O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

"A crise do documentário" por Ian F. Svenonius

Relia uma antiga edição da revista √ice "edição de filme" e encontrei este ótimo texto de Ian F. Svenonius,  e ilustrações* de Jim Krewson.

Matéria original: http://www.viceland.com/br/v1n4/htdocs/documentary-crisis-125.php?page=2

A pintura a óleo é praticada há cerca de 600 anos. A serigrafia foi desenvolvida na China, durante a dinastia Song no século X, ou melhor, há uns 1.000 anos. Talvez o poema mais antigo de que se tenha notícia seja A Epopeia de Gilgamesh, redigido em escrita cuneiforme no século III a.C., o que faz a poesia escrita ter uns 5.000 anos de idade. A música provavelmente surgiu junto com o homo sapiens na África como um elemento intrínseco à cultura humana, há 160 mil anos. Em comparação, o cinema tem o equivalente ao tempo de vida de uma tartaruga: aproximadamente 124 anos. Mas, apesar de ainda ser um bebê na escala de tempo das artes, enfrenta hoje uma crise existencial.

Saudado por Lênin como “a forma de arte mais importante”, o cinema que, mesmo em plena infância, fascinou o mundo até uma geração atrás, hoje luta pela sobrevivência, relevância, público e até mesmo para voltar a ser objeto de análise e debate. Considerando que o cinema nasceu do capitalismo industrial desordenado, essa condição de crise não é tão estranha. Na verdade, já que a característica principal do capitalismo é a crise perpétua, faz sentido que o cinema—uma lasca do grande bloco—seja marcado pela mesma histeria fabricada típica do sistema que o gerou.

Quando passou a ser mais do que uma simples novidade, o cinema era uma extensão do teatro, uma forma de contar histórias sobre o mundo. Mas, ao contrário do teatro, o cinema foi a contribuição da era industrial para o mundo das artes e assim—diferente de outros meios mais antigos—inevitavelmente lembrava as novas indústrias, como a siderúrgica e petrolífera, com as mesmas divisões de trabalho estratificadas, sindicatos, greves, contratos traiçoeiros, exploração impiedosa e uma elite proprietária de mentalidade monopolista.

Como a propriedade dos meios de produção é a questão central em tais indústrias, as grandes empresas do ramo cinematográfico—Warner Bros. e MGM—garantiram controle total sobre filmes, processos, suprimentos, trabalhadores (atores e diretores eram comprados e presos a contratos) e distribuição a fim de sufocar, destruir ou desencorajar a concorrência.

Assim como o rock em sua fase “clássica”, o cinema nos Estados Unidos era, quase desde o início, uma empreitada cujos custos apenas os estúdios de Hollywood conseguiam bancar, com um punhado de “autores” ilustres responsáveis por oferecer suas novas dádivas a cada temporada. A humanidade foi hipnotizada pelas fábulas que lhes contavam nos cinemas hermeticamente fechados que se encontravam a cada esquina. Tornar-se um participante do “cinema” era um sonho glorioso. Aspirantes a atrizes se jogavam contra o megalito de Hollywood como alimentos sacrificiais, e tornar-se diretor era uma ambição fantasiosa, ridícula, comparável a querer ser presidente ou rei do Universo.

Quando a tecnologia de vídeo proliferou, no início dos anos 80, ela foi, como todas as novas parafernálias da cultura de consumo, saudada como uma revolução para o homem comum. O vídeo era barato e portátil, e não estava sob o monopólio que a indústria cinematográfica mantinha sobre os meios de produção. Agora, qualquer pessoa que tivesse cabeça e ambição podia fazer um filme, e não mais apenas aqueles com conexão no showbiz, vínculos familiares ou disposição para um teste do sofá. Como a maioria dos supostos triunfos do “povo”, era na verdade o resultado do processo de imposição de uma indústria (a indústria eletrônica japonesa) sobre outra (a indústria cinematográfica de Hollywood).

O único problema com o vídeo era sua crueza e feiura. A imagem era tosca, e não tinha a mesma sensibilidade mágica que os espectadores viam na película. Assim, apesar da proliferação em massa quase imediata de câmeras de vídeo, poucos filmes dignos de nota foram produzidos com o novo equipamento. Em vez disso, as hoje onipresentes filmadoras foram relegadas a shows de rock underground até que outro uso—o registro de atos sexuais—fosse descoberto.

