“A literatura confirma e nega, propõe e
denuncia,
apóia e combate, fornecendo a possibilidade
de vivermos
dialeticamente os problemas. (...) mas convém
lembrar que ela
não é uma experiência inofensiva, mas uma
aventura
que pode causar problemas psíquicos e
morais, como acontece
com a própria vida, da qual é imagem e
transfiguração”
(Antonio Candido – O
Direito à Literatura)
São Bernardo (1934), de Graciliano Ramos, nas palavras de João Luiz
Lafetá, “tem a força de uma tragédia rural brasileira”. Não precisaríamos da
literatura para saber que o meio rural, no Brasil, constitui-se inteiramente
sob o signo da tragédia. Mas a
consciência longínqua da devastação não permite avaliar o alcance de suas
raízes subjetivas. Nesse sentido, o livro de Graciliano Ramos escava,
escarafuncha terreno fértil.
Trata-se de “corporificar” (1) a brutalidade. O corpo, no caso, tem nome: Paulo Honório - personagem principal da trama. Podemos,
então, conhecer as profundezas sombrias de um homem, sobrevivendo num meio
historicamente delimitado. Força expressiva que revela o império da força
bruta. Ou ainda nas palavras definitivas de Lafetá: “a objetividade do estilo
[que] desvela o mundo reificado”.
Não raro, o estilo apurado de
Graciliano Ramos sugere uma espécie de recessão criativa. A clareza da
linguagem, entretanto, não é valor abstrato. Trata-se de uma visão amadurecida
da vida que se traduz em técnica narrativa (2).
De outro lado não podemos confundir com a velha “linguagem das coisas”: não se
trata de puro mimetismo. Se assim fosse, exigiríamos o fim da criação artística
– a imitação “pura”, como sabemos, é anticriativa.
Expressividade do estilo que,
por conseguinte, não contradiz a economia verbal. Dizer, também, que se completam,
ainda é pouco. Trata-se da mesma coisa: o estilo apurado em Graciliano é
resultado nítido do labor incansável da criação, à maneira de Machado. Conquista
da clareza ideal, portanto, é aqui sinônimo inequívoco de amadurecimento
literário.
A título de exemplo, assinalo
um mecanismo no mínimo interessante: o prazer da leitura aumenta na medida em
que o conteúdo do romance se torna mais brutal. Do mesmo modo, correlato,
quanto mais Paulo Honório se tranca e afunda em contradição, mais solta corre a
narrativa – alargando suas virtualidades. Podemos dizer, nesse sentido - e para
todas as medidas - que brutalidade, no caso, é eufemismo.
Assim, a prosa de São Bernardo
vence o leitor por nocaute. É Paulo Honório, esmigalhando seus “adversários”.
Tudo, desde as palavras eleitas, até a brutalidade sempre renovada e inesperada
dos diálogos, parece lucidamente tensionado no sentido de expor a
monstruosidade humana (3). Os
personagens, a começar por Paulo Honório, revelam-se figuras sensíveis, numa
prosa com raro poder de humanização.
A
violência perpetuada
O procedimento estilístico é a
chave dos segredos envolvidos na construção do romance. A habilidade do
escritor chega até nós pela violência de Paulo Honório. Onde estamos? Quais os
segredos literários do feito? Sua fatura... A chave, no entanto, está ao
alcance da mão: é pelo conteúdo da obra que se manifesta a força do estilo.
Foram dadas indicações
parciais. De todo modo, podemos dizer: São Bernardo é uma sucessão esmagadora
de fatos. Em ritmo acelerado, vemos passar toda a vida de Paulo Honório sob
nossos olhos, narrada e rememorada por ele mesmo. Ascensão e queda: trabalhador
braçal; fazendeiro rico; solidão e loucura. Tudo, por assim dizer, em linha
reta.
A velocidade da ação talvez se
explique por se tratar de memórias. Paulo tenta justificar-se nesse sentido.
Diz, por exemplo, que reduziu o passado ao mínimo
necessário. Essencial, aqui, é sintoma de violência e incompreensão; o
próprio narrador admite, em primeiríssima pessoa. Restaria, pois, algo mais a
dizer? Haveria algo mais na vida de Paulo Honório que não se confunda com a
história de sua propriedade, a fazenda São Bernardo? Difícil. Paulo Honório, no
fundo, é São Bernardo.
