O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

São Bernardo (Morro Velho)



“A literatura confirma e nega, propõe e denuncia,
apóia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos
dialeticamente os problemas. (...) mas convém lembrar que ela
não é uma experiência inofensiva, mas uma aventura
que pode causar problemas psíquicos e morais, como acontece
com a própria vida, da qual é imagem e transfiguração”

(Antonio Candido – O Direito à Literatura)


São Bernardo (1934), de Graciliano Ramos, nas palavras de João Luiz Lafetá, “tem a força de uma tragédia rural brasileira”. Não precisaríamos da literatura para saber que o meio rural, no Brasil, constitui-se inteiramente sob o signo da tragédia. Mas a consciência longínqua da devastação não permite avaliar o alcance de suas raízes subjetivas. Nesse sentido, o livro de Graciliano Ramos escava, escarafuncha terreno fértil.
 
Trata-se de “corporificar” (1) a brutalidade. O corpo, no caso, tem nome: Paulo Honório - personagem principal da trama. Podemos, então, conhecer as profundezas sombrias de um homem, sobrevivendo num meio historicamente delimitado. Força expressiva que revela o império da força bruta. Ou ainda nas palavras definitivas de Lafetá: “a objetividade do estilo [que] desvela o mundo reificado”.

Não raro, o estilo apurado de Graciliano Ramos sugere uma espécie de recessão criativa. A clareza da linguagem, entretanto, não é valor abstrato. Trata-se de uma visão amadurecida da vida que se traduz em técnica narrativa (2). De outro lado não podemos confundir com a velha “linguagem das coisas”: não se trata de puro mimetismo. Se assim fosse, exigiríamos o fim da criação artística – a imitação “pura”, como sabemos, é anticriativa.

Expressividade do estilo que, por conseguinte, não contradiz a economia verbal. Dizer, também, que se completam, ainda é pouco. Trata-se da mesma coisa: o estilo apurado em Graciliano é resultado nítido do labor incansável da criação, à maneira de Machado. Conquista da clareza ideal, portanto, é aqui sinônimo inequívoco de amadurecimento literário.

A título de exemplo, assinalo um mecanismo no mínimo interessante: o prazer da leitura aumenta na medida em que o conteúdo do romance se torna mais brutal. Do mesmo modo, correlato, quanto mais Paulo Honório se tranca e afunda em contradição, mais solta corre a narrativa – alargando suas virtualidades. Podemos dizer, nesse sentido - e para todas as medidas - que brutalidade, no caso, é eufemismo.

Assim, a prosa de São Bernardo vence o leitor por nocaute. É Paulo Honório, esmigalhando seus “adversários”. Tudo, desde as palavras eleitas, até a brutalidade sempre renovada e inesperada dos diálogos, parece lucidamente tensionado no sentido de expor a monstruosidade humana (3). Os personagens, a começar por Paulo Honório, revelam-se figuras sensíveis, numa prosa com raro poder de humanização. 

A violência perpetuada

O procedimento estilístico é a chave dos segredos envolvidos na construção do romance. A habilidade do escritor chega até nós pela violência de Paulo Honório. Onde estamos? Quais os segredos literários do feito? Sua fatura... A chave, no entanto, está ao alcance da mão: é pelo conteúdo da obra que se manifesta a força do estilo.

Foram dadas indicações parciais. De todo modo, podemos dizer: São Bernardo é uma sucessão esmagadora de fatos. Em ritmo acelerado, vemos passar toda a vida de Paulo Honório sob nossos olhos, narrada e rememorada por ele mesmo. Ascensão e queda: trabalhador braçal; fazendeiro rico; solidão e loucura. Tudo, por assim dizer, em linha reta.

A velocidade da ação talvez se explique por se tratar de memórias. Paulo tenta justificar-se nesse sentido. Diz, por exemplo, que reduziu o passado ao mínimo necessário. Essencial, aqui, é sintoma de violência e incompreensão; o próprio narrador admite, em primeiríssima pessoa. Restaria, pois, algo mais a dizer? Haveria algo mais na vida de Paulo Honório que não se confunda com a história de sua propriedade, a fazenda São Bernardo? Difícil. Paulo Honório, no fundo, é São Bernardo.