Ainda assim, Hollywood respondeu à ameaça da democracia do vídeo, tornando seus meios de produção ainda mais inacessíveis. Os filmes passaram a ser dirigidos por supercelebridades e os efeitos especiais se tornaram cada vez mais sofisticados. A narrativa deixou de ser prioridade em favor das maquiagens dos monstros, das explosões interestelares e das mega-estrelas. Uma vez que a TV a cabo e a locação de vídeos continuava a estraçalhar os lucros das salas de cinema, o desejo de produzir espetáculos se tornou cada vez mais e mais a principal preocupação dos estúdios. Para que um filme fosse lançado no circuito, deveria parecer um passeio de montanha-russa com todos as suas excitações nauseabundas. Cortes de quebrar o pescoço, enquadramentos nervosos, volume de som insuportável e violência explícita e bizarra fizeram muitos filmes, ironicamente, serem inassistíveis. Uma vez ou outra, por descuido, nos vemos em uma sala de cinema, seduzidos por uma enxurrada de propaganda, convencidos de que assistir a um determinado filme é indispensável para a continuidade da nossa educação cultural. Então, humilhados, degradados, insultados e R$ 20 mais pobres, juramos nunca mais cair nessa. Essa lição de vida é aprendida, em média, uma vez por ano. Na verdade, assistir a filmes no cinema é geralmente uma forma de nostalgia.

Esse declínio já vem acontecendo há algum tempo. Jean-Luc Godard afirmou memoravelmente em uma entrevista que, quando descobriu o cinema nos anos 50, este “já estava acabado”. Realmente, nos Estados Unidos de 1946, com uma população de 141 milhões de habitantes, vendia-se 100 milhões de ingressos de cinema por semana—um total de 36,5 bilhões de ingressos no ano. Hoje, com o dobro de habitantes, vendeu-se apenas 1,4 bilhão de ingressos em 2007 em toda a América do Norte (incluindo o Canadá).

Claro, as pessoas ainda assistem passivamente às peças moralistas dos seus mestres, mas agora em casa, na televisão, e a qualidade da imagem já não é mais tão importante. Pressentindo uma oportunidade, os videomakers—pessoas não necessariamente consagradas pelos estúdios—tentaram explorar o enorme potencial de desenvolvimento de uma indústria cinematográfica descentralizada formada por autores de verdade e entusiastas, similar à cena descentralizada dos músicos, artistas plásticos e poetas. Mas a vocação inicial da câmera de vídeo como uma ferramenta documental nunca foi abalada. Tampouco o desdém generalizado por algo que podia filmar qualquer um e que estava ao alcance financeiro de todos. Em uma sociedade cujo desprezo pelos pobres é institucionalizado, o próprio fato de o vídeo ser barato era considerado um defeito.

Por causa das suas raízes no registro de shows e pornografia, o vídeo era considerado uma “verdade”. Por isso, a nova geração de diretores, excluídos do uso de película pelos altos custos, se ocuparam em fazer “documentários” em vez de dramas com suas câmeras de vídeo. Hoje, produz-se documentários em uma escala inacreditável. São, em geral, perfis de alguma pessoa incomum, como um arqueiro sem braços ou um vegetariano que pratica a caça ou uma crítica política sobre alguma guerra ou uma pesquisa histórica em homenagem a uma banda de rock qualquer com direito a testemu-nhos de pessoas que estavam “lá” ou que foram profundamente influenciadas por ela. É relativamente fácil conseguir fundos para a produção de documentários, e não faltam festivais para exibi-los.

Apesar de parte desses documentários feitos em vídeo ser interessante, o que é realmente fascinante é o volume em que são produzidos, se comparado com as narrativas ficcionais tradicionais. O que isso revela a respeito de uma geração que não parece capaz de escrever uma história com personagens ou com uma trama bem estruturada? Enquanto a música se tornou completamente fantasiosa (repleta de compositores e cantores de folk psicodélico cantarolando canções sobre magia e duendes, compositores de música eletrônica propondo sexo com robôs e cantores românticos alternativos lamentando o fim de algum mundo imaginário), os novos diretores estão obcecados em apresentar um retrato da “realidade”. Eles têm uma preocupação apocalíptica de mostrar sua época como a vêm, já que não participam do diálogo oficial surreal que está sendo registrado pela mídia imperialista corrupta.