Nesse sentido, o ritmo acelerado
do enredo é efeito da técnica rajada de Graciliano. Narrado em primeira pessoa,
como foi dito, a notícia dos efeitos produzidos pela violência de Paulo Honório
nos chega pela boca do próprio agressor. É o ímpeto destrutivo que não pode
conter-se diante de si mesmo; ao contrário: alimenta-se dos restos humanos que
deixa no caminho. Tudo reforçado ao extremo: obsessão, baixa auto-estima,
instinto de propriedade, ciúmes, etc., chegando às raias do delírio.
Paulo Honório é um homem
engasgado. Consciência, ou bomba-relógio? Bestialógico, sem dúvida, é todo
sentimento de propriedade. Como um balão, infla, ao deparar-se com a
fragilidade humana de suas vítimas. Não pode suportar que os empregados notem
seus equívocos: insatisfeito com si próprio castiga-os severamente. Vejamos,
pois, como funciona no romance esse mecanismo
psicológico de perpetuação da violência, numa passagem em que Paulo Honório
espanca um empregado:
- Acabei o serviço, seu Paulo,
gaguejou Marciano, perfilando-se.
- Acabou nada!
- Acabei, senhor, sim. Juro por
esta luz que nos alumia.
- Mentiroso. Os animais estão morrendo de
fome, roendo a madeira.
Marciano
teve um rompante:
- Ainda agorinha os cochos estavam cheios.
Nunca vi gado comer tanto. E ninguém agüenta mais viver nesta terra. Não se
descansa.
Era
verdade, mas nenhum empregado me havia ainda falado de semelhante modo.
- Você está se fazendo de besta, seu corno?
Mandei-lhe
o braço ao pé do ouvido e derrubei-o. Levantou-se zonzo, bambeando, recebeu
mais uns cinco trompaços e levou outras tantas quedas. A última deixou-o
esperneando na poeira. Enfim ergueu-se e saiu de cabeça baixa, trocando os
passos e limpando com a manga o nariz, que escorria sangue. Estive uns minutos
soprando.
Coisificação
Oculta?
Havíamos dito que a história de
Paulo Honório não ultrapassa os limites espaciais, e principalmente temporais,
de sua propriedade, a fazenda São Bernardo. Ao contrário do que sugere o
narrador, os fatos de sua vida encerram-se, efetivamente, num apanhado de
socos, ponta-pés e variantes. Mas nem por isso deixam de existir fatos ocultos,
acessíveis por dedução, numa rede de violências aludidas que se espalham ao
longo da narrativa.
Informações ambíguas,
possivelmente dispensáveis ao narrador (mas imprescindíveis à narrativa),
chegam à luz em função do mecanismo assinalado de perpetuação da violência. É
possível vislumbrar, no acontecido, sua gênese. Podemos deduzir outra
infinitude de brutalidades imbricadas no tronco dos fatos narrados por Paulo
Honório.
O mecanismo estende-se para o
interior da personalidade, revelando-se elemento constitutivo, e ao mesmo tempo
autofágico: força que lhe dá forma no presente, mas que o deforma
irremediavelmente no futuro. Incontrolável, Paulo Honório é obrigado a reeditar
o pacto com a destruição, devido ao caráter irreversível das violências já praticadas.
Do contrário, o passado perderia completamente o sentido, pondo em risco o
núcleo de sua personalidade, corroída sob o efeito devastador da gratuidade –
como ocorre, efetivamente, ao final da obra.
A lógica da autoridade
reiterada, que fornece unidade à personalidade de Paulo Honório, inscreve-se no
próprio arranjo verbal de suas memórias. Matéria – passado brutal - que se
impõe como fratura exposta: modus
operandi do qual não se pode esquivar, sob pena de tornar-se absolutamente
inverossímil. O passado é composto de uma dinâmica própria. Noutras palavras, a
mesma força que impeliu Paulo Honório a uma vida de excessos, impede-o agora de
sonegar ou ignorar os fatos.
Assim é que descobrimos, por
exemplo, um “segredo” do narrador, em relação à Rosa, esposa de Marciano,
aquele mesmo que fora espancado:
“O
Marciano conheceria as minhas relações com a Rosa? Não conhecia. Tive sempre o
cuidado de mandá-lo à cidade, a compras, oportunamente. E talvez não quisesse
conhecer. Também, se poderia admitir que fosse dotado de pouca penetração”.
[grifo meu].
