O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

quarta-feira, 7 de março de 2012

A propósito de uma crônica de Vinicius de Moraes.


Depois da Guerra, ah meu Deus, depois da Guerra,
como eu vou tirar a forra de um jejum longo de farra!

Vinicius de Moraes



O fim da Segunda Guerra, como se sabe, foi decretado e saudado pelas mesmas forças que a travaram. A expectativa da paz perpétua, em tais condições, como é óbvio, não podia sustentar-se nas próprias pernas. A não ser pelo recurso da ironia.

O poeta estava consciente disso. Mas, ingenuidade deliberada à parte, cumpriu (ironicamente) a função de arauto dos “novos tempos”. Justifica-se, ou pode-se considerar aceitável a escolha frente à beleza comovente da crônica?

Ambas as coisas coexistem. A apreciação política revela imediatamente o erro de posicionamento. Mas a beleza da crônica comove o coração. Ficamos nisso. Ou não, já que, sem o equívoco político, a beleza desafiadora do texto não teria vindo à luz.

Da minha parte, lamento o erro. Já deveríamos ter aprendido que é necessário suspeitar de toda e qualquer unanimidade fácil (mesmo de esquerda) em torno das grandes contradições da história.

Pior, então, é a tentativa sovina de lavar com lágrimas o corpo das vítimas – afinal, pode existir comoção pública de esquerda?  

(por exemplo: a lamúria desmedida da classe-média diante do massacre do pinheirinho. As lágrimas foram tantas, e tão higiênicas, que lavaram inclusive o verniz político do discurso indignado).

De qualquer modo, repito: a crônica de Vinicius comove. Contraditório? Que seja. Já esperando respostas unilaterais, diria novamente, só de raiva e  em respeito ao poeta: não interessa o erro político, a crônica é de fato comovente.

Tem-se a impressão de que o otimismo é a última carta na manga de que dispõe o poeta para se manter vivo – otimismo? Sim, como disse, trata-se de se manter vivo (justificativa que, à exceção dos poetas, não se aplica a mais ninguém).

O poeta encadeia na carne a utopia, oferecida em troca de atenção. Projeta também – na medida do possível - imagens nítidas do amanhã, concebe o autoconhecimento sexual das mulheres, e coisas do gênero. Tudo isso no mundo pós-catástrofe (?)

Sem dúvida, o mais criativo dos pessimistas, lendo a crônica de Vinicius em 1944, provavelmente riria de contentamento. Nada mais natural, onde se revela a seus olhos o mais criativo dos otimistas.

Abre então a janela de seu apartamento, e grita “help!” aos meninos que, indiferentes, procuram moedas nas longas calçadas de Copacabana.

É grande a régua que mede a sua utopia, segundo a regrinha que chamaria de “mão-dupla dos contrários” (proporcionalidade inversa). É o tamanho correspondente aos horrores promovidos na guerra: quanto maior o requinte de crueldade, maior serão os detalhes imaginados da vida pacificada – a ser inaugurada, bem entendido, pelos próprios carniceiros.

Até hoje, aliás, o poeta é ludibriado – quando na verdade deixa-se ludibriar, pela coincidência inevitável que supostamente enxerga entre o verso e o discurso pacifista. Paciência. Logo explode.

Quanto a nós, novamente: não nos deixemos vencer pelo eterno ponto em cruz de tais questões espinhosas (me refiro à dificuldade exaustiva de apreender a relação entre arte e política). Antes se fascinar pelas contradições – sobretudo a de classe – do que supô-las resolvidas de antemão.

A obra de Vinicius, ao que parece, é regida por um movimento duplo: de um lado, a fuga do real que cobra continuamente seu retorno; de outro, aproximações assombrosas deste mesmo real (lembremos, por exemplo, a Rosa de Hiroshima), que conduz novamente à necessidade de fuga.

É o que se vê, aparentemente, na crônica abaixo. O coração comanda!

                                                         ***       
Depois da guerra.

Maio de 1944

Depois da Guerra vão nascer lírios nas pedras, grandes lírios cor de sangue, belas rosas desmaiadas. Depois da Guerra vai haver fertilidade, vai haver natalidade, vai haver felicidade. Depois da Guerra, ah meu Deus, depois da Guerra, como eu vou tirar a forra de um jejum longo de farra! Depois da Guerra vai-se andar só de automóvel, atulhado de morenas todas vestidas de short. Depois da Guerra, que porção de preconceitos vão se acabar de repente com respeito à castidade! Moças saudáveis serão vistas pelas praias, mamães de futuros gêmeos, futuros gênios da pátria. Depois da Guerra, ninguém bebe mais bebida que não tenha um bocadinho de matéria alcoolizante. A coca-cola será relegada ao olvido, cachaça e cerveja muita, que é bom pra alegrar a vida! Depois da Guerra não se fará mais a barba, gravata só pra museu, pés descalços, braços nus. Depois da Guerra, acabou burocracia, não haverá mais despachos, não se assina mais o ponto. Depois da Guerra ninguém corta mais as unhas, que elas já nascem cortadas para o resto da existência. Depois da Guerra não se vai mais ao dentista, nunca mais motor no nervo, nunca mais dente postiço. Vai haver cálcio, vitamina e extrato hepático correndo nos chafarizes, pelas ruas da cidade. Depois da Guerra vão voltar os bons tempinhos do carnaval carioca com muito confete, entrudo e briga. Depois da Guerra, pirulim, depois da Guerra, vai surgir um sociólogo de espantar Gilberto Freyre. Vai-se estudar cada coisa mais gozada, por exemplo, a relação entre o cosmos e a mulata. Grandes poetas farão grandes epopéias, que deixarão no chinelo Camões, Dante e Itararé. Depois da Guerra meu amigo Graciliano pode tirar o chinelo e ir dormir a sua sesta

(...)

O poeta Shimidt voltará à poesia, de que anda desencantado, e escreverá grandes livros. Quem quiser ver o poeta Carlos criando ligará a televisão, lá está ele, que homem magro! Manuel Bandeira dará aula em praça pública, sua voz seca soando num bruto de um megafone. Murilo Mendes ganhará um autogiro, trará mensagens de Vênus, ensinando o povo a amar. Aníbal Machado são como nunca. Ah, quem me dera que essa Guerra logo acabe e os homens criem juízo e aprendam a viver a vida. No meio tempo, vamos dando tempo ao tempo, tomando nosso chopinho, trabalhando pra família. Se cada um ficar quieto no seu canto, fazendo as coisas certinho, sem aturar desaforo; se cada um tomar vergonha na cara, for pra guerra, for pra fila com vontade e paciência – não é possível! Esse negócio melhora, porque ou muito me engano, ou tudo isso não passa de um grande, de um doloroso, de um atroz mal-entendido!

Vinicius de Moraes, maio de 1944.



João. 

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