O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Violência, língua e literatura


Não há na violência
que a linguagem imita
algo da violência
propriamente dita?

(Cacaso)




Num belo trecho, Lev Davidovich tenta explicar a beleza da língua francesa do seguinte modo:

"A língua francesa, tão bela, tão acabada em suas formas, e cuja polidura herdou, por certo, alguma coisa de um instrumento tão acerado como a guilhotina, será novamente precipitada, por efeito da dialética histórica, num profundo cadinho, para uma refundação a alta temperatura. Sem nada perder de sua lógica perfeita, adquirirá maior maleabilidade. A revolução da linguagem exprimirá uma nova revolução no domínio das ideias. Esta, por sua vez, não se dissocia de uma revolução no domínio das coisas".

Assim, a “dialética intrínseca” (outra expressão de Lev Davidovich) dos processos históricos determina as possibilidades formais de uma língua. A revolução burguesa, na França, com suas guilhotinas, “acerou” o gume da língua francesa. Vale citar, nesse sentido, aquele que talvez seja o maior romancista francês do século XIX:

Terminarei com a pena aquilo que Napoleão iniciou com a espada”. (Balzac)

Claro, a obra literária não possui um décimo do poder político de Napoleão, e seu exército. Não é disso que se trata. É um mergulho, através da criação, nas profundezas sociais que, de algum modo, foram sedimentadas pela ação militar do Imperador. Devemos considerar, também, uma leve ironia nas palavras de Balzac: os grandes artistas recebem a herança da ação dos homens, e é com esta herança que devem contar, encarando-a de frente - muitas vezes, inclusive, de costas para o futuro. Basicamente, Lev Davidovich não diz outra coisa. Assim, a pretensão de Balzac ultrapassa a si mesma. O elogio aparente de Napoleão, por sua vez, é uma isca para tolos – no caso, seus leitores, a própria burguesia francesa. 

É notável a agudeza da observação: num simples comentário, Lev Davidovich remete às conclusões mais avançadas do marxismo aplicado aos estudos linguísticos, fazendo lembrar imediatamente a obra de Mikhail Bakhtin – a qual, certamente, não havia lido, por motivos óbvios (Bakhtin foi caçado pelo stalinismo...). Apesar da brevidade do trecho, o modo de formular o problema não reduz a complexidade do fenômeno. Pelo contrário: utiliza poucas linhas para sugerir a riqueza de relações entre luta de classes e desenvolvimento linguístico.

A guilhotina dos jacobinos “acerou” a língua francesa, acompanhando mudanças ocorridas em todos os domínios da vida social – que tanto interessava a Balzac -, e, principalmente, enquanto durou a rápida ascensão da burguesia, logo interrompida pela insurgência grandiosa do movimento operário (1848). Daí em diante, não só o idioma, mas a própria literatura européia entra em franco declínio, de um modo geral – crise do romance realista, entre outros.

Para além do caso específico da França, há outros, em que a violência intrínseca à vida social, de algum modo, influi decisivamente na literatura. Por mais que acentuemos a face lírica em Guimarães Rosa, por exemplo, é evidente como a ausência de lei na vida sertaneja comparece em sua prosa, na própria reinvenção constante da linguagem. O sertão é o lugar do susto: as leis são feitas e desfeitas a cada passo, conforme o desejo do mais forte. Assim é que, igualmente, na prosa do autor, o leitor é "assaltado", a cada passo um susto. Um lampejo. Uma nova ordem "cósmica" se instala, para desaparecer na sequência - só que, ao invés do risco de tomarmos uma facada, um tiro, ou nada, somos agraciados com o poder da invenção - que renova-se a si mesmo.

Voltando. Na Rússia (Lev Davidovich era russo), o passado também deixou cicatrizes no idioma. Porém, nesse caso, é a boçalidade e a grosseria, que se comunicam profundamente à estrutura mesma da língua. Seria ingenuidade, ou má-fé, imaginar que a luta de classes esteja ausente no processo histórico pelo qual estrutura-se uma língua, em determinado país. Pelo contrário, conforme demonstra Bakhtin, a luta de classes é surpreendentemente um meio eficaz de explicar a engrenagem completa de um idioma. 