Tem-se a impressão de uma
espécie de personalidade tentacular.
Não sendo capaz, a princípio, de vigiar e dominar a multiplicidade de seres e
coisas a seu redor, o impulso interior que o move parece suprir a ausência de
tentáculos. Era capaz, e o fazia conscientemente, de aniquilar a existência
alheia por todos os lados, cercando-a, e adiantando-se a prováveis formas de
resistência.
Outro exemplo é Padilha,
ex-proprietário da fazenda São Bernardo. Atuando em partes sensíveis de seu
caráter – vícios, mulheres, bebidas, etc. - Paulo Honório envolve-o aos poucos,
e, num piscar de olhos, toma-lhe fazenda e cuecas. Quando o leitor dá conta, na
metade do romance, a imagem de Padilha impressiona: o antigo proprietário
tornou-se simples agregado, semi-escravizado, vivendo à sombra de um gigante
espezinhador.
São personagens que ficam no
caminho, aniquiladas, enquanto aumenta a sensação de trote, pois somos
obrigados a deixá-los, também nós leitores: o protagonista é o condutor,
tornando-nos íntimos dos arrancos de sua sensibilidade embotada.
Lirismo, termo de comparação?
É ainda
no domínio das implicações profundas derivadas do narrador em primeira pessoa
que tentarei estabelecer a comparação com uma canção de Milton Nascimento,
“Morro Velho”. De fato, num romance de cunho social tão latente e corrosivo,
pareceria absurdo falar em lirismo. (Nas palavras de Otto Maria Carpoux, todos
os romances de Graciliano são verdadeiras “tentativas de destruição”).
É
importante dizer, no entanto: lirismo, aqui, não se confunde com moral. O
romance de Mestra Graça (como era chamado Graciliano entre amigos) é magistral
como realização literária – único ponto que interessa. O equilíbrio interno - vida palpitante da
forma - é a beleza regeneradora do conteúdo. Sem dúvida, há qualquer coisa de
beleza monumental na capacidade de expor artisticamente o sumo profundo do
real.
A
questão que se coloca é a seguinte: haveria lirismo em São Bernardo enquanto exaltação de aspectos humanos da
realidade exposta? À luz da canção de Milton Nascimento poderíamos vislumbrar,
talvez, essa dimensão de apelo em São Bernardo. Adianto: embora conduzido em
primeira pessoa, o leitor não fica completamente indiferente aos sofrimentos
gerados por Paulo Honório. O distanciamento agressivo não cancela a
identificação. Ao contrário, o ponto de vista das vítimas retorna com força,
situando-se no ponto menos esperado: na própria consciência de Paulo Honório.
Assim,
o aniquilamento total do outro é,
dialeticamente, sua afirmação suprema na carne do agressor. Não se trata de
relativizar o jogo da dominação (afinal de contas, a morte não é virtual). Por
outro lado, aceitar simplesmente a hipótese
do esmagamento absoluto, sem resíduos que indiquem probabilidade mínima de
uma restituição do outro, além de incompreensão dos mecanismos de reprodução da
violência, pode resultar em identificação sádica com o ponto de vista do
agressor.
Cobrança
que, de qualquer modo, inexiste. Ecoa suspensa, porém ensurdecedora, na própria
construção do romance, a voz dos oprimidos. O procedimento é relativamente
simples: o artista observa e analisa as formas sociais pela qual se revela o
ímpeto destrutivo de aniquilamento do outro. Compreendido em profundidade, os
anseios, as palavras, os gestos, etc., são absorvidos pelo processo criativo, a
ponto de fundamentar a técnica do autor.
Logo se
vê: não se trata de um simples manejo de fatos, isto é, criação ou reprodução
simples da violência banalizada. Há o elemento subjetivo, aspecto mediador da
ação objetiva, como na própria realidade: a violência existe muito antes de
manifestar-se objetivamente. Ou, noutras palavras: é continua, porquanto nem
sempre objetiva. O forte em São Bernardo
não são os atos e palavras de Paulo Honório, mas o “pensamento” e as obsessões
íntimas que o sufocam, tornando a violência absolutamente irreprimível.
Razões,
justificativas e argumentos repetitivos, impulsos cegos, etc., irradiadores da
morte, engendram-se desde o interior mais fundo da alma. É no diálogo de Paulo
Honório consigo mesmo que observamos a impossibilidade última de supressão
definitiva do outro. Referência
negativa, os demais seres humanos a seu redor não podem desaparecer de seu
horizonte consciente, ao contrário: crescem como gigantes perturbadores à
medida que tenta convencer-se de sua insignificância.
