve cansada de tentar se explicar pela passionalidade. Belo Texto.

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