Texto publicado originalmente na Revista dos parceiros do Coletivo Zagaia
Este artigo foi escrito por Thiago B. Mendonça com a colaboração de Marco Escrivão para o livro ainda inédito “Desmilitarização da polícia e da política: uma resposta que virá das ruas” organizado por Givanildo Manoel e editado pela Editora Pueblo.
ATO 1 – Concentração – o ontem e o hoje
1 de abril de 2014. O Cordão da Mentira, bloco carnavalesco de intervenção urbana, prepara-se para seu terceiro desfile. Dia da Mentira, dia do Golpe que instalou a Ditadura Civil-Militar no Brasil em 1964, completando 50 anos. Em frente ao antigo DOPS do carrasco Fleury, a primeira pergunta que vem a cabeça: por que lembrar o golpe se já comemoramos também quase 30 anos da redemocratização? O que faz 1.500 pessoas saírem para as ruas cantando sambas de luta contra a opressão? Por que este dia ainda nos traz tantos traumas?
Enquanto o Cordão esquenta as baterias, no carro de som respostas começam a ser traçadas. O mestre de cerimônia, em trajes de Zé Pilintra, relembra o museu de horrores: “Quem pensasse diferente podia ser fichado, preso, torturado, morto (e as coisas não aconteciam necessariamente nesta ordem). Quem mandava aqui era a turma do Fleury. Tinha o Romeu Tuma, senador até pouco tempo. Pachequinho, compositor do Samba da Vela. E tantos outros que ainda desfilam por aí.”
Alípio Freire, ex-guerrilheiro e ex-preso político no passado, militante e artista plástico no presente, fala do ontem e de hoje. Débora Silva, representante das Mães de Maio, grupo de mães que lutam para que se esclareçam os crimes cometidos pelo Estado na democracia, fala de hoje e de ontem. As continuidades são expressas em dor, em coragem, em luta. “Se houve democratização esqueceram de avisar a polícia militar!” brada a mãe de maio emocionando os presentes. Débora, Antígona moderna, afirma que uma mãe que luta pela memória do seu filho é maior que um Estado. As mães são a alma do Cordão e para elas os compositores do bloco já renderam sua homenagem:
“Eu já perdi a esperança, juventude
Eu já perdi minha luz, minha alegria
Resta o altar com o sorriso do meu guia
Meu menino tão suspeito pra vocês
Ele é meu anjo e eu rezo todo dia
Não é pra Deus, nem pra Santo, Ave Maria
É só pra ele trazer mais esperança
Dos pequenos renascerem na bonança
Eu já falei que não quero mais vingança
A guerra que eu quero é das almas dos meninos
O fogo que arda e e incendeia o rico imundo
E ilumine com sua chama, um novo mundo
Que em algazarra os guris assassinados
Possam voltar e cantar os chacinados
Que nosso sangue escreva nova história
E ocupe o esquecimento com memória”
(Mães de Maio de Thiago B. Mendonça / Everaldo F. Silva / Selito SD)
Justiça e memória de ontem e de hoje. O carnaval começa como canção de luta. Centenas de pessoas colocam sacos plásticos na cabeça, lembrando os crimes de Fleury, Romeu Tuma e sua gangue. 1 minuto de silêncio.
ATO 2 – 3o Distrito – A higiene, os bons costumes e as pessoas de bem
O Cordão para em frente ao 3o distrito policial, na Boca do Lixo. Projeções de imagens do Esquadrão da Morte são vistas no prédio ao lado. Homens “da lei” aglutinam-se na delegacia, onde são obrigados a engolir as palavras de nosso guia, Zé Pilintra, lembrando aos foliões que ali naquela delegacia, na ditadura civil-militar, reinava Wilson Richetti, amigo do delegado Fleury, assassino de prostitutas e travestis. Richetti proibiu as garotas de programa de trabalharem. Quem desobedecia às ordens, poderia ser presa, torturada e morta, em nome dos bons costumes. Há mulheres que até hoje não tiveram suas mortes apuradas. Em 1979, depois do assassinato de uma prostituta e um travesti, um movimento de trabalhadoras da zona toma a Praça da Sé. Em plena ditadura um movimento de prostitutas e travestis derruba um criminoso, destituindo Wilson Richetti. Uma das líderes, Gabriela Leite, mais tarde criou a DASPU e se tornou a grande referência na luta pelos direitos das putas brasileiras. Zé Pilintra, o guia do cordão, evoca sua memória: “Gabriela se foi mas deixou saudade! Evoé Gabriela!”
