O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

terça-feira, 20 de março de 2012

Wolinski: “O humor é de esquerda”

MATÉRIA ORIGINAL:http://blogs.estadao.com.br/luiz-zanin/title-230/



O Amazonas Film Festival prega peças na gente e traz um jurado de nome Wolinski. Quem? Seria Georges Wolinski, o mitológico cartunista francês? Pode ser. Afinal, o homem não larga o caderninho e passa o tempo a desenhar os personagens do festival: colegas de júri, mulheres que vê pela rua, os moradores da cidade, marinheiros do barco – e até o repórter que o entrevista ganha uma caricatura. Com a grife Wolinski. É ele mesmo, o satirista, chamado de erotômano, desenhista maldito, o próprio espírito do maio de 68 francês, o homem que ilustrou páginas do L””Humanité, Libération, Le Nouvel Observateur, além de ser autor de 80 álbuns de quadrinhos.

””O senhor me perdoe, mas é Wolinski, o cartunista?”” Ele mesmo. Convida a sentar em sua mesa. Estamos num barco, uma daquelas tradicionais gaiolas amazônicas, rumo ao encontro das águas, onde o Rio Negro se junta ao Solimões para formar o Amazonas. Wolinski está visivelmente satisfeito com a natureza e as pessoas que o rodeiam, mas não se furta a responder se o clima continua propício para um cartunista na França. Sim, ele diz, Sarkozy (Nicolas Sarkozy, presidente francês) é ótimo tema para um desenhista satírico. ””Ele vive rodeado de assessores e conselheiros, que não o aconselham em nada, porque ele não deixa. É um hiperativo que nada faz, mas isso não se vê.”” Dizem que nem mesmo a mulher do presidente, Cécila, o agüenta. Verdade? ””Pobre Cécilia””, se compadece, irônico.

Pode-se falar horas e horas de política com Georges Wolinski. Afinal, ele mesmo se define como cronista da atualidade, ””do tempo que passa””. Mas exige certa reciprocidade. E, como tal, a cada pergunta sobre a França devolve com outra sobre o Brasil. Quer saber como vai o governo Lula, o que é o mensalão, como a direita reage a um governo de centro-esquerda, etc. Enfim, aplica ao repórter um verdadeiro questionário sobre a história recente brasileira, da época da ditadura até agora. ””Prefiro ouvir um jornalista do que ler livros de história””, resmunga. Diz que de Manaus sabe pouco porque fica isolado naquele hotel cinco-estrelas e não entra em contato com o povo. Mas há alguns anos esteve no Rio e ficou impressionado quando subiu um dos morros da cidade. ””Havia gente com armamento de guerra e tinha-se de pedir licença a eles para passar.”” O repórter pergunta se viu Tropa de Elite, a atual coqueluche sobre o tema. Diz que não, mas fica curioso em conhecer o filme de José Padilha.

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O cineasta francês Jean-Jacques Annaud, no traço de Wolinski

Wolinski é superviajado, conhece o mundo e gosta de ir além das fronteiras da Europa – ele que nasceu em Tunis, em 1933, e foi para a França pequeno. Visitou Cuba várias vezes. E o que pensa da ilha de Fidel? Resposta corrosiva: ””Cada vez tem menos daquilo que eu gosto e mais daquilo que eu não gosto.”” Mas tempera: ””Agora, é preciso compreender Cuba: nunca vi uma criança na rua, elas são cuidadas e têm todo o apoio do governo.”” E alfineta de novo: ””Mas não existe liberdade. Não há jornais livres e isso é o que de pior pode acontecer.”” Liberdade consentida não merece esse nome. Ele lembra de um amigo, argelino, cartunista também, que se diz totalmente livre para fazer seu trabalho, ””desde que não fale do presidente, do Exército e da religião.”” Ri: ””Pode?””

A liberdade é o fundamento. Por isso, por crítico que seja em relação à França, reconhece essa virtude fundamental em seu país: ””Na França, temos um verdadeiro culto à liberdade. Você não vai ver nenhum presidente, de direita, esquerda ou centro, propor o que seja para tolher a liberdade de alguém ou da imprensa. Nenhum deles vai falar em Deus, também, porque temos um outro culto, que é o do Estado laico, e que vem do Século das Luzes.”” Brinca: ””A liberdade é tudo que podemos ter, mesmo porque a justiça não existe.”” Quer uma prova?: ””Se a justiça existisse, todos os homens teriam o pênis do mesmo tamanho.”” Diante dessa constatação empírica da absoluta falta de justiça deste mundo, temos de nos contentar com a liberdade. E já é muito.