É o
ponto de inflexão da história, quando as vítimas revelam-se virtuais
protagonistas. Existiria São Bernardo sem o braço dos trabalhadores? Paulo
Honório não os pode remover do espaço, tanto quanto de sua consciência, sob
pena de falir nos negócios, pondo em risco sua sanidade.
***
A bela
canção de Milton Nascimento exemplifica o argumento. Narrada em terceira
pessoa, conta a história da amizade entre dois garotos (“filho de branco, e do preto”). Distancia pela qual o narrador pode expor o conjunto dos aspectos que constituem a
relação. Ora no branco, ora no preto,
o narrador se identifica incessantemente com o ponto de vista dos personagens
da canção:
No sertão da minha terra
Fazenda é o camarada que ao chão se deu
Fez a obrigação com força
Parece até que tudo aquilo li é seu.
O
afastamento do ponto de vista de ambos - franca abertura para o lirismo –
ocorre, sobretudo, para exaltar-se aspectos naturais do meio:
Só poder sentar no morro
E ver tudo verdinho
Lindo a crescer
Mas,
logo adiante, contrastando com o sentimento de igualdade suscitado pelas
imagens do meio, descobre-se, aos olhos
do ouvinte, a lei do privilégio (branco):
Orgulhoso camarada
De viola em vês de enxada
Contraposição
evidente de planos: de um lado a amizade e a beleza da terra (igualdade); de outro, direito, a diferença de classe, que é (des)
privilégio de gozo (desigualdade). Em
certo momento, então, a ilusão - chave-mestra, quem sabe, da canção:
Pela plantação adentro
Correndo os dois meninos
Sempre pequeninos
O lado
direito vence. A construção da música, desde a melodia (violão de abertura),
que traduz perfeitamente o ponto de vista dramático do trabalhador – e da
amizade destruída pela lei da desigualdade combinada -, até a letra, alimentada
pela tensão da dominação alternada,
comove e faz sentir, liricamente, a derrota do lírico.
Trata-se
de uma oposição - no romance de Graciliano a voz que narra é a do privilégio.
Aproximação rasa. O interesse reside na apreensão dos mecanismos de perpetuação
da desigualdade, acessíveis pela forma artística que os penetra - elemento
construtivo própria obra.
Em
ambos os casos, enfim, observa-se nos elementos formais (posição do narrador;
escolha das palavras; entonação dos diálogos; melodia; ritmo da narrativa;
etc.) quando bem articulados, permitem conhecimento profundo – muitas vezes
intuitivo - da realidade histórica.
Notas:
1 – “Paulo Honório é
modalidade de uma força que o transcende e em função da qual vive: o sentimento
de propriedade (...) S. Bernardo é centralizado pela irrupção duma
personalidade forte, e esta, a seu turno, pela tirania de um sentimento
dominante. Como um herói de Balzac, Paulo Honório corporifica uma paixão, de
que tudo mais (...) não passa de variante”. (Antonio Candido, Ficção e Confissão. Rio, José Olympio,
1956, p. 25 e 30).
2 - Bakhitn,
refletindo sobre a relação do autor com sua
personagem (herói) define do seguinte modo o amadurecimento da visão de
mundo: “a reação global ao herói [por
parte do autor] é assinalada por uma
posição de princípio, produtiva e criadora”. E generaliza, a seguir: “De uma maneira geral, uma relação
assinalada por uma posição de princípio é produtiva e criadora”.
3 – Antonio Candido, comentando os romances em primeira
pessoa de Graciliano Ramos, diz: “a série
de romances escritos em primeira pessoa – Caetés, S. Bernardo, Angústia –
constituem essencialmente uma pesquisa progressiva da alma humana, no sentido
de descobrir o que vai de mais recôndito no homem, sob as aparências da vida
superficial. Poderíamos dizer, usando linguagem dostoievskiana, que essa
pesquisa tenta descobrir o homem subterrâneo, a nossa parte reprimida, que opõe
a sua irredutível, por vezes tenebrosa singularidade, ao equilíbrio padronizado
do ser social”. (Antonio Candido, Os
Bichos do Subterrâneo, Tese e Antítese. São Paulo, Companhia Editora Nacional,
1967, p. 97).
João .
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