Nas recentes movimentações de especulação imobiliária na região da Luz, nos governos José Serra e Gilberto Kassab, novamente as prostitutas voltaram a ser perseguidas e assediadas pela polícia. Gabriela certa vez declarou num filme sobre a Boca do Lixo: “Quando as pessoas querem revitalizar uma área histórica que tá ruim, eles querem expulsar as putas, expulsar os malandros, expulsar toda a cultura que tinha ali e criar uma nova coisa. Só que o que eu acho é que isso não adianta nada, porque as pessoas voltam. As pessoas sofrem, mas as pessoas voltam. Porque isso aqui tem uma cultura. Uma cultura da prostituição, da malandragem, da música, do cinema, que ninguém vai tirar deste pedaço. Ninguém. Nunca.”1
A memória recente e a memória do passado, o ontem e o hoje. De um lado os populares. Do outro lado o discurso antigo de revitalização dos espaços, para torná-lo mais palatável à uma elite patrimonialista que vê o pobre como risco, como inimigo. Não somos uma nação. Tudo conspira para uma conciliação coagida entre uma minoria que manda e um povo que obedece. Na formulação magistral do filósofo Paulo Arantes “um Estado bifronte, de direito para os ‘integrados,’ e penal-assistencial para ralé.”2
Matanças, despejos, realocações, deslocamentos, opressão, massacres. A permanência da violência de Estado e seus vestígios nas ruas da cidade. Uma geografia da opressão: as ruas cheiram a sangue. A militarização garante a lógica do controle social. Eis os mandamentos da sagrada família dos proprietários brasileiros: “Não contestarás. Não lutarás. Não abandonarás sua condição.” Para ontem e para hoje o Cordão grita: é mentira! É o abandono deste lugar, um chamado para a luta:
“Você aí
Vendo o circo passar na janela
A versão corrompida na tela
Não convence o coração
Diz aí
Não ouviu falar em Mariguella
Nunca entrou numa favela
Prefere não dar opinião
É melhor começar a pensar
Numa nova saídaNaquele moleque sem lar
Nos trabalhadores sem terra
Minha gente sofrida
Entrar de cabeça na briga
É a pedida pra ganhar
De que lado está você?
De que lado? Eu quero ver!
Meu bloco vai cobrar”
(Camarada Lampião de Renato Martins e Roberto Didio)
ATO 3 – Largo do Paissandu – a memórias dos homens pretos
Chegando ao Largo do Paissandu, o Cordão rende homenagem à memória dos homens pretos, vítimas preferenciais do Estado genocida brasileiro. Os herdeiros dos escravos carregam ainda a condição de homens descartáveis. Zé Pilintra, guia do cordão, lembra que a igreja do Rosário localizada ali, não é a original, expulsa pela especulação imobiliária de outra área central, mais nobre. A história não é coisa do passado: “Hoje novamente querem tirar os pretos e pobres do centro. A higienização e especulação imobiliária continuam juntas e misturadas ao genocídio da juventude preta. Relembramos pois, mais do que nunca, nossos antepassados.”
Neste trecho do trajeto, de armas em punho, a polícia militar faz sua primeira investida contra o cordão, mas é rechaçada pelos manifestantes que gritam pela desmilitarização.
“Só após seis horas chegou a polícia
Esmurrando e dando chutes na porta
Que coisa absurda, mas não fictícia,
Deu tremenda surra no Zé Perna Torta,
Que, por já ser finda a batalha à milícia gritou:
- Com o pobre ninguém se importa!
Outra vez não chegaram em hora propícia
Agora já é tarde, pois, Inês é morta!
Se Inês é morta, diga quem matou Inês!”
(Quem matou Inêz? de Selito SD)
ATO 4 – Mackenzie – a volta da repressão
O Cordão tem um tempo próprio. Nos intervalos de seus cantos e batuques, grupos teatrais se revezam para trazer mais uma camada de reflexão a partir de cenas curtas e números musicais. A estética ressignificando a política e ampliando seu universo simbólico.
O ato segue pacífico em direção à mítica rua Maria Antonia. Ao atravessar o Elevado Costa e Silva (ou Minhocão), sintomática homenagem ao ditador que promulgou o AI-5, centenas de militares da tropa de choque, alguns com armas em punho, passam a acompanhar o bloco. Duas semanas antes, uma famigerada tentativa de reedição da Marcha da Família de 1964 foi para as ruas para pedir um novo golpe aos militares. A polícia militar os acompanhava integrados. Eram saudados como parte da manifestação. A marcha era composta por cerca de 300 pessoas, sendo cerca de 100 deles neo-nazistas (ou integralistas). Muitos estavam armados, e possuíam algemas de plástico para prender opositores. A marcha foi marcada por brigas e agressões de neo-nazistas, sem nenhuma intervenção policial.
Duas semanas depois o desfil&scracho do Cordão da Mentira rechaça o golpe, seus entusiastas. O ato com 1500 pessoas não tem nenhum incidente. A polícia porém é outra. Ela oprime. Exibe suas armas. Mostra-se pronta a atacar.
Maria Antonia. 03 de outubro de 1968. A rua é palco de uma guerra entre fascistas do CCC apoiados pela polícia militar contra estudantes da USP, defendendo a democracia. Conflito que resultou na morte do estudante José Carlos Guimarães de 20 anos, no incêndio criminoso do prédio da Maria Antonia, e de forte repressão policial ao movimento estudantil que tomou as ruas para protestar contra o assassinato.