Nesse sentido, o ritmo acelerado do enredo é efeito da técnica rajada de Graciliano. Narrado em primeira pessoa, como foi dito, a notícia dos efeitos produzidos pela violência de Paulo Honório nos chega pela boca do próprio agressor. É o ímpeto destrutivo que não pode conter-se diante de si mesmo; ao contrário: alimenta-se dos restos humanos que deixa no caminho. Tudo reforçado ao extremo: obsessão, baixa auto-estima, instinto de propriedade, ciúmes, etc., chegando às raias do delírio.

Paulo Honório é um homem engasgado. Consciência, ou bomba-relógio? Bestialógico, sem dúvida, é todo sentimento de propriedade. Como um balão, infla, ao deparar-se com a fragilidade humana de suas vítimas. Não pode suportar que os empregados notem seus equívocos: insatisfeito com si próprio castiga-os severamente. Vejamos, pois, como funciona no romance esse mecanismo psicológico de perpetuação da violência, numa passagem em que Paulo Honório espanca um empregado:

    - Acabei o serviço, seu Paulo, gaguejou Marciano, perfilando-se.
    - Acabou nada!
             - Acabei, senhor, sim. Juro por esta luz que nos alumia.
    - Mentiroso. Os animais estão morrendo de fome, roendo a madeira.

Marciano teve um rompante:

    - Ainda agorinha os cochos estavam cheios. Nunca vi gado comer tanto. E ninguém agüenta mais viver nesta terra. Não se descansa.

Era verdade, mas nenhum empregado me havia ainda falado de semelhante modo.

    - Você está se fazendo de besta, seu corno?

Mandei-lhe o braço ao pé do ouvido e derrubei-o. Levantou-se zonzo, bambeando, recebeu mais uns cinco trompaços e levou outras tantas quedas. A última deixou-o esperneando na poeira. Enfim ergueu-se e saiu de cabeça baixa, trocando os passos e limpando com a manga o nariz, que escorria sangue. Estive uns minutos soprando.

Coisificação Oculta?

Havíamos dito que a história de Paulo Honório não ultrapassa os limites espaciais, e principalmente temporais, de sua propriedade, a fazenda São Bernardo. Ao contrário do que sugere o narrador, os fatos de sua vida encerram-se, efetivamente, num apanhado de socos, ponta-pés e variantes. Mas nem por isso deixam de existir fatos ocultos, acessíveis por dedução, numa rede de violências aludidas que se espalham ao longo da narrativa.

Informações ambíguas, possivelmente dispensáveis ao narrador (mas imprescindíveis à narrativa), chegam à luz em função do mecanismo assinalado de perpetuação da violência. É possível vislumbrar, no acontecido, sua gênese. Podemos deduzir outra infinitude de brutalidades imbricadas no tronco dos fatos narrados por Paulo Honório.

O mecanismo estende-se para o interior da personalidade, revelando-se elemento constitutivo, e ao mesmo tempo autofágico: força que lhe dá forma no presente, mas que o deforma irremediavelmente no futuro. Incontrolável, Paulo Honório é obrigado a reeditar o pacto com a destruição, devido ao caráter irreversível das violências já praticadas. Do contrário, o passado perderia completamente o sentido, pondo em risco o núcleo de sua personalidade, corroída sob o efeito devastador da gratuidade – como ocorre, efetivamente, ao final da obra. 

A lógica da autoridade reiterada, que fornece unidade à personalidade de Paulo Honório, inscreve-se no próprio arranjo verbal de suas memórias. Matéria – passado brutal - que se impõe como fratura exposta: modus operandi do qual não se pode esquivar, sob pena de tornar-se absolutamente inverossímil. O passado é composto de uma dinâmica própria. Noutras palavras, a mesma força que impeliu Paulo Honório a uma vida de excessos, impede-o agora de sonegar ou ignorar os fatos.

Assim é que descobrimos, por exemplo, um “segredo” do narrador, em relação à Rosa, esposa de Marciano, aquele mesmo que fora espancado:

“O Marciano conheceria as minhas relações com a Rosa? Não conhecia. Tive sempre o cuidado de mandá-lo à cidade, a compras, oportunamente. E talvez não quisesse conhecer. Também, se poderia admitir que fosse dotado de pouca penetração”. [grifo meu].
                                   
