O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

sábado, 5 de novembro de 2011

Parteiras tradicionais, e “imateriais”.

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(A miséria carece de símbolos?)

A beleza que resplandece nas manifestações de vida das camadas populares é reveladora de uma ambigüidade perigosa. Trata-se, no limite, de situá-la de um ponto de vista de classe. Mas, como se sabe, a consciência da exploração nem sempre é tranqüilizadora (e deveria?). O belo do feio, no caso a cultura popular, é freqüentemente esquiva ao observador, mascarando os bastidores sombrios de onde se origina. Claro, a consciência que não dorme sempre enxerga, nos mecanismos culturais de conservação do humano, uma forma pura de resistência.

Mas, as formas de resistência não raro se convertem, aos olhos do observador “crítico”, num consolo de consciência. A cultura, então, para todas as medidas, torna-se uma espécie de aspirina do sentimento de culpa. Sim, é preciso dizer: a estética não passa de um repasto mental para o sentimento pequeno-burguês da vida. Logo, desaparece a imensa carga histórica de sofrimentos e desamparo, e o modo característico de resistência da cultura popular, substituídos pelo mero desfrute, fazendo imaginar caretas desprezíveis de gozo sádico.

Tais sintomas de desfrute multiplicam-se atualmente. Movimento de apropriação indébita por parte da ideologia do consumo, claro: “estetização da miséria”. Assim, ficamos sabendo da proposta de tornar as chamadas “parteiras tradicionais” em patrimônio histórico imaterial do Brasil.

Os indignados se levantam. Equivocados, pois não se trata de uma luta simbólica, esta, aliás, também sintomática do desfrute, com feições paternalistas. No outro extremo, não menos simbólico: o regozijo. As mulheres parteiras revestem-se então de fetiche poético, curandeiras de mãos encantadas. Ignora-se a real condição da mulher[1] nas regiões mais pobres do Brasil, já que, como se sabe, trata-se de uma ordem social infinitamente distante do antigo esquema matriarcal. Mais uma vez: os miseráveis, não carecem de símbolos!

Sem dúvida, o trabalho das parteiras é um patrimônio do povo, um saber entre tantos que lhe pertence. De alguma maneira, o tombamento é legítimo pelo reconhecimento de uma prática secular. Mas, a valorização efetiva de toda a sabedoria popular passa necessariamente por uma negação essencial deste mesmo Estado que pretende resguardá-la – vale a pergunta: contra quem? Qual a palavra que traduz a possibilidade do povo recuperar sua memória sem depender de atos institucionais de qualquer espécie? Ou melhor: que ato é este?

Nota:

[1] “Parto (mortal). Entre os astecas, as mulheres mortas de parto reúnem-se aos guerreiros sacrificados ou mortos em combate. Tomam o lugar deles ao meio-dia e acompanham o Sol na segunda metade de seu curso diurno. Com os guerreiros mortos em combate, as mulheres que morrem de parto formam o par dialético: evolução (manhã) / involução (tarde). Revestindo a face descendente dessa dualidade (entardecer), da luz rumo às trevas, as mulheres mortas fazem parte da expressão perigosa do sagrado. (...) A mulher que morre ao botar um filho no mundo assume, em todas as culturas, uma significação sagrada, que se aproxima à do sacrifício humano destinado a assegurar a perenidade, não apenas da vida, mas da tribo, da nação, da família”. (Dicionário de Símbolos – Jean Chevalier, Alain Gheerbrant – Rio de Janeiro: José Olympio, 1989)

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