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O Amazonas Film Festival prega peças na gente e traz um jurado de
nome Wolinski. Quem? Seria Georges Wolinski, o mitológico cartunista
francês? Pode ser. Afinal, o homem não larga o caderninho e passa o
tempo a desenhar os personagens do festival: colegas de júri, mulheres
que vê pela rua, os moradores da cidade, marinheiros do barco – e até o
repórter que o entrevista ganha uma caricatura. Com a grife Wolinski. É
ele mesmo, o satirista, chamado de erotômano, desenhista maldito, o
próprio espírito do maio de 68 francês, o homem que ilustrou páginas do
L””Humanité, Libération, Le Nouvel Observateur, além de ser autor de 80
álbuns de quadrinhos.
””O senhor me perdoe, mas é Wolinski, o cartunista?”” Ele mesmo.
Convida a sentar em sua mesa. Estamos num barco, uma daquelas
tradicionais gaiolas amazônicas, rumo ao encontro das águas, onde o Rio
Negro se junta ao Solimões para formar o Amazonas. Wolinski está
visivelmente satisfeito com a natureza e as pessoas que o rodeiam, mas
não se furta a responder se o clima continua propício para um cartunista
na França. Sim, ele diz, Sarkozy (Nicolas Sarkozy, presidente francês) é
ótimo tema para um desenhista satírico. ””Ele vive rodeado de
assessores e conselheiros, que não o aconselham em nada, porque ele não
deixa. É um hiperativo que nada faz, mas isso não se vê.”” Dizem que nem
mesmo a mulher do presidente, Cécila, o agüenta. Verdade? ””Pobre
Cécilia””, se compadece, irônico.
Pode-se falar horas e horas de política com Georges Wolinski. Afinal,
ele mesmo se define como cronista da atualidade, ””do tempo que
passa””. Mas exige certa reciprocidade. E, como tal, a cada pergunta
sobre a França devolve com outra sobre o Brasil. Quer saber como vai o
governo Lula, o que é o mensalão, como a direita reage a um governo de
centro-esquerda, etc. Enfim, aplica ao repórter um verdadeiro
questionário sobre a história recente brasileira, da época da ditadura
até agora. ””Prefiro ouvir um jornalista do que ler livros de
história””, resmunga. Diz que de Manaus sabe pouco porque fica isolado
naquele hotel cinco-estrelas e não entra em contato com o povo. Mas há
alguns anos esteve no Rio e ficou impressionado quando subiu um dos
morros da cidade. ””Havia gente com armamento de guerra e tinha-se de
pedir licença a eles para passar.”” O repórter pergunta se viu Tropa de
Elite, a atual coqueluche sobre o tema. Diz que não, mas fica curioso em
conhecer o filme de José Padilha.
Wolinski é superviajado, conhece o mundo e gosta de ir além das
fronteiras da Europa – ele que nasceu em Tunis, em 1933, e foi para a
França pequeno. Visitou Cuba várias vezes. E o que pensa da ilha de
Fidel? Resposta corrosiva: ””Cada vez tem menos daquilo que eu gosto e
mais daquilo que eu não gosto.”” Mas tempera: ””Agora, é preciso
compreender Cuba: nunca vi uma criança na rua, elas são cuidadas e têm
todo o apoio do governo.”” E alfineta de novo: ””Mas não existe
liberdade. Não há jornais livres e isso é o que de pior pode
acontecer.”” Liberdade consentida não merece esse nome. Ele lembra de um
amigo, argelino, cartunista também, que se diz totalmente livre para
fazer seu trabalho, ””desde que não fale do presidente, do Exército e da
religião.”” Ri: ””Pode?””
A liberdade é o fundamento. Por isso, por crítico que seja em relação
à França, reconhece essa virtude fundamental em seu país: ””Na França,
temos um verdadeiro culto à liberdade. Você não vai ver nenhum
presidente, de direita, esquerda ou centro, propor o que seja para
tolher a liberdade de alguém ou da imprensa. Nenhum deles vai falar em
Deus, também, porque temos um outro culto, que é o do Estado laico, e
que vem do Século das Luzes.”” Brinca: ””A liberdade é tudo que podemos
ter, mesmo porque a justiça não existe.”” Quer uma prova?: ””Se a
justiça existisse, todos os homens teriam o pênis do mesmo tamanho.””
Diante dessa constatação empírica da absoluta falta de justiça deste
mundo, temos de nos contentar com a liberdade. E já é muito.