Maria Antonia, 13 de Junho de 2013. Uma nova batalha, desta vez, sem intermediários. A polícia militar ataca covardemente os manifestantes do 4o ato contra o aumento das passagens de ônibus. Mais uma vez a Maria Antonia testemunha o legado da violência do Estado. A História se repete. 1 de abril de 2014. Sobe pressão da polícia os foliões do Cordão cantam o Frevo da Falha.
“Mas hoje ocupando a praça
Sem juiz, censor ou editor
Valendo mais que mera errata
A gente desmascara
Convertido e enganador
Para de mentir canalha
Para admitir a “falha”
Para de omitir que a dita foi dura demais
Para de fingir que é justa
Para de fugir do Ustra
Para difundir a farsa impressa nos jornais”
(Frevo da falha de Douglas Germano e Everaldo F. Silva)
ATO 5 – No coração de Higienópolis – Tradição, família e propriedade
A polícia tenta cercar o Cordão. Em torno do Cordão formam-se dois cordões: o primeiro de policiais militares. O segundo de manifestantes para defender os cidadãos da polícia. A situação parece absurda. No cerco, homens armados esperam a hora de atacar a festa. Do lado de dentro, sem armas, centenas de pessoas, jovens e velhos militantes foliões, defendem de braços dados os demais manifestantes. Para quem não visse os policiais poderia ser uma ciranda. Uma festa. E era. No Cordão não se diferencia festa e luta. O ódio dos militares, formados para atacar seus inimigos é combatido pela festa dos cidadãos, comprometidos em mudar o mundo. Cantando a “Batalha Final de um Bravo Brigante’ o Cordão segue em frente quilombolado.
“Nos metros a frente a fria coluna
Por entre os escudos eu vejo uma fresta
E sigo em frente, pois pouco me resta
Sou só uma peça na grande comuna
Reúna seus homens, reúna, reúna…
Novos dias me acenam do lado de lá
Pouco me resta, já não tenho sono
Já não tenho medo, já não tenho dono
Só tenho a vontade de continuar
Com sangue no rosto e brilho no olhar.
Comuna e coluna postadas bem perto
Lá da barricada já fiz o que pude
Com tripa de mico e bolinha de gude
Por entre os escudos achei descoberto
Grosso supercilio que deixei aberto
Montado em exemplo de gente da gente
Não mais me abala a mais cruel cena
Nem mais uma bala fará com qu’eu tema
Seja de borracha, seja chumbo quente…
Por entre os escudos eu miro um temente
Vou partir pra riba, no saci virado
Vou partir na fé de meu santo e meu povo
Se eu cair… Levanto e me atraco de novo
Vou pela quebrada, vou “quilombolado
Por entre os escudos… Zumbi do meu lado.
Se eu cair… Levanto e me atraco de novo.”
(Batalha final de um bravo Brigante de Serginho Poeta/Everaldo F. Silva/Selito SD)
E por entre as câmeras de vigilância e a movimentação frenética das equipes de segurança, o bloco invade o coração de Higienópolis. Para em frente a TFP, organização fascista fundada em 1960 pelo integralista Plinio Correia de Oliveira. A TFP, Tradição Família e Propriedade, é uma organização católica que defende a tradição deles, a família deles e a propriedade deles. Sua única proposta é combater a esquerda. Há alguns anos planeja treinar militarmente sua pequena orda de fascistas para atacarem movimentos sociais. A TFP é parte de conjunto maior de grupos e organizações que apoiaram o golpe civil-militar. É na frente da TFP que acontece o último escracho do cordão. Nas paredes ao lado, cenas de “Saló e os 120 dias de Sodoma” de Pasolini são projetadas, lembrando o fascismo abjeto ainda presente. Os empresários que financiaram e se beneficiaram do golpe são citados.
A polícia tenciona e ameaça os manifestantes. Parece pronta a atacar. Até que um velho e aparentemente frágil militante, com sua bengala, os contêm. Sem força, sem palavras. Com a imponência de sua presença. É uma das cenas mais belas já presenciadas por este escriba. O velho militante impõe respeito portando apenas sua cotidiana bengala à toda uma tropa de jovens policiais treinados para trucidar manifestantes. Aquela imagem mítica do ancião abate a moral da máquina de moer ossos do Estado. Volto emocionado com esta imagem do mestre ancião Alípio Freire. Carrego comigo, carregamos todos que ali estiveram, a esperança renovada de uma mudança. Em 2015 o Cordão voltará as ruas. Até lá outras batalhas serão travadas. E se em algum momento vier o desânimo lembraremos do que a Mãe de Maio Débora nos ensinou: “os nossos mortos tem vozes”.
NOTAS
1 Depoimento de Gabriela Leite para “Santa Efigênia e seus pecados” Documentário de 26 min. dirigido por Thiago B. Mendonça
2 1964, o ano que não terminou in O que resta da ditadura.
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