Depois da Guerra,
ah meu Deus, depois da Guerra,
como eu vou
tirar a forra de um jejum longo de farra!
O
fim da Segunda Guerra, como se sabe, foi decretado e saudado pelas mesmas
forças que a travaram. A expectativa da paz perpétua, em tais condições, como é
óbvio, não podia sustentar-se nas próprias pernas. A não ser pelo recurso da
ironia.
O
poeta estava consciente disso. Mas, ingenuidade deliberada à parte, cumpriu (ironicamente)
a função de arauto dos “novos tempos”. Justifica-se, ou pode-se considerar aceitável
a escolha frente à beleza comovente da crônica?
Ambas
as coisas coexistem. A apreciação política revela imediatamente o erro de
posicionamento. Mas a beleza da crônica comove o coração. Ficamos nisso. Ou não,
já que, sem o equívoco político, a beleza desafiadora do texto não teria vindo à luz.
Da minha parte, lamento o erro. Já deveríamos ter aprendido que é necessário suspeitar de toda e qualquer unanimidade fácil (mesmo de esquerda) em torno das grandes contradições da história.
Pior, então, é a tentativa sovina de lavar
com lágrimas o corpo das vítimas – afinal, pode existir comoção pública de esquerda?
(por exemplo: a lamúria desmedida da
classe-média diante do massacre do pinheirinho. As lágrimas foram tantas, e tão
higiênicas, que lavaram inclusive o verniz político do discurso indignado).
De
qualquer modo, repito: a crônica de Vinicius comove. Contraditório? Que seja. Já
esperando respostas unilaterais, diria novamente, só de raiva e em respeito ao poeta: não interessa o erro político, a crônica é de fato comovente.
Tem-se
a impressão de que o otimismo é a última carta na manga de que dispõe o poeta
para se manter vivo – otimismo? Sim, como disse, trata-se de se manter vivo
(justificativa que, à exceção dos poetas, não se aplica a mais ninguém).
O
poeta encadeia na carne a utopia, oferecida em troca de atenção. Projeta também
– na medida do possível - imagens nítidas do amanhã, concebe o autoconhecimento
sexual das mulheres, e coisas do gênero. Tudo isso no mundo pós-catástrofe (?)
Sem
dúvida, o mais criativo dos pessimistas, lendo a crônica de Vinicius em 1944,
provavelmente riria de contentamento. Nada mais natural, onde se revela a seus
olhos o mais criativo dos otimistas.
Abre
então a janela de seu apartamento, e grita “help!” aos meninos que,
indiferentes, procuram moedas nas longas calçadas de Copacabana.
É
grande a régua que mede a sua utopia, segundo a regrinha que chamaria de “mão-dupla
dos contrários” (proporcionalidade inversa). É o tamanho correspondente aos
horrores promovidos na guerra: quanto maior o requinte de crueldade, maior serão
os detalhes imaginados da vida pacificada – a ser inaugurada, bem entendido,
pelos próprios carniceiros.
Até
hoje, aliás, o poeta é ludibriado – quando na verdade deixa-se ludibriar, pela
coincidência inevitável que supostamente enxerga entre o verso e o discurso pacifista. Paciência. Logo explode.
Quanto
a nós, novamente: não nos deixemos vencer pelo eterno ponto em cruz de tais questões espinhosas
(me refiro à dificuldade exaustiva de apreender a relação entre arte e política).
Antes se fascinar pelas contradições – sobretudo a de classe – do que supô-las
resolvidas de antemão.
A
obra de Vinicius, ao que parece, é regida por um movimento duplo: de um lado, a
fuga do real que cobra continuamente seu retorno; de outro, aproximações
assombrosas deste mesmo real (lembremos, por exemplo, a Rosa de Hiroshima), que
conduz novamente à necessidade de fuga.
É
o que se vê, aparentemente, na crônica abaixo. O coração comanda!
***
Depois da guerra.
Maio de 1944
Depois da Guerra vão nascer lírios nas pedras,
grandes lírios cor de sangue, belas rosas desmaiadas. Depois da Guerra vai
haver fertilidade, vai haver natalidade, vai haver felicidade. Depois da Guerra,
ah meu Deus, depois da Guerra, como eu vou tirar a forra de um jejum longo de farra!
Depois da Guerra vai-se andar só de automóvel, atulhado de morenas todas
vestidas de short. Depois da Guerra, que porção de preconceitos vão se acabar
de repente com respeito à castidade! Moças saudáveis serão vistas pelas praias,
mamães de futuros gêmeos, futuros gênios da pátria. Depois da Guerra, ninguém bebe
mais bebida que não tenha um bocadinho de matéria alcoolizante. A coca-cola será
relegada ao olvido, cachaça e cerveja muita, que é bom pra alegrar a vida!
Depois da Guerra não se fará mais a barba, gravata só pra museu, pés descalços,
braços nus. Depois da Guerra, acabou burocracia, não haverá mais despachos, não
se assina mais o ponto. Depois da Guerra ninguém corta mais as unhas, que elas
já nascem cortadas para o resto da existência. Depois da Guerra não se vai mais
ao dentista, nunca mais motor no nervo, nunca mais dente postiço. Vai haver cálcio,
vitamina e extrato hepático correndo nos chafarizes, pelas ruas da cidade.
Depois da Guerra vão voltar os bons tempinhos do carnaval carioca com muito
confete, entrudo e briga. Depois da Guerra, pirulim, depois da Guerra, vai
surgir um sociólogo de espantar Gilberto Freyre. Vai-se estudar cada coisa mais
gozada, por exemplo, a relação entre o cosmos e a mulata. Grandes poetas farão
grandes epopéias, que deixarão no chinelo Camões, Dante e Itararé. Depois da
Guerra meu amigo Graciliano pode tirar o chinelo e ir dormir a sua sesta
(...)
O poeta Shimidt voltará à poesia, de que anda
desencantado, e escreverá grandes livros. Quem quiser ver o poeta Carlos
criando ligará a televisão, lá está ele, que homem magro! Manuel Bandeira dará
aula em praça pública, sua voz seca soando num bruto de um megafone. Murilo
Mendes ganhará um autogiro, trará mensagens de Vênus, ensinando o povo a amar. Aníbal
Machado são como nunca. Ah, quem me dera que essa Guerra logo acabe e os homens
criem juízo e aprendam a viver a vida. No meio tempo, vamos dando tempo ao
tempo, tomando nosso chopinho, trabalhando pra família. Se cada um ficar quieto
no seu canto, fazendo as coisas certinho, sem aturar desaforo; se cada um tomar
vergonha na cara, for pra guerra, for pra fila com vontade e paciência – não é
possível! Esse negócio melhora, porque ou muito me engano, ou tudo isso não
passa de um grande, de um doloroso, de um atroz mal-entendido!
Vinicius
de Moraes, maio de 1944.
João.
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