O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

domingo, 30 de novembro de 2014

TRECHO DE UM CONTO OU PESQUISA PARA O FILME "FERROADA"



"Enquanto ela, vestido suspenso, uma nesga de coxa descoberta, verificava com um dos pés a temperatura da água do chuveiro, no quarto o homem falava ao telefone e espiava pela janela a rua deserta. Era de madrugada e eles tinham chegado do bar. Ela se despiu e entrou no banho. Ele desligou o telefone, fechou as cortinas e pôs sobre a mesa o revólver que trazia à cintura. Apagou o abajur e dirigiu-se ao banheiro. Nessa hora, a penumbra da sala ganhou um matiz roxo-azulado e eu senti a pressão da mão de Keyla no meu colo, vi os seus dedos deslizarem para abrir o zíper da minha casa. Ocultei seus movimentos com a camisa que há pouco tirara, e de soslaio procurei ver se éramos observados. Foi então que ouvi os primeiros cochichos alusivos à tatuagem nas minhas costas. E parece que Keyla também, pois ela me abraçou e sorriu debochada. O casal na tela bebia conhaque sob as cobertas. O homem, levantou-se, nu, com o copo na mão, apanhou a arma e a trouxe para o criado-mudo. Keyla percebeu os rumores crescendo ao nosso redor e, do riso sarcástico, passou à cólera. O homem deitou-se e a mulher o beijou. Mais comentários. Enfurecida, Keyla nem chegou a ver a cena de sexo. Ergueu-se e mostrou o dedo médio em riste para toda a plateia.

    - Caretas! Bundões! - gritava ela. - Moralistas enrustidos do cacete! Vêm ver filminhos de arte porque um intelectualoidezinho de merda qualquer disse na Ilustrada que é bom. Mas não estão entendendo porra nenhuma. Vocês consomem os guias culturais e as resenhazinhas sobre arte com a mesma sofreguidão e frivolidade que os leitores de Caras. Vocês devoram os segundos cadernos com objetivo idêntico ao dos malhadores crônicos, ao das patéticas figuras que se submetem a todo tipo de dieta pra se livrar das gordurinhas a mais.Vocês, assim como esses compulsivos ergométricos, almejam um padrão que lhes foi imposto. Não fazem nada por prazer. Eles não se deleitam com o sol, nem vocês com a arte. Querem apenas, eles, um corpo tostadinho e rijo, e, vocês, um discursinho cabeça e pernóstico. Pra isso, eles suam feito imbecis nas esteiras e vocês babam nas exposições. Galeria, teatro, museu estão para vocês, assim como academia, clube e praia estão para eles. Mas tudo é falso. Hipócritas! Vão passar a vida como dublês de clones. Se exercitando para se enquadrar no modelo determinado. Tentando fazer ginástica intelectual e sentindo fome de telenovelas. Quem sabe até, induzidos por seus preconceitos, não assaltem de madrugada o quartinho da empregada, em busca de material que os sacie? "Algumas folhinhas de Contigo e umas linhazinhas de Sabrina não poderão me fazer mal; o importante é que ninguém saiba!" Vocês nunca passarão disso. Serão sempre burros! Néscios crônicos. Insensíveis. Com celulites medonhas na massa cinzenta. Porque vocês não se entregam e, então, não há regime à base de Bergman ou Proust que tire a banha desses cérebros adiposos. Ainda não inventaram silicone pros neurônios. Aprendam a gozar, burgueses do caralho; senão, vão morrer assim, sofrendo de mediocridade mórbida e idiotismo agudo. Eu desprezo vocês. Babacas! Sem estilo e sem tesão. Vulvas secas e broxas! Todos aí! Eu respeito mais quem fica em casa à noite vendo televisão e, de manhã, liga o rádio AM pra saber o que diz o horóscopo. Pelo menos, são mais honestos. E mais felizes..."