Parece que, de algum modo, as regras básicas do idioma – sobretudo as regras vivas da língua oral – guardam em si uma espécie de propensão natural à violência. Praticamente escorregam da língua, por assim dizer, expressões grosseiras e brutais. Mas será que se trata apenas de aparência? Será exagero? De fato, talvez seja apenas um enorme poder de síntese - refiro-me ao enorme poder de síntese da brutalidade verbal - num meio que, afinal de contas, é dominado pela brutalidade social.

No entanto, a primeira revolução proletária da História ocorreu na Rússia, país atrasado. O que isso tem haver? É que, do mesmo modo, a literatura russa atingiu níveis altíssimos de expressão - apesar da brutalidade. Níveis inesperados, talvez, como a própria revolução. Mas, será mesmo "apesar" do atraso? Basta lembrar da grosseria de Fiódor, pai dos irmãos Karamazov. Ou, então, a violência abstrata do conto O Nariz, de Gógol, em que o major Kovaliov, ao se olhar no espelho depara-se com a ausência do próprio nariz, num "lugar perfeitamente raso" (até mesmo a descrição do que seria, mais simplesmente, um "buraco", é totalmente enviesada, obscura, e, portanto, violenta: afinal, o que seria, em lugar do nariz, um "lugar perfeitamente raso"?). 

Como dizíamos, a literatura russa atingiu níveis altíssimos de expressão - "apesar" do atraso. Como isso é possível? Assim perguntavam os críticos da burguesia, do mesmo modo que a social-democracia alemã (e atual) teve de engolir a Revolução de Outubro, sem jamais entendê-la completamente. Entretanto, não será justamente o atraso, aparecendo como obstáculo à criação, que, "superado", converte-se no que há de mais avançado na época? Superando, inclusive, ou adiantando-se, ao “modelo de lá” - “mais avançado.” Dostoievski é o grande exemplo, talvez, na Rússia (e Machado de Assim, entre nós, deveria, talvez, ser mais... exemplar). Ler bem Machado, é deixar que ele nos leia.

Para encerrar, voltemos a nosso autor, Lev Davidovich. Ele diz, noutra ocasião:

"A grosseria de linguagem - em particular, a grosseria russa - é uma herança da servidão, da humilhação e do desprezo pela dignidade humana. Seria necessário perguntar aos linguistas e aos folcloristas se noutros países verifica-se uma grosseria tão desenfreada, tão repugnante, como entre nós".

Certamente, Davidovich não conhecia o Brasil. Mas, claro, é compreensível sua revolta. De passagem, para terminarmos, vale a pena citar mais um bocadinho suas palavras, verdadeiramente reveladoras de alguns traços da nossa miséria atual: "Mas, nas camadas populares, a grosseria exprime o desespero, a irritação e, acima de tudo, uma situação sem esperança e sem saída". 

Como pensar, nesse sentido, o funk? É comum a depreciação. Nota-se uma reação violenta, muitas vezes, em relação a um "gênero" musical que, em todo caso, está largamente difundido entre as camadas miseráveis da população - sobretudo nos grandes centros urbanos. De fato, dificilmente se verá, como no funk, tamanha brutalização da linguagem. No entanto, é preciso notar como a reação dos delicados, quase sempre, é tão ou mais violenta que o próprio funk. Sobretudo porque, disfarçada de bom gosto (que quase sempre nunca é tanto...), o que se insinua é um forte preconceito de classe, o velho racismo de sempre. Impulso proto-fascista de higienização "cultural" (que, no entanto, tem o "corpo negro" alheio como alvo). 

Ora, se Lev Davidovich estiver certo, então, ao contrário do que diz a classe-média, é o desespero e a falta de esperança que explica a brutalização da linguagem, no funk, e não um simples "mau gosto". Quer dizer, se o desespero for real, os "funkeiros" talvez sofram muito mais com a vida que levam, do que a classe-média, obrigada a "tolerá-los". 


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