Tem-se a impressão de uma espécie de personalidade tentacular. Não sendo capaz, a princípio, de vigiar e dominar a multiplicidade de seres e coisas a seu redor, o impulso interior que o move parece suprir a ausência de tentáculos. Era capaz, e o fazia conscientemente, de aniquilar a existência alheia por todos os lados, cercando-a, e adiantando-se a prováveis formas de resistência.

Outro exemplo é Padilha, ex-proprietário da fazenda São Bernardo. Atuando em partes sensíveis de seu caráter – vícios, mulheres, bebidas, etc. - Paulo Honório envolve-o aos poucos, e, num piscar de olhos, toma-lhe fazenda e cuecas. Quando o leitor dá conta, na metade do romance, a imagem de Padilha impressiona: o antigo proprietário tornou-se simples agregado, semi-escravizado, vivendo à sombra de um gigante espezinhador.

São personagens que ficam no caminho, aniquiladas, enquanto aumenta a sensação de trote, pois somos obrigados a deixá-los, também nós leitores: o protagonista é o condutor, tornando-nos íntimos dos arrancos de sua sensibilidade embotada.        
                                           
Lirismo, termo de comparação?   
                                      
É ainda no domínio das implicações profundas derivadas do narrador em primeira pessoa que tentarei estabelecer a comparação com uma canção de Milton Nascimento, “Morro Velho”. De fato, num romance de cunho social tão latente e corrosivo, pareceria absurdo falar em lirismo. (Nas palavras de Otto Maria Carpoux, todos os romances de Graciliano são verdadeiras “tentativas de destruição”).

É importante dizer, no entanto: lirismo, aqui, não se confunde com moral. O romance de Mestra Graça (como era chamado Graciliano entre amigos) é magistral como realização literária – único ponto que interessa.  O equilíbrio interno - vida palpitante da forma - é a beleza regeneradora do conteúdo. Sem dúvida, há qualquer coisa de beleza monumental na capacidade de expor artisticamente o sumo profundo do real.

A questão que se coloca é a seguinte: haveria lirismo em São Bernardo enquanto exaltação de aspectos humanos da realidade exposta? À luz da canção de Milton Nascimento poderíamos vislumbrar, talvez, essa dimensão de apelo em São Bernardo. Adianto: embora conduzido em primeira pessoa, o leitor não fica completamente indiferente aos sofrimentos gerados por Paulo Honório. O distanciamento agressivo não cancela a identificação. Ao contrário, o ponto de vista das vítimas retorna com força, situando-se no ponto menos esperado: na própria consciência de Paulo Honório.

Assim, o aniquilamento total do outro é, dialeticamente, sua afirmação suprema na carne do agressor. Não se trata de relativizar o jogo da dominação (afinal de contas, a morte não é virtual). Por outro lado, aceitar simplesmente a hipótese do esmagamento absoluto, sem resíduos que indiquem probabilidade mínima de uma restituição do outro, além de incompreensão dos mecanismos de reprodução da violência, pode resultar em identificação sádica com o ponto de vista do agressor.

Cobrança que, de qualquer modo, inexiste. Ecoa suspensa, porém ensurdecedora, na própria construção do romance, a voz dos oprimidos. O procedimento é relativamente simples: o artista observa e analisa as formas sociais pela qual se revela o ímpeto destrutivo de aniquilamento do outro. Compreendido em profundidade, os anseios, as palavras, os gestos, etc., são absorvidos pelo processo criativo, a ponto de fundamentar a técnica do autor.

Logo se vê: não se trata de um simples manejo de fatos, isto é, criação ou reprodução simples da violência banalizada. Há o elemento subjetivo, aspecto mediador da ação objetiva, como na própria realidade: a violência existe muito antes de manifestar-se objetivamente. Ou, noutras palavras: é continua, porquanto nem sempre objetiva.  O forte em São Bernardo não são os atos e palavras de Paulo Honório, mas o “pensamento” e as obsessões íntimas que o sufocam, tornando a violência absolutamente irreprimível.

Razões, justificativas e argumentos repetitivos, impulsos cegos, etc., irradiadores da morte, engendram-se desde o interior mais fundo da alma. É no diálogo de Paulo Honório consigo mesmo que observamos a impossibilidade última de supressão definitiva do outro. Referência negativa, os demais seres humanos a seu redor não podem desaparecer de seu horizonte consciente, ao contrário: crescem como gigantes perturbadores à medida que tenta convencer-se de sua insignificância.