("Elas, Etc", Tico)

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

A QUEBRADA NÃO É CHAPA BRANCA! Nota de repúdio à alteração de imagem na peça de divulgação da III Mostra “Cinema da Quebrada”

publicada originalmente pelos parceiros do Coletivo Zagaia

Há uma imagem, do filme “O Muro da Vergonha”. Nela vemos um muro, erguido na Favela do Moinho, no qual há uma pichação: “Haddad sustenta o muro da vergonha do Kassab”. Gilberto Kassab, ex-prefeito de São Paulo, ergueu o muro e que não havia sido posto abaixo pela administração do atual prefeito, Fernando Haddad. O muro foi derrubado pela própria população, em protesto. 

Havia uma imagem: essa mesma, também retirada do filme, com a pichação inscrita. Essa imagem supostamente foi usada pelo Cinusp e pela organização da III Mostra Cinema da Quebrada para a divulgação do evento. “Supostamente” porque a imagem não foi de fato utilizada. O Cinusp e produção da mostra alteraram ela digitalmente, modificando seu conteúdo. Por meio de uma intervenção grosseira, apagou-se o nome do prefeito Haddad da pichação, restando da frase apenas o verbo e o predicado: “sustenta o muro”. Assim mesmo, sem sujeito. A mostra exibe o filme, mas não sustenta o compromisso com suas imagens no momento de divulgar o evento. Será que ocorreu ao Cinusp e aos organizadores da mostra que tal posição, além de contraditória, é um ato de violência contra todos os filmes exibidos, e não somente aquele que teve sua imagem alterada? Não percebe o Cinusp que tal ato atinge também as lutas e posicionamentos expressos nos sons e imagens desses filmes? 

Por isso, nós, realizadores com filmes na programação da III Mostra Cinema de Quebrada, viemos, através dessa carta, demonstrar nosso repúdio ao procedimento realizado pelo Cinusp e organização da mostra e exigir dos responsáveis: 

a) que se pronunciem publicamente, através de comunicado no site do Cinusp e na sua página no facebook, sobre o ato da manipulação; 

b) que retirem a imagem alterada da capa da pagina do Cinusp no facebook e a substitua pela imagem original; 

A existência da mostra é, em princípio, positiva. Abrir um espaço de reflexão na academia para a produção cinematográfica da periferia é indispensável, sobretudo na USP, uma universidade com poucos alunos “da quebrada”. Mas é preciso deixar bem claro que a relação com a periferia não pode se dar pela via da domesticação.

Quem quer exibir a quebrada, que seja para dar a ela voz e imagem, e não para silenciá-la. Quem quer dar espaço e tela para a periferia, tem de ser honesto com o recado e as lutas que vem dela. Não topamos exibir nossos filmes na Mostra para correr o risco deles serem apresentados num contexto que parece se envergonhar ou temer o que dizem suas imagens. Nos é difícil compreender que um evento destinado a pensar e exibir as imagens da quebrada se preste ao papel de apaziguar conflitos que seus realizadores, em contrário, desejam promover. Não nos parece sequer razoável que uma universidade pública promova o silêncio ao invés do questionamento e do conflito. 

A quebrada não é chapa branca e sua voz e seus conflitos não serão apaziguados num cordial panos quentes com o poder. Esperamos que essa seja uma oportunidade de o Cinusp se retratar ante o ocorrido e pautar sua conduta futura na promoção de um maior diálogo com a periferia e a arte política que se arrisca, sem temer nem maquiar o que dizem as imagens dos filmes. São Paulo, 27-11-2014, 

Assinam:

Adirley Queirós, cineasta
Affonso Uchoa, cineasta
Andre Novais, cineasta
Coletivo Tela Suja Filmes
Diogo Noventa, cineasta e diretor teatral
Ester Marçal Fer, cineasta
Evandro Santos – cineasta e educador
Felipe Terra, cineasta
Flávio Galvão – Coletivo Fabcine
Lincoln Péricles, cineasta
Rafael Fermino Beverari, cineasta e educador
Renan Rovida, cineasta
Rodrigo Sousa e Sousa, cineasta
Romulo Santos – cineasta e educador
Rede de Comunidades do Extremo Sul
Thiago B. Mendonça, cineasta – roteirista e produtor de Dias de Greve
Viviane Ferreira, cineasta