Enquanto esse impulso em apresentar a própria época aos herdeiros da terra ecoa uma necessidade humana antiga, vista desde as pinturas rupestres, a falta de qualidade artística do vídeo precisa ser enfrentada. Esses filmes são, em geral, relatos propagandísticos de eventos, feios, sem nuances. O trabalho de câmera é quase sempre execrável, a estrutura é simplística, o método narrativo é normalmente uma paródia de programas de televisão; parecem trabalhos de escola. Enquanto a utilização desse meio poderoso e a tentativa de expressar um argumento ideológico são admiráveis, as decisões estéticas dos videomakers muitas vezes revelam uma visão de mundo infantilizada, uma concepção artística atrofiada e uma mentalidade linear e empobrecida.

Isso tudo levanta a questão: quem é a audiência de tais produções? São os seus contemporâneos? Isso parece ser pouco provável, uma vez que as repetidas histórias da guerra no Iraque e os mitos do rock que aparecem em tais filmes são velhos conhecidos de seus espectadores. Se a intenção é a mera repetição de um folclore, é até uma boa razão, apesar de as armadilhas do cinema não parecerem necessárias para tal tarefa quando um panfleto ou um artigo de revista poderia fazer o mesmo serviço pelo menos tão bem quanto um vídeo, dispensando toda aquela autopromoção. Ganhar dinheiro não pode ser o objetivo, já que esses projetos representam em geral um risco financeiro.

A resposta óbvia parece ser que os vídeos são produzidos para oferecer uma explicação sobre nós e nossa época a alguma raça alienígena futura. Os esclarecimentos cuidadosos e infantis oferecidos são pensados para serem compreendidos por alguma sensibilidade exótica, e a idiotice em exibição parece falar a uma consciência interestelar à qual não se pode atribuir nenhuma sofisticação, sob perigo de gerar mal-entendidos, e à qual tampouco podemos atribuir o compartilhamento, conosco, de pressupostos culturais. Por que outro motivo um filme como Procedimento Operacional Padrão seria tão burro e simplório? Todos os seres humanos que viram esse filme devem ter ficado chocados com sua postura apologética em relação ao que todos sabem ser uma máquina de matar desprovida de ética, o Exército dos Estado Unidos.

Não faltam documentários sem sentido. No End in Sight, por exemplo, é uma peça de propaganda que sugere que a guerra contra o Iraque foi “mal conduzida”, e então invoca o espectro do Irã no papel de bicho-papão nos comentários finais, deixando as portas abertas para uma sequência espetacular. Uma vez que essas ideias estão por todos os lados, na televisão e nos jornais, quem seria o público alvo para tamanha estupidez? Talvez uma raça futura que vasculhará os detritos de nossa civilização e em relação aos quais os realizadores sentem a responsabilidade de explicar sua ideologia capitalista maldita, o sistema que desencadeou o fim de um planeta tão lascivo. Talvez achem que enquanto os programas de TV se perderão e os jornais serão queimados no holocausto nuclear, os videodocumentários sobreviverão, protegidos por sua capa de plástico resistente. Talvez sua propaganda tenha como intenção diminuir o nojo que os alienígenas sentirão quando testemunharem a insensatez humana, o mesmo sentimento que seria despertado, em uma loja de coisas usadas, por uma grande coleção de discos que foi pisoteada, arranhada e abandonada à própria sorte.

Parece claro que os documentários, e o vídeo em geral, são feitos para alienígenas. Por que, afinal, os DVD têm a forma de OVNIs? Para atrair a atenção de alienígenas. Por que os atores pornôs depi- lam sua genitália? Porque os diretores imaginam que isso agradará os alienígenas para os quais o vídeo pornô é feito—os mesmos alienígenas que são normalmente retratados sem pelos. Quem decidiu que o vídeo seria utilizado dessa maneira? Ninguém em particular. Foi inconsciente. Alguma coisa a respeito do vídeo grita “O Futuro” para as pessoas. Fontes e telas de vídeo sempre aparecem em programas de televisão, discos e filmes futurísticos. Talvez tenhamos feito alguma viagem astral na qual vislumbramos esse ambiente pós-histórico.

Esse impulso de criar explicações sobre nossa época para uma raça ou forma de vida superior é compreensível, claro. Tem sido o ímpeto de muitos escritos esotéricos e religiosos ao longo da História. Mas é um equívoco pressupor que os alienígenas sejam tão esteticamente esnobes que não possam apreciar um pouquinho de arte em sua propaganda. O que esses vídeos estão de fato insinuando para essa raça futura é o quão esteticamente pobre é nossa época. Dos novos edifícios concebidos por uma geração diabólica de arquitetos às calças de sarja dos empregados de escritório, às placas do comércio sem ne-nhum senso artístico feitas com as mesmas fontes de computador, aos carros projetados com o mesmo computador horroroso. A população tem sido alvo de uma imensa defecada estética, e não sabe. Anos e anos de retardamento artístico e de admoestações filistinas contra a arte vindas de todos os lados resultaram em um país kitsch de merda (EUA) e, por meio da influência desmesurada desse país sobre o resto do mundo, em um mundo kitsch também de merda.