A piada abre uma brecha para outra pergunta: e o lado erótico da sua
obra? Para Wolinski, não há mistério: ””Simplesmente gosto das mulheres,
e amo desenhá-las.”” O resto é conseqüência. Como sua personagem
Paulette, uma das musas dos quadrinhos dos anos 60, ao lado da clássica
Valentina, de Guido Crepax.
Além de desenhá-las, Wolinski gosta também de falar das mulheres.
Elogia suas companheiras de júri: a chinesa Bai Ling, a italiana
Caterina Murino e a francesa Joana Preiss. Todas atrizes. E todas
””deliciosas””, segundo o juízo de Wolinski. Ele diz que busca a
sensualidade até mesmo nas charges mais sérias. Se há uma mulher em
cena, seja uma repórter ou mesmo uma política, busca algum traço
sensual, uma transparência, uma saia mais curta, um detalhe do corpo.
””Procuro fazê-las sensuais – como a chinesa””, diz, espichando o olho
para Bai Ling, que se refresca no chuveiro do barco, bem à vontade.
Aliás, Bai Ling foi uma das modelos recorrentes de Wolinski durante o
festival.
Coté masculino? O Rambo dos pobres, Aldenir Coti, que andou o tempo todo paramentado como o personagem de Sylvester Stallone.
Seria Wolinski um misógino? Nada disso. ””Fui talvez o primeiro a
desenhar a mulher liberada, aquela que corre atrás do seu desejo e o
manifesta para o homem.”” É assim seu álbum, de 1968, Je ne Pense qu””à
Ça (Eu só penso nisso). E também sua personagem Paulette, nas histórias
que escrevia em parceria com Pichard.
Os desenhos de mulheres saem naturalmente. Basta que uma delas lhe
atice a libido, o que não parece tão difícil. Já as outras charges
custam um pouco mais. Wolinski diz que há três fases em seu trabalho.
Primeiro, a escolha do tema. ””É a parte mais difícil.”” Depois, a busca
pela idéia, isto é, a forma de realizar o tema. Finalmente, o desenho –
””e esta é a fase mais fácil, sai num jato””, garante. Não há por que
duvidar, vendo a facilidade com que anota o cotidiano à sua volta na
implacável cadernetinha.
E o relacionamento com os políticos – ele que é tão crítico em
relação a eles? ””Depois de tantos anos, a crítica também parece algo
natural, e eles já se acostumaram a mim””, diz. Conta uma história.
Depois de anos fazendo charges impiedosas de Jacques Chirac, encontrou o
então presidente nas Ilhas de Reunião. Ambos em férias. E teve a
surpresa de ser cumprimentado calorosamente pelo político, que se disse
seu leitor e admirador. ””Qual não foi minha surpresa quando, na volta,
ele me concedeu a Légion d””Honneur? Naturalmente, não estou com
condecoração aqui””, diz, rindo-se.
O cartunista é sempre da oposição ou pode eventualmente apoiar algum
governo? Wolinski responde de outra maneira: ””Essa é uma vasta
discussão, que pode ser resumida assim: o humor pode ser de direita?””
Ele acha que não. A direita tem muitas certezas, e uma série de valores a
defender. Alguém de direita pode ser bom satirista, nunca humorista.
””O humor é de esquerda, é uma lucidez na maneira de ver a sociedade que
a direita não possui, por estar comprometida demais com a ordem
estabelecida.””
Wolinski despertou para a política em momento privilegiado da
esquerda francesa, o maio de 1968. Sobrou alguma coisa daquela época das
barricadas do Quartier Latin? ””Com essa sua pergunta voltamos a
Sarkozi, que deseja destruir a memória de 68. Não consigo entender esse
ódio ao maio de 1968. Claro, havia aquele negócio maoísta e trotskista,
que era mesmo muito chato, pois eram como sacerdotes e suas seitas… Mas o
resto…””
E o que era o resto? ””Foi uma época de reflexão, de alegria, de
busca da liberdade.”” Incluindo a liberdade sexual, que já vinha de
antes e explode em 68. ””Nós nos aproveitamos muito bem da pílula… até
que veio a aids. Mas, entre a pílula e a aids, foi o paraíso, uma
festa.”” Pelo bom humor de Wolinski, a festa continua. Mais amena, mas
festa, ainda assim.
Foto de Rô Caetano
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