É o ponto de inflexão da história, quando as vítimas revelam-se virtuais protagonistas. Existiria São Bernardo sem o braço dos trabalhadores? Paulo Honório não os pode remover do espaço, tanto quanto de sua consciência, sob pena de falir nos negócios, pondo em risco sua sanidade.

***

A bela canção de Milton Nascimento exemplifica o argumento. Narrada em terceira pessoa, conta a história da amizade entre dois garotos (“filho de branco, e do preto”). Distancia pela qual o narrador pode expor o conjunto dos aspectos que constituem a relação. Ora no branco, ora no preto, o narrador se identifica incessantemente com o ponto de vista dos personagens da canção:

No sertão da minha terra
Fazenda é o camarada que ao chão se deu
Fez a obrigação com força
Parece até que tudo aquilo li é seu.

O afastamento do ponto de vista de ambos - franca abertura para o lirismo – ocorre, sobretudo, para exaltar-se aspectos naturais do meio:

Só poder sentar no morro
E ver tudo verdinho
Lindo a crescer

Mas, logo adiante, contrastando com o sentimento de igualdade suscitado pelas imagens do meio, descobre-se, aos olhos do ouvinte, a lei do privilégio (branco):

Orgulhoso camarada
De viola em vês de enxada

Contraposição evidente de planos: de um lado a amizade e a beleza da terra (igualdade); de outro, direito, a diferença de classe, que é (des) privilégio de gozo (desigualdade). Em certo momento, então, a ilusão - chave-mestra, quem sabe, da canção:

Pela plantação adentro
Correndo os dois meninos
Sempre pequeninos

O lado direito vence. A construção da música, desde a melodia (violão de abertura), que traduz perfeitamente o ponto de vista dramático do trabalhador – e da amizade destruída pela lei da desigualdade combinada -, até a letra, alimentada pela tensão da dominação alternada, comove e faz sentir, liricamente, a derrota do lírico.   

Trata-se de uma oposição - no romance de Graciliano a voz que narra é a do privilégio. Aproximação rasa. O interesse reside na apreensão dos mecanismos de perpetuação da desigualdade, acessíveis pela forma artística que os penetra - elemento construtivo própria obra.

Em ambos os casos, enfim, observa-se nos elementos formais (posição do narrador; escolha das palavras; entonação dos diálogos; melodia; ritmo da narrativa; etc.) quando bem articulados, permitem conhecimento profundo – muitas vezes intuitivo - da realidade histórica.


Notas:

1 – “Paulo Honório é modalidade de uma força que o transcende e em função da qual vive: o sentimento de propriedade (...) S. Bernardo é centralizado pela irrupção duma personalidade forte, e esta, a seu turno, pela tirania de um sentimento dominante. Como um herói de Balzac, Paulo Honório corporifica uma paixão, de que tudo mais (...) não passa de variante”. (Antonio Candido, Ficção e Confissão. Rio, José Olympio, 1956, p. 25 e 30).

2 - Bakhitn, refletindo sobre a relação do autor com sua personagem (herói) define do seguinte modo o amadurecimento da visão de mundo: “a reação global ao herói [por parte do autor] é assinalada por uma posição de princípio, produtiva e criadora”. E generaliza, a seguir: “De uma maneira geral, uma relação assinalada por uma posição de princípio é produtiva e criadora”.  

3 – Antonio Candido, comentando os romances em primeira pessoa de Graciliano Ramos, diz: “a série de romances escritos em primeira pessoa – Caetés, S. Bernardo, Angústia – constituem essencialmente uma pesquisa progressiva da alma humana, no sentido de descobrir o que vai de mais recôndito no homem, sob as aparências da vida superficial. Poderíamos dizer, usando linguagem dostoievskiana, que essa pesquisa tenta descobrir o homem subterrâneo, a nossa parte reprimida, que opõe a sua irredutível, por vezes tenebrosa singularidade, ao equilíbrio padronizado do ser social”. (Antonio Candido, Os Bichos do Subterrâneo, Tese e Antítese. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1967, p. 97).

João .

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