Claro, é importante que não sejamos tão duros em nosso julgamento dos autores desses vídeos medíocres. Afinal de contas, eles trabalham sob uma ditadura fascista, com todas suas atribulações psíquicas, uma população idiotizada e conexões asquerosas, fruto da necessidade de financiamento. É bastante difícil produzir qualquer coisa que seja no mundo inteiro quando não há audiência para a obra. A mídia de massa teve sucesso em nos fazer sentir distantes, azarados, loucos, solitários. Com certeza, relativamente pouca arte interessante foi produzida no Chile de Pinochet.

Na famosa entrevista de Bob Dylan no documentário Don’t Look Back, de D. A. Pennebaker, na qual ele fustiga um repórter da Time ao dizer “Não há ideias na revista Time... apenas certos fatos... o artigo que você está escrevendo, pode vir a ser um bom artigo; mas não significa nada”, ele poderia estar falando dessa nova mania de documentários. Quando, ao ser pressionado a dar uma alternativa, ele sugere, “Uma simples foto... uma simples foto de uma, digamos, prostituta vomitando na sarjeta e ao lado uma foto do Sr. Rockefeller”, ele poderia estar falando das colagens de cinejornal de Santiago Alvaréz.

O trabalho de Alvaréz aponta o caminho para uma solução do impasse no qual o mundo do documentário se encontra. Um diretor cubano, a quem Fidel Castro encarregou de produzir cinejornais sobre a bem-sucedida batalha da revolução por poder, criou uma média de um filme a cada duas semanas ao longo de 30 anos. Fez isso com praticamente nenhum material à sua disposição e, mesmo assim, seus trabalhos são evocações fantásticas das circunstâncias nas quais foram feitos. Um alienígena que visse seu trabalho certamente se encantaria com a humanidade que o criou, compreenderia a complexidade de suas criações e as circunstâncias e as contradições em seu caráter que conduziram por fim à destruição do planeta. Seria como se a tal coleção de discos arruinada encontrada na loja de coisas usadas contivesse uma explicação excitante da luta de seu antigo proprietário contra as forças terríveis que criaram a calamidade que resultou em sua destruição.

Um dos filmes de Alvaréz que merece ser visto é LBJ, de 1969. Ali se insinua que LBJ (Lyndon B. Johnson) assassinou MLK, RFK e JFK (L de “Luther”, B de “Bobby” e J de “Jack”), e o faz quase sem palavras ou narrativa. As ferramentas são simples: algumas são recortes das revistas Life e Playboy lentamente filmados. Edição engenhosa. Música enfeitiçante. Esse é um documentário que poderia ser mostrado a falantes de qualquer língua com o mesmo resultado, e que também funciona, mesmo que desligado de seu programa político, como uma bela colagem de nossa época. Música de Carl Orff, Miriam Makeba, Nina Simone, Trashmen, Pablo Milanés, Leo Brouwer e outros seguidos pelo casamento da filha de LBJ até seus atos traiçoeiros. O filme termina com a montagem de imagens do nascimento de seu neto intercaladas com um clipe de uma camponesa vietnamita queimada por napalm. Quase todo o filme é composto de fotos de jornal ou de colunas sociais de revistas. Alvarez é livre para utilizar quaisquer imagens de cinejornais, fotos de revista, imagens encontradas e a música pop, o jazz ou composições clássicas que desejar, das fontes que quiser, uma vez que trabalha para o Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficos da República de Cuba, que estava e ainda está em guerra com o mundo capitalista e, por isso, desdenha as leis do copyright.

Diretores invejosos assistem aos filmes de Alvaréz e gritam “Não é justo!” quando vêem o que isso lhe permite—mas eles deveriam largar mão de seus choramingos e levar o programa adiante. As regras de licenciamento e as leis de propriedade intelectual destruíram a arte e a expressão dos paísescapitalistas. Está na hora de uma rebelião contra as convenções cinematográficas e, sim, contra as leis que resultam na produção cinematográfica medíocre. Santiago Alvaréz, que fez mais de 700 filmes em sua carreira, de 1959 até sua morte em 1998, seria muito mais admirado por quaisquer alienígenas que porventura desembarcassem no nosso planeta do que o lixo cafona e simplório que os diretores de documentários têm despejado ultimamente.




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