"Enquanto ela, vestido suspenso, uma nesga de coxa descoberta, verificava com um dos pés a temperatura da água do chuveiro, no quarto o homem falava ao telefone e espiava pela janela a rua deserta. Era de madrugada e eles tinham chegado do bar. Ela se despiu e entrou no banho. Ele desligou o telefone, fechou as cortinas e pôs sobre a mesa o revólver que trazia à cintura. Apagou o abajur e dirigiu-se ao banheiro. Nessa hora, a penumbra da sala ganhou um matiz roxo-azulado e eu senti a pressão da mão de Keyla no meu colo, vi os seus dedos deslizarem para abrir o zíper da minha casa. Ocultei seus movimentos com a camisa que há pouco tirara, e de soslaio procurei ver se éramos observados. Foi então que ouvi os primeiros cochichos alusivos à tatuagem nas minhas costas. E parece que Keyla também, pois ela me abraçou e sorriu debochada. O casal na tela bebia conhaque sob as cobertas. O homem, levantou-se, nu, com o copo na mão, apanhou a arma e a trouxe para o criado-mudo. Keyla percebeu os rumores crescendo ao nosso redor e, do riso sarcástico, passou à cólera. O homem deitou-se e a mulher o beijou. Mais comentários. Enfurecida, Keyla nem chegou a ver a cena de sexo. Ergueu-se e mostrou o dedo médio em riste para toda a plateia.
- Caretas! Bundões! - gritava ela. - Moralistas enrustidos do cacete! Vêm ver filminhos de arte porque um intelectualoidezinho de merda qualquer disse na Ilustrada que é bom. Mas não estão entendendo porra nenhuma. Vocês consomem os guias culturais e as resenhazinhas sobre arte com a mesma sofreguidão e frivolidade que os leitores de Caras. Vocês devoram os segundos cadernos com objetivo idêntico ao dos malhadores crônicos, ao das patéticas figuras que se submetem a todo tipo de dieta pra se livrar das gordurinhas a mais.Vocês, assim como esses compulsivos ergométricos, almejam um padrão que lhes foi imposto. Não fazem nada por prazer. Eles não se deleitam com o sol, nem vocês com a arte. Querem apenas, eles, um corpo tostadinho e rijo, e, vocês, um discursinho cabeça e pernóstico. Pra isso, eles suam feito imbecis nas esteiras e vocês babam nas exposições. Galeria, teatro, museu estão para vocês, assim como academia, clube e praia estão para eles. Mas tudo é falso. Hipócritas! Vão passar a vida como dublês de clones. Se exercitando para se enquadrar no modelo determinado. Tentando fazer ginástica intelectual e sentindo fome de telenovelas. Quem sabe até, induzidos por seus preconceitos, não assaltem de madrugada o quartinho da empregada, em busca de material que os sacie? "Algumas folhinhas de Contigo e umas linhazinhas de Sabrina não poderão me fazer mal; o importante é que ninguém saiba!" Vocês nunca passarão disso. Serão sempre burros! Néscios crônicos. Insensíveis. Com celulites medonhas na massa cinzenta. Porque vocês não se entregam e, então, não há regime à base de Bergman ou Proust que tire a banha desses cérebros adiposos. Ainda não inventaram silicone pros neurônios. Aprendam a gozar, burgueses do caralho; senão, vão morrer assim, sofrendo de mediocridade mórbida e idiotismo agudo. Eu desprezo vocês. Babacas! Sem estilo e sem tesão. Vulvas secas e broxas! Todos aí! Eu respeito mais quem fica em casa à noite vendo televisão e, de manhã, liga o rádio AM pra saber o que diz o horóscopo. Pelo menos, são mais honestos. E mais felizes..."
("Elas, Etc", Tico)
("Elas, Etc", Tico)