Para o meu irmão, que me ensina diariamente os segredos
do samba
Não resta dúvida de que certas vozes
ajustam-se melhor a determinados conteúdos. Mas, até que ponto? Para além da
“bonita voz”, ou da “melhor interpretação”, certas vozes possuem toda uma carga
de significação. Assim, se há canções destinadas a um tipo específico de voz,
também existem vozes que exigem determinados tipos de canções. A voz de João
Nogueira transmite em si mesma, condensado, reconfigurado, um conteúdo
específico que, depois (ou simultaneamente), descobrimos nas letras de suas
canções.
Insistindo no paralelo: existe música
sem letra (instrumental), e letra sem música (poesia), mas e a voz? Serve
apenas para sacramentar, mediadora, o casamento de letra e música? Sozinha, sem
letra, sem palavra, e sem ritmo, a voz é pura possibilidade. Se isolássemos,
então, a voz de João Nogueira, pensando nela (sem ela), revaler-se-ia,
imediatamente, como um campo aberto de possibilidades. E, para nossa grata
surpresa, as possibilidades abertas por sua voz de veludo correspondem
exatamente àquelas, consumadas por suas canções. João, ao falar, talvez
colhesse, no auto-reconhecimento de sua própria voz, as sugestões das canções
eternas que compôs.
Mas afinal, quais tesouros de
significação se ocultam nas ressonâncias profundas da voz de João Nogueira? Em
quais “terras do sem-fim” avolumam-se os ecos de sua melancolia? Seguindo o
raciocínio, encontra-se no conteúdo de suas letras a correspondência exata da
carga de significação cifrada nas cordas vocais. Vem do espelho, portanto, além
do espelho - de seu pai[1]. Mas as palavras, num poema, dizem mais
do que é dito. Primeiro a voz, palavra que transmite, e seus significados
ocultos, e, por fim, o retorno. Certamente, na prática, as coisas funcionam de
outro modo. Mas não custa diferenciá-las, para melhor vê-las inextricáveis numa
unidade que até mesmo as misérias da vida não foram capazes de romper. E é
sobre misérias que João cantava.
A figura do Pai, então, resguarda um
conteúdo que extrapola os limites da experiência individual, pois a voz do
sambista é amiga dos abalos sísmicos, renascendo do interior de grutas e
lonjuras subterrâneas: “Vem de muito longe este meu cantar”. Não longe,
portanto, de um critério preciso de beleza: aquela, que traduz as mágoas e
dores da plebe, dos despossuídos, dos humilhados, emergindo generosa à flor do
ouvido. Habitando as raias de um Fim inevitável.
Lembremos, de passagem, o belíssimo
samba de Egberto Gismonti, “Pr’um samba”, ao qual João empresta sua voz num
casamento perfeito, que ressalta, quando: “Falando mesmo francamente / Eu já estou descrente / Deste
meu povo que já não entende / Que basta um pouco de carinho / Um
cavaquinho rouco / Uma flautinha, um violão / Pr’um
samba”. Basta um pouco de carinho... Basta um samba! Basta um samba... ?
Muitas outras composições de João afirmam a mesma “saída fácil”. O samba é
redentor, e o ouvinte distraído talvez pense que tudo – inclusive nada - será
redimido pela arte, segundo as canções do mestre. Engano. O próprio samba – tal
como voz, ritmo, letras – é outra coisa.
A leitura do poder redentor do samba
talvez seja tão velha quanto o próprio samba. Mas não pertence a seu universo.
E, inclusive, serve de arma a seus inimigos. O samba não é feliz. Quase a
totalidade dos sambistas é figuração histórica de uma dor secular, mas que,
juntos, compõem uma constelação que é o desenho de um sorriso irônico, como
quem diz: “o futuro nos pertence”. Figuras melancólicas, porém jamais
derrotadas. Pois, enquanto expressão máxima – no campo da criação artística -
da comunhão que pode haver entre os de baixo, o samba é antes de tudo exemplo político. Tal como
diversas outras manifestações “espontâneas” de autodeterminação popular da
vida, é um hino à liberdade, declaração de guerra contra todo tipo de
hierarquização da vida social.
João Nogueira presenciou a colonização
cultural dos morros, a restrição de uma liberdade mínima de movimento do
espírito - sem a qual não existe samba – promovida pela avalanche da indústria
cultural. E é este processo, essencialmente, que sua obra mimetiza. Não se
trata de saudosismo, cantar os tempos idos. Que nunca foram bons. E justamente
aqui a principal contradição, a partir da qual se compreende melhor a profunda
melancolia de João Nogueira, refratada em tudo aquilo que compõe sua imagem
melancólica. Pois não se volta no tempo, e o futuro é uma caixa preta.
Mesmo os sambas mais “otimistas” não
perdem de vista a necessidade de lutar pelo futuro - “sorria / meu
bloco vem / vem descendo a cidade / vai
haver carnaval de verdade / o samba não se acabou”. O futuro adormece – sereno e seguro –
nas mãos de quem faz a vida.
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