A piada abre uma brecha para outra pergunta: e o lado erótico da sua obra? Para Wolinski, não há mistério: ””Simplesmente gosto das mulheres, e amo desenhá-las.”” O resto é conseqüência. Como sua personagem Paulette, uma das musas dos quadrinhos dos anos 60, ao lado da clássica Valentina, de Guido Crepax.

Além de desenhá-las, Wolinski gosta também de falar das mulheres. Elogia suas companheiras de júri: a chinesa Bai Ling, a italiana Caterina Murino e a francesa Joana Preiss. Todas atrizes. E todas ””deliciosas””, segundo o juízo de Wolinski. Ele diz que busca a sensualidade até mesmo nas charges mais sérias. Se há uma mulher em cena, seja uma repórter ou mesmo uma política, busca algum traço sensual, uma transparência, uma saia mais curta, um detalhe do corpo. ””Procuro fazê-las sensuais – como a chinesa””, diz, espichando o olho para Bai Ling, que se refresca no chuveiro do barco, bem à vontade. Aliás, Bai Ling foi uma das modelos recorrentes de Wolinski durante o festival.

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Bai Ling, segundo Wolinski

Coté masculino? O Rambo dos pobres, Aldenir Coti, que andou o tempo todo paramentado como o personagem de Sylvester Stallone.
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Seria Wolinski um misógino? Nada disso. ””Fui talvez o primeiro a desenhar a mulher liberada, aquela que corre atrás do seu desejo e o manifesta para o homem.”” É assim seu álbum, de 1968, Je ne Pense qu””à Ça (Eu só penso nisso). E também sua personagem Paulette, nas histórias que escrevia em parceria com Pichard.

Os desenhos de mulheres saem naturalmente. Basta que uma delas lhe atice a libido, o que não parece tão difícil. Já as outras charges custam um pouco mais. Wolinski diz que há três fases em seu trabalho. Primeiro, a escolha do tema. ””É a parte mais difícil.”” Depois, a busca pela idéia, isto é, a forma de realizar o tema. Finalmente, o desenho – ””e esta é a fase mais fácil, sai num jato””, garante. Não há por que duvidar, vendo a facilidade com que anota o cotidiano à sua volta na implacável cadernetinha.
E o relacionamento com os políticos – ele que é tão crítico em relação a eles? ””Depois de tantos anos, a crítica também parece algo natural, e eles já se acostumaram a mim””, diz. Conta uma história. 

Depois de anos fazendo charges impiedosas de Jacques Chirac, encontrou o então presidente nas Ilhas de Reunião. Ambos em férias. E teve a surpresa de ser cumprimentado calorosamente pelo político, que se disse seu leitor e admirador. ””Qual não foi minha surpresa quando, na volta, ele me concedeu a Légion d””Honneur? Naturalmente, não estou com condecoração aqui””, diz, rindo-se.

O cartunista é sempre da oposição ou pode eventualmente apoiar algum governo? Wolinski responde de outra maneira: ””Essa é uma vasta discussão, que pode ser resumida assim: o humor pode ser de direita?”” Ele acha que não. A direita tem muitas certezas, e uma série de valores a defender. Alguém de direita pode ser bom satirista, nunca humorista. ””O humor é de esquerda, é uma lucidez na maneira de ver a sociedade que a direita não possui, por estar comprometida demais com a ordem estabelecida.””

Wolinski despertou para a política em momento privilegiado da esquerda francesa, o maio de 1968. Sobrou alguma coisa daquela época das barricadas do Quartier Latin? ””Com essa sua pergunta voltamos a Sarkozi, que deseja destruir a memória de 68. Não consigo entender esse ódio ao maio de 1968. Claro, havia aquele negócio maoísta e trotskista, que era mesmo muito chato, pois eram como sacerdotes e suas seitas… Mas o resto…””

E o que era o resto? ””Foi uma época de reflexão, de alegria, de busca da liberdade.”” Incluindo a liberdade sexual, que já vinha de antes e explode em 68. ””Nós nos aproveitamos muito bem da pílula… até que veio a aids. Mas, entre a pílula e a aids, foi o paraíso, uma festa.”” Pelo bom humor de Wolinski, a festa continua. Mais amena, mas festa, ainda assim.
Foto de Rô